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La trama de la comunicación

versión impresa ISSN 1668-5628

Trama comun. vol.19 no.2 Rosario dic. 2015

 

ARTÍCULOS

La Copa de los "tres mundos". Reflexiones sobre globalización, media y la Copa 2014

 

Por Bruno Thebaldi

bthebaldi@id.uff.br / Pontifícia Universidad Católica de Río de Janeiro, Brasil

Bruno Thebaldi.
Brasileño.
Doctorando en Comunicación Social por la Pontifícia Universidad Católica de Río de Janeiro (PUC-Rio). Maestría en Comunicación Social por la Universidad Federal Fluminense (PPGCOM/UFF). Licenciado en Estudios de Media por la Universidad Federal Fluminense (UFF). Docente de Estudios de Media de la Escuela SESC (Proyecto Uzina). Afiliación Institucional: Fundación Biblioteca Nacional de Brasil.
Áreas de especialidad: Media y sociabilidad, Media y consumo y Democratización de los media.
E-mail: bthebaldi@id.uff.br


Sumario:

Para Santos (2001), hay tres tipos de mundos "en el mismo mundo". En verdad, cada mundo es vivido de acuerdo con el "lugar de mundo" ocupado por el individuo. En cada mundo hay una manera diferente de ver la globalización. Dependiendo del mundo, la globalización puede ser vista como "fabulosa", "perversa" o "humanitaria". En este artículo, discutimos el punto de vista de estos tres tipos de mundo, juntamente con la cuestión de la democratización de los media, usando como objeto de reflexión la Copa del Mundo 2014, en Brasil.

Descriptores: Globalización; Democratización de los media; Copa del Mundo 2014; Brasil; Consumo

Summary:

For Santos (2001), there are three kinds of worlds "in the same world". In fact, each world is lived in according to the "world position" occupied for the individual. In each world there is a different manner to see the globalization. Depending on the world, the globalization can be seen as "fabulous", "perverse" or "humanity". In this article, we discuss the point of view from this three kinds of worlds, in additional to the question of media democratization, using by object of reflection the 2014 World Cup, in Brazil.

Describers: Globalization; Media democratization; World Cup 2014; Brazil; Consumption


Introdução
Em Por uma outra globalização (2001), Milton Santos vislumbra a coexistência de três mundos "num só mundo". E embora tais mundos convivam concomitantemente, os mesmos são vivenciados e/ou experimentados de formas distintas, o que se explica, dentre outras, pela posição que os indivíduos ocupam no mundo e seus capitais acumulados – tradicional, econômico, social, cultural e simbólico, conforme sugere Pierre Bourdieu (2004). Em comum, Santos situa esses mundos dentro do contexto da globalização, termo designador da atual fase do capitalismo enviesado no modelo econômico do neoliberalismo ou Estado Mínimo.
Na ordem em que os apresenta, Santos intitula esses mundos de: (a) o "mundo que nos fazem crer" ou "globalização como fábula", vivido pelos "vencedores", os estratos sociais mais privilegiados - os maiores beneficiados pela organização capitalista - e difundido pelas instituições a serviço da hegemonia dominante, como a grande mídia mercantil; (b) o "mundo como ele é" ou "globalização como perversidade", vivido pelos "perdedores", os estratos sociais menos favorecidos - as maiores "vítimas" dos impactos do capitalismo; e (c) o "mundo como poderia ser" ou "globalização mais humana", expressando a alternativa por um mundo mais igualitário em oportunidades e justiça social.
Uma vez que ocupa lugar privilegiado no âmbito da formação dos imaginários socioculturais, acreditamos que a mídia desempenha papel fundamental na constituição desses "mundos". Os meios de comunicação mercantis - parceiros e/ou representantes dos interesses das grandes empresas globais e, por isso mesmo, voltados para a lógica do lucro – servem de instrumentos ideológicos dos valores hegemônicos, difundindo imaginários "fabulosos" e incitando estilos de vida que preconizam os valores do consumo (Moraes, 2013). Sendo assim, fica difícil conceber a busca por uma outra globalização, mais justa e igualitária, sem que a mesma seja pensada e/ou atravessada pela busca por uma outra comunicação, descentralizada e democrática, na qual a propagação dos juízos da cidadania sobrepujem os do consumismo.
Em síntese, neste artigo discutimos o interrelacionamento desses três diferentes mundos (como nos fazem crer ou fabuloso, como é ou perverso e como poderia ser ou humanitário) com a importância da democratização dos meios de comunicação, rompendo com privilégios de grupos monopólicos e antidemocráticos, e entendendo-a como elemento essencial para o alcance do mundo como poderia ser. Ademais, adicionamos à discussão o contexto histórico, social, político e cultural dos protestos e passeatas de rua que eclodiram pelo Brasil principalmente a partir de junho de 2013, fenômeno conhecido como Jornadas de Junho e que teve expressivo reflexo na mudança da opinião pública brasileira no que se refere ao apoio à Copa do Mundo de Futebol 2014.
Dentro da linha argumentativa abalizada, objetivamos analisar distintas percepções sobre a Copa 2014 a partir da ótica desses "três mundos": fabulosa fonte de lucros para uns (empreiteiras, principalmente); perversa fonte de consternações para outros (sobretudo os removidos de suas casas) e potencial elemento de "união" (de populares e categorias diversas) por um mundo melhor.

I. O fabuloso mundo que nos fazem ver (ou o sonho da pureza urbana)

O primeiro dos mundos descritos por Santos (2001) é "o mundo como nos fazem crer" ou "globalização como fábula". Conforme o pensador indica, este é um mundo "fabuloso", "maquiado", e, como toda maquiagem e fábula, é um mundo que proporciona uma realidade "enfeitada", "distorcida". Em outras palavras, um mundo "retocado" pelo viés da ideologia, no sentido marxista do termo1.
Este é um mundo idealizado, mágico, encantado, arquitetado para ser propagandeado e divulgado pelos aparatos das instituições dominantes, destacando-se, para os propósitos deste artigo, os espaços dos meios de comunicação. Encontramos esse mundo notadamente na propaganda oficial dos governos, nas publicidades comerciais e ainda nos produtos das empresas de comunicação (como programas de entretenimento e mesmo jornalísticos). Sua produção e difusão são indispensáveis à manutenção e reprodução do sistema, já que sua incessante repetição é fundamental para o reforço, conformidade, aceitação e mesmo "naturalização" dos preceitos da ordem estabelecida.
Uma das razões pelas quais os meios de comunicação comerciais se portam como "porta-vozes do neoliberalismo", tal qual demonstra Dênis de Moraes (2013), é a promiscuidade financeira em que se veem envolvidos com o grande capital, em virtude da verdadeira enxurrada de recursos que as companhias globais aportam nas empresas de mídia, na forma de investimentos e/ou publicidades. Isso se explica por dois fatores principais: (a) os conglomerados mundiais têm enxergado no setor de comunicação uma boa chance para diversificarem seus negócios (fusões, alianças, aquisições, participações etc.), especialmente diante das perspectivas e oportunidades despontadas com a informatização e o advento das chamadas multiplataformas integradas (celulares do tipo smartphone, computadores pessoais, TV digital, redes sociais etc.); e (b) a mídia, ademais do plano material, ocupa uma posição bastante privilegiada a nível sociocultural, que evidentemente não passa despercebida por seus financistas. Os meios de comunicação, através dessa proeminência social e cultural – um dos diferenciais pelos quais se verifica, no ramo das mídias, o casamento entre propriedades cruzadas de players de diferentes áreas econômicas -, gozam de grande habilidade para incitar imaginários, por meio da difusão de imagens, narrativas e discursos, justamente por "estar presente" e "falar" com praticamente todo o mundo quase que simultaneamente. O resultado dessa combinação é uma danosa rede de proteções, influências, favores e troca de interesses entre as empresas de mídia e seus investidores/anunciantes, na qual aquelas recebem aportes financeiros em troca da "defesa" e propagação dos valores estratégicos destes (Moraes, 2013).
Moraes (2013) arremata sua alegação afirmando que a união entre "financeirização" e "produção simbólica" apresenta resultados calamitosos, como concentração monopólica no campo da mídia - dominado, a nível mundial, por sete mega grupos2 - e a propagação quase como "pensamento único" do "culto ao mercado" e seus valores mais destacados, dentre os quais o individualismo, a competição e o consumismo. Fora o reducionismo e a eliminação do processo histórico dos fatos noticiados, levados a público de maneira rasa, tendenciosa e descontextualizados.
Dialogando com Néstor García Canclini (1997), podemos dizer que o mundo como nos fazem crer é aquele que incita mais os valores do consumidor que os do cidadão. É o mundo que enseja desejos individuais, fruições de experiências e sensações particulares, aquisição de mercadorias e serviços, chamando atenção para os direitos e deveres dos indivíduos enquanto adquirem ou compram os bens materiais e simbólicos produzidos pelo sistema, para uso próprio. Ele não enfatiza com a mesma prioridade a discussão coletiva, a participação política no processo democrático, a observância de direitos e deveres enquanto habitantes de uma cidade, país etc. Em suma, a valorização do consumidor em prol do cidadão, enquanto categorias analíticas, significa, também, a valorização da preocupação individual em prol coletiva.
O mundo como nos fazem crer é, por conseguinte, o mundo dos "consumidores padrão", que, como nas fábulas, "tem tudo para dar certo". Ele nos é ofertado isento de grandes problemas ou aporrinhações, com ordenamento (praticamente) perfeito, onde não só todas as coisas têm um lugar bem definido como (felizmente) se encontram caprichosamente repousadas no respectivo sítio a elas designado, não causando, assim, grandes incômodos ou chateações. É o mundo que os agentes ideológicos que o produzem e o difundem (via mídia, sobretudo) gostaria que enxergássemos, almejássemos e/ou nos reconhecêssemos, independentemente de nossa condição, classe ou posição social.
Por entendermos que encontramos esse mundo sortudo, alegre e acolhedor nas propagandas oficiais da Copa 2014, por exemplo, e por ser este um evento de grande notoriedade e repercussão mundial, elegemo-na como objeto de reflexão e cotejamento dos mundos propostos por Santos (2001). Tomemos como ilustração a vinheta batizada de "Isso é ser brasileiro"3, que faz parte das campanhas difundidas pelo governo federal do Brasil com o escopo de "defender" a realização da Copa. O vídeo começa com pessoas sorridentes, felizes, em diferentes situações banais (trabalhando, andando pelas ruas, em reunião com a família etc.), alternando paisagens turísticas do país (enseada de Botafogo, baía de Todos os Santos), estádios de futebol com uma lotada e festiva arquibancada e ruas decoradas com as cores da bandeira nacional. Sem contar os inúmeros indivíduos vestidos com a camisa da seleção de futebol. Outro comercial-objeto, propagado pela Rede Globo de televisão, emissora oficial da transmissão das partidas da Copa, intitulado "Somos todos um só"4, seguiu os mesmos parâmetros.
De imediato, é curioso notar que nesse mundo que querem nos fazer ver e crer a população brasileira (operários, crianças, populares nas ruas...) celebra em júbilo a Copa. Nada de reclamações e contestações. A euforia popular é unanimidade. Outro fato curioso é que em momento algum os vídeos citados veiculam cenas que remetam explicitamente às periferias ou ao interior do país. O Brasil é representado como um lugar marcado pelo planejamento urbano e de classe média. Tampouco há cenas que registram engarrafamentos, poluição do meio ambiente, transportes públicos abarrotados (na propaganda da Globo até há um ônibus lotado, mas de torcedores em clima de carnaval) ou outros problemas.
Se tais dilemas (que, bem verdade, não são exclusividades das metrópoles brasileiras, sendo realidade em "n" outras cidades mundo afora, em especial nos países não-desenvolvidos) não foram retratados, é porque este mundo se configura como o mundo do espetáculo e da valorização das imagens, valendo, pois, aquilo que parece ser (Debord, 2008). Nesse fabuloso mundo imagético, não há margem para "sujeiras". Apenas para a "pureza", a "beleza", a ordem bem estabelecida.5 E não se trata de uma questão de não representar a "imundície", mas de abolir a sua existência.
Não obstante, o mundo fabuloso, tal qual aqui se apresenta, não é de todo irreal: é o mundo que beira o vivido pelos "vencedores" do capitalismo. Por aproximação, consoante a metafórica tipologia trabalhada por Zygmunt Bauman (1999) para lidar com as contradições sociais contemporâneas, diríamos que esse é o mundo dos "turistas".  Segundo o sociólogo, os turistas - ou os "heróis" da globalização (Bauman, 1998) - são os que têm acessibilidade e permissividade no trânsito global, os que detêm o sinal verde e a quem é permitido, sem grandes impedimentos, atravessar as fronteiras entre os países, as quais se encontram cada vez mais vigiadas e demarcadas por rígidas barreiras - ao contrário das financeiras, cada vez mais dissolvidas. Os turistas escolhem onde querem estar, quando ir e por quanto tempo permanecer: eles estão no e preocupados com o "tempo". O turista é um cidadão do mundo, a quem as questões globais são bem mais caras do que as locais. Nenhum lugar é o seu lar, ao mesmo tempo em que todos podem lhe servir como tal. Com o passaporte carimbado para qualquer canto, ao primeiro sinal de desordem ou incômodo simplesmente toma uma nova direção – de preferência rumo a um destino que não atrapalhe suas expectativas pessoais: ao se instalar em um local, o turista pensa em muito pouco além de "se divertir", "ser bem servido" e extrair todas as boas oportunidades de que possa usufruir. Até que as mesmas se esgotem, reiniciando a viagem. O turista é, portanto, o consumidor por excelência.
Refletindo sobre as propagandas anteriormente citadas e os argumentos propostos por Bauman que acabamos de expor, resta-nos indagar se estariam os brasileiros sendo representados e/ou considerados "turistas" em seu próprio país, por seu próprio governo. Se a resposta for positiva, há pelo menos duas graves considerações a se abordar. Primeiramente, em tese, nada mais impediria que outros setores da sociedade - mais exatamente o mercado e sua "mão invisível" – os trate da mesma forma. Em segundo lugar, é preciso ter em mente que esse mundo fabuloso (e "higienizado"), depois de repetido "n" vezes, de alguma forma pode acabar internalizado no imaginário social, sendo considerado não só como o mundo que deveria ser, mas como aquele no qual os "desenquadrados" do "padrão consumidor" são tidos como obstáculos ao próprio ordenamento social. Em outra palavra, sujeira; uma repugnante poluição ameaçadora da pureza da ordem e que, por higiene, tem que ser banida, excluída, eliminada.

II. O perverso mundo como ele é (ou a dureza da realidade cotidiana)

Alcançamos, desse modo, o segundo dos mundos descritos por Santos (2001): o "mundo como ele é" ou a "globalização perversa". Para o autor, aqui não há fantasia ou fábula, mas as mais nefastas políticas de exclusão e desigualdade levadas a cabo pelos preceitos do capitalismo contemporâneo. Eis o mundo sem maquiagem, no qual, retirado o "véu da ideologia", pode-se enxergar os piores impactos do neoliberalismo (como o desemprego, a pobreza, a fome, o desabrigo, a corrosão salarial e da qualidade de vida) e a corrupção moral do homem (egoísmos, cinismos, individualismos e egocentrismos).
Esse é o mundo "ocupado" pelos "consumidores falhos". Isto é, por aqueles que não conseguiram atender as exigências que o mercado impõe para poderem ser integrados, absorvidos, aproveitados. E em um mundo que valoriza os indivíduos menos como cidadãos do que como consumidores, não atender a essas exigências se torna um grave problema, cercado de perniciosas consequências. Viviane Forrester (1997), por exemplo, denuncia que o passaporte carimbado para o mundo dos consumidores confere aos indivíduos, sob o ponto de vista dos valores do mercado, o que ela se refere como "direito de viver". Aos demais, àqueles que já foram barrados ou seguem aguardando na fila de espera para ultrapassar as fronteiras nada sutis entre esses dois mundos, restaria o estigma de serem vistos como um "custo", uma "oneração", um "dispêndio" para os "vencedores" e o erário estatal.
Encontramos aqui a categoria extrema oposta aos "turistas": os "vagabundos" (Bauman, 1999). De acordo com Bauman, diferentemente dos turistas, os vagabundos não são nem bem-vindos, nem bem-vistos em parte alguma. Eles não estão no tempo, e sim no espaço. Um espaço, diga-se de passagem, nada acolhedor, e sim repulsivo e segregado. Os vagabundos são locais, no sentido de que são os que mais diretamente sofrem com os problemas da localidade (muitas vezes globais, mas ali refletidos), encontrando-se privados e excluídos de liberdade de movimento e autonomia sobre si - para Bauman (1999), dois dos maiores mecanismos de distinção social de nosso tempo. Os vagabundos circulam não por livre e espontânea vontade, mas por pressão e coação. São empurrados e expulsos "de lá pra cá" e "daqui pra lá" como coisas que precisam ser mandadas para algum lugar e que, todavia, ninguém quer receber. Sua permanência é incômoda, não há lugar para eles. Eles não têm escolhas: estão excluídos tanto da sociedade, quanto do consumo material e simbólico dos bens.
Bauman (1999), contudo, ressalta que os vagabundos dispõem daquilo que os turistas mais almejam: tempo. Ou seja, aquilo que é tão faltoso e desejoso ao turista é o que mais sobra aos vagabundos. Não obstante, é um tempo perverso, desperdiçado, vago, impreciso, lento, arrastado, quase parado. Um tempo que não os leva a lugar algum que não a próxima marquise, esquina ou viaduto. Um tempo que não têm como aplicar e talvez nem saibam de que maneira poderiam fazê-lo. Por outro lado, os turistas têm aquilo que os vagabundos mais anseiam: uma vida formalizada (um emprego, um lar, quiçá uma família) e acesso ao consumo dos bens mais valorizados. Entretanto, todo esse "pacote" só vem quando acompanhado pelo estresse da vida contemporânea, que é o alto preço cobrado aos turistas para garantir o visto de acesso e permanência no "mundo fabuloso", derivando daí a percepção do tempo como frenético, absolutamente intenso, acelerado e fragmentado.
Na verdade, turistas e vagabundos apresentam em comum o fato de, salvaguardadas as devidas posições, serem consumidores (Bauman, 1999), no sentido de que ambos são acumuladores de experiências, sensações e emoções. Porém, como já assinalado, só o turista tem acesso à aquisição e à posse dos bens materiais e simbólicos. Nesse sentido, o vagabundo é o alterego do turista e vice-versa. Um gostaria de ter aquilo de que o outro dispõe. Em outro sentido, a existência dos vagabundos legitima a submissão dos turistas aos regimentos do sistema, já que são a manifesta e patente simbolização do que lhes pode ocorrer caso não se enquadrem nos imperativos mercadológicos. Portanto, os vagabundos são necessários ao bom funcionamento do capitalismo, uma vez que demonstram aos turistas que a saída não parece nada boa – e na verdade não é.
Vê-se que a globalização, sob a bandeira do neoliberalismo, não exportou os altos padrões de qualidade de vida dos países desenvolvidos para os não-desenvolvidos. Muito menos tornou a realidade "fabulosa", tal qual, para empregar os termos de Santos, querem nos fazer crer ou ver. Ao contrário: disseminou mundo afora a concentração de renda, a desigualdade e os subempregos, especialmente aos menos favorecidos.
Nesse segundo mundo há uma percepção diferente em relação à Copa: se no mundo como nos fazem crer ela é motivo da euforia e orgulho, no mundo como ele é a mesma é a razão de milhares de remoções forçadas, violentos episódios de repressão, tortura e assassinato cometidos por policiais6, encarecimento do custo de vida7, estagnação econômica, excessivos gastos governamentais, promessas não cumpridas, greves de diversas categorias trabalhistas (como profissionais de limpeza urbana, rodoviários, professores de todos os níveis e outros servidores públicos) e elevação das tensões sociais.
Os números que comprovam a direta violação de direitos humanos relacionados aos preparativos com a Copa 2014 e com os Jogos Olímpicos 2016 são alarmantes. A organização não-governamental Portal Popular da Copa e das Olimpíadas estima em 170 mil as remoções ocorridas em virtude desses eventos (quase uma para cada grupo de mil brasileiros8). Em paralelo, impressiona a escalada no valor dos imóveis, em especial nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, que segundo o Zap Imóveis - portal que acompanha o mercado imobiliário no país - entre janeiro 2008 e abril de 2014 registraram, respectivamente, valorização de 203,6% e 252,8%9. Muito acima da inflação oficial do período (43,67%10), e, consequentemente, do ganho e/ou da reposição salarial da classe trabalhadora.11
Enquanto isso, segundo dados divulgados em uma matéria do portal UOL, os gastos com a Copa atingiram a casa dos 25,6 bilhões de reais (no câmbio atual, aproximadamente 11,6 bilhões de dólares)12 – uma fabulosa fonte de alegrias (e lucros) para as empreiteiras. Em nível de comparação, a Alemanha 2006 custou 6 bilhões de dólares e a África do Sul 2010, 8 bilhões de dólares. O número de trabalhadores que morreram em acidentes de trabalho na reforma ou construção dos estádios chega a nove. A criminalização dos protestos de rua antiCopa e o desproporcional uso da força policial na repressão às passeatas chamou atenção da Anistia Internacional, que lançou uma campanha com petição mundial - batizada de "Cartão Amarelo" em referência a uma das penalizações de advertência em caso de "falta" cometida numa parida de futebol -, solicitando ao governo brasileiro o cumprimento da garantia do direito à liberdade de expressão em protestos pacíficos13. As tradicionais decorações de rua em apoio ao time brasileiro, que em época de Copa do Mundo se espalhavam pelo Rio de Janeiro, sendo motivo de competição midiática "em busca da rua mais bem enfeitada", minguaram à quase inexistência, ao mesmo tempo em que apareceram cada vez mais arranjos, desenhos e adornos com mensagens de descontentamento com o evento14.
Às vésperas da Copa, a Anistia Internacional, mais uma vez, lançou o vídeo "Brasil, chega de bola fora!"15. O audiovisual exibe imagens alternadas entre uma fictícia partida em um campo de futebol - onde ocorre um verdadeiro massacre cometido por forças policiais, com direito a spray de pimenta e espancamentos a base de cassetete - com cenas reais de violência policial perpetrada indistintamente contra manifestantes nos protestos de rua, incluindo agentes militares disparando armas e lançando bombas de gás contra civis. A trilha sonora é regrada ao som do ritmo do samba, acompanhado de versos do hino nacional brasileiro. Ao final, e ao ruído de estrondos de mais tiros e bombas, a mensagem da campanha: "O mundo está de olho! Brasil, chega de bola fora!".
A julgar pelos fatos apontados, comparada com a globalização como fábula, a globalização como perversidade parece proporcionar bem menos ensejos para entusiasmos. Em vez disso, vemos aqui o mundo da exclusão, da desigualdade, da criminalização da pobreza e dos abusos contra direitos humanos básicos e fundamentais.

III. A alternativa de um mundo possível (ou a esperança de dias melhores)

Por fim, o terceiro mundo proposto por Santos (2001) é o "mundo como poderia ser" ou "globalização humanitária". Na visão do pensador, esse mundo, que representa o desejo por uma sociedade mais justa e igualitária, não deve ser enxergado como utopia, mas possível alternativa à "globalização perversa" e "fabulosa". Para o alcançarmos, ainda segundo o autor, bastaria basicamente uma mudança no uso político das tecnologias já existentes. Em outras palavras, Santos alega que as mesmas tecnologias que sustentam o mundo da perversidade, da desigualdade e da injustiça social, poderiam ser empregadas para que fosse erigido um mundo mais equitativo e harmônico. Precisaríamos apenas cambiar as finalidades com que são utilizadas.
Caminho semelhante é apresentado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (2004), quem ressalta a relevância de se considerar, nas relações sociais, a união do papel das estruturas (o objetivismo) com o dos sujeitos (o subjetivismo). Na tese de Bourdieu, no entanto, a sociedade pode ser pensada metaforicamente como um espaço (o espaço social), o qual é constituído pela combinação de múltiplos campos (as diferentes instituições sociais), que mantêm entre si entrosamentos dinâmicos de lutas e disputas por poder (impedindo o espaço social de ser estático). Embora cada um desses campos goze de autonomia para estabelecer suas próprias regras (sua ordem), uma vez que estão situados em uma perspectiva relacional dentro do espaço, e não à parte d’ele, essa independência se mostra mais relativa do que efetiva, de maneira que se veem condicionados tanto pelas regras dos demais campos, quanto pela ordem do todo espacial em que estão inseridos. Em outras palavras, apesar dos campos elaborarem sua micro ordem, também estão submetidos aos regramentos da macro ordem do espaço e, de certa forma, às outras micro ordens institucionais. Nada impede, porém, o livre desenvolvimento do pensamento contra-hegemônico.
Sem embargo, mesmo os campos se encontram divididos, fracionados entre grupos de indivíduos, reproduzindo e estabelecendo em seu interior disputas por posição e poder. É precisamente desse emaranhado e conflitivo jogo de tensões e embates que se obtêm um ponto de equilíbrio e conformidade no espaço social como um todo, condição indispensável ao seu bom funcionamento.
Em suma, Bourdieu argumenta que o espaço atua como uma estrutura estruturante em relação aos sujeitos, os quais, por sua vez, igualmente agem de modo a estruturar o espaço. Ou, vendo por outro prisma, o sociólogo afirma que o espaço é uma estrutura estruturada pelos sujeitos, que fazem o mesmo em relação ao espaço. É por isso que Bourdieu nomeia sua teoria tanto de "estruturalismo construtivista" quanto de "construtivismo estruturalista", já que, por ser a sociedade uma estrutura dinâmica, constituída por instituições e sujeitos que são mutuamente agentes estruturantes e estruturados, para o autor não haveria porque distinguir a ordem de pronunciação, sendo ambas as formas adequadas. Logo, o espaço estrutura os sujeitos que estruturam o espaço, o qual é estruturado pelos sujeitos que são estruturados pelo espaço e vice-versa: indivíduo e sociedade mutuamente se fazem.
Assim, ao cruzar a teoria de Santos (2001) – de que necessitamos cambiar os fins políticos com os quais utilizamos as tecnologias disponíveis - com a elaborada por Bourdieu (2004) – de que transformar a organização ou ordem social parte, também, da ação dos indivíduos -, diríamos que depende de cada um de nós concretizar o mundo como poderia ser.
No Brasil do século XXI, a expressão do desejo por essa globalização humanitária obteve seu ápice a partir de junho de 2013, no que ficou conhecido como Jornadas de Junho, quando país afora eclodiram "n" passeatas, algumas reunindo milhões de indivíduos, todas com o mesmo propósito: um Brasil mais justo.
Muito se especula a respeito do que teria causado essa onda de protestos, a maioria dos quais convocados pelas redes sociais, em especial o Twitter e o Facebook. Em primeiro lugar, é importante que tomemos conhecimento a respeito do contexto no qual as Jornadas se formaram. É comum que seja atribuído como estopim do início das passeatas o reajuste de vinte centavos concedido pelas prefeituras de São Paulo e Rio de Janeiro às tarifas dos ônibus municipais. De fato, inicialmente o movimento Passe Livre, que luta pela qualidade e gratuidade do transporte público, ocupou papel de protagonista na organização dos protestos de rua. Inclusive, as primeiras manifestações (que mais à frente desembocaram nas Jornadas) foram convocadas por esse grupo, em São Paulo, tendo como pauta exclusiva de reivindicação a questão dos transportes.
Com a forte repressão policial desferida contra esses protestos iniciais, a aceitação e adesão popular ao movimento cresceu rapidamente. Em poucos dias, milhares de indivíduos saíram às ruas exigindo não apenas um serviço de transporte público decente, mas melhores condições de vida e o fim da violência do Estado. Logo, à pauta dos transportes se somou a demanda por mais qualidade nos serviços públicos oferecidos como um todo (em áreas como saúde, educação e cultura), direito à moradia, desmilitarização da polícia, além das queixas contra o encarecimento do custo de vida, a corrupção, ementas parlamentares e projetos de lei considerados antiquados e abusivos – tal qual a Lei Geral da Copa, vista como altamente benéfica à FIFA e lesiva à soberania nacional -, a democratização dos meios de comunicação e, finalmente, os questionamentos em relação aos exorbitantes gastos destinados à organização da Copa. A expressão "não é só por 0,20 centavos" depressa se popularizou e se alastrou por cartazes espalhados nas ruas, juntamente com reivindicações como "Quero escolas e hospitais no padrão FIFA", "FIFA, go home", "Da Copa eu abro mão, quero é dinheiro na saúde e educação", dentre outros.
No entanto, talvez a expressão mais representativa e/ou simbólica das Jornadas, que serviu de convocatória popular às passeatas, tenha sido o grito de "Vem pra rua!" - tirado originalmente de um comercial de uma montadora de automóveis que estava sendo veiculado exatamente no momento em que os protestos começavam a ocupar as ruas.16 O "Vem, vem pra rua, vem!" se tonou o lema das passeatas a nível nacional, ecoado em coro diversas vezes pelas ruas de todo o Brasil, tanto como uma poderosa convocação à união popular nas caminhadas, quanto como expressão de descontentamento e inconformismo com os rumos políticos, econômicos e sociais do país.
Um breve adendo: a pesquisadora Naomi Klein (2002) - estudiosa das políticas de produção e marketing levadas a cabo pelas grandes marcas globais, denunciando seus impactos, sintomas e/ou reflexos socioeconômicos (desde nas longas jornadas de operários fabris explorados em regime de trabalho análogo à escravidão, na Ásia, ao "encantamento" e endividamento dos consumidores com o produto final que lhes é apresentado, seja por seu design, ideia, estilo e/ou conceito "oferecido") – afirma que podemos encontrar uma das possíveis respostas e/ou reações que expressam a insatisfação dos sujeitos diante da incessante (ou mesmo invasiva) propagação dos valores do consumismo na eclosão da chamada "culture jamming" (2002: 307). Em linhas gerais, trata-se de um fenômeno de reaproveitamento, ou melhor, de reapropriação e respectiva ressiginifcação das imagens e/ou mensagens publicitárias, sobretudo as que "ocupam" o espaço público, como as expostas em outdoors e ônibus. Caracterizado pela realização de intervenções, interseções, subversões e/ou paródias nas peças publicitárias expostas, o objetivo mais patente da "culture jamming" é formar uma espécie de "contramensagem", de caráter crítico, por meio da alteração do sentido inicial da mensagem original.
Posto isso, vislumbramos a ocorrência dessa "resposta inconformada" na relação entre os protestos de rua no Brasil de junho de 2013 e o comercial da montadora de automóveis (e seu canto de "Vem pra rua!"): a mensagem original da propaganda foi reapropriada pelos manifestantes, que criaram, através de um processo de ressignificação, uma contramensagem na qual expressaram tanto seu inconformismo com os rumos políticos, econômicos e sociais, quanto com a realização da Copa do Mundo - e, porque não, ainda que indiretamente, com a conversão de praticamente tudo a consumo -, exigindo, por tabela, prioridade na canalização de investimentos públicos para outras áreas, em especial saúde, educação, moradia e cultura, além de criticarem as privatizações (como de aeroportos, trechos de rodovias e estádios de futebol).
O mundo como poderia ser, e a luta pela globalização humanitária, representa, pois, a defesa dos valores da cidadania em prol dos valores do consumo, da justiça social sobre a desigualdade.

IV. Os efeitos da globalização no campo da mídia

A mídia tem sido um dos principais agentes de "encantamento" do mundo, vendendo a "fábula" da globalização através da propagação "fantasiosa" dos ideais da ideologia neoliberal, dentre eles a supervalorização dos valores da competição e do consumo em prol dos da cidadania e do estímulo ao desenvolvimento do pensamento crítico. Para o trio de pensadores Denis de Moraes, Ignacio Ramonet e Pascual Serrano, autores do livro Mídia, poder e contrapoder (2013), dito uso político dos aparatos midiáticos denota um dos efeitos mais negativos da "globalização perversa" na esfera da comunicação, razão pela qual acreditamos que conjeturar o "mundo como poderia ser" isolado de medidas que objetivem a democratização do setor de mídia parece soar como algo inconcebível.
Ao retomar a clássica teoria da divisão do Estado proposta por Montesquieu, no século XVIII, Ramonet (2013) recorda-nos que a mídia, em sua concepção, foi pensada como uma espécie de "contraponto dos demais poderes" (Executivo, Legislativo e Judiciário). Em outras palavras, uma instância "responsável" por denunciar eventuais "abusos" possivelmente cometidos pelas demais instituições estatais, o que a posicionaria como um "agente da democracia moderna": o "4º Poder". Todavia, ao descrever o emprego (principalmente com fins privados) que as grandes empresas de comunicação comerciais realizam dos aparatos de mídia, o autor declara que esse "4º Poder" tem se revelado mais um problema do que uma benesse: um tipo de desserviço. Na verdade, Ramonet compartilha tal posicionamento com Moraes e Serrano, os quais discutem juntos a atual situação em que se encontra o campo da mídia, a nível mundial, "denunciando" as sequelas da globalização no referido setor.
A nosso ver, é a partir da união tecida entre financeirização e produção simbólica, descritas por Moraes (2013), que logramos vislumbrar com maior veemência o entrelaçamento entre os meios de comunicação e as versões "fabulosa" e "perversa" da globalização, definidas por Santos (2001). Pois, se a financeirização das empresas de mídia pelo "grande capital" tem como uma de suas mais notórias contrapartidas a propagação dos ideais da globalização de maneira "romântica", e tal qual um "pensamento único", então, a própria difusão da variante fabulosa da globalização é um dos efeitos das políticas globalizantes e/ou neoliberais - o que para Pascual (2013) prejudica até mesmo o axioma da "liberdade de imprensa", a esta altura, para o pensador, nada muito além de uma escusa que dissimula a correspondente "liberdade de empresa". Fora o movimento de concentração oligopólica das companhias que atuam na área de mídia e os conflitos de interesses e disputas ideológicas entre, de um lado, as decisões da linha editorial das empresas de comunicação (sobretudo as mercantis) e, do outro, as pulsões e anseios da sociedade, desdobrando-se em implicações como a perda da credibilidade da informação e a precarização da profissão (e identidade) de jornalista.
Especificamente no que diz respeito à Copa, estima-se que a Rede Globo, "emissora oficial do evento", tenha faturado com a venda de cotas a oito patrocinadores da transmissão dos jogos 1,438 bilhão de reais.17 Na expectativa de dados de lucro como esse e na esteira das disputas ideológicas mencionadas anteriormente, a antropóloga brasileira Ana Enne (2013) dedicou-se a sopesar a cobertura que o jornalismo das Organizações Globo haviam difundido sobre os protestos de rua de 2013. Grosso modo, em sua análise Enne evidencia o quanto essa emissora estava simplificando e "fechando" o debate em torno das manifestações a uma espécie de "visão única", sobretudo na defesa dos interesses de seus investidores (dentre eles, evidentemente, os patrocinadores das transmissões da Copa). Com isso, a autora ressaltou que, na defesa do status quo e da hegemonia do "mercado", efeitos diretos da "globalização perversa" no campo da mídia, o jornalismo da Globo havia ignorado em suas narrativas a apresentação de pontos de vistas diversificados e complexos sobre os movimentos próprios às Jornadas, centrando-se, quase que exclusivamente, nos episódios de confrontamentos e quebradeiras, simbolizados pela forma com a qual a emissora empregava o termo "vândalo". Por fim, Enne defende que a compreensão dos fenômenos socioculturais são mais plurais do que os aplanamentos e os consensos discursivos que estavam sendo alastrados, e, por isso, só poderia ser possível tentar entender as pulsões e demandas das Jornadas em sua universalidade se as mesmas tivessem sido situadas dentro de um processo histórico, e não à parte d’ele, ou seja, descontextualizadas, conforme observara nas difusões da Globo.
Vê-se, portanto, o quão importante é o não afastamento das discussões em busca de uma outra globalização, mais humana e solidária, com a procura por uma outra comunicação, mais plural e democrática. Em outras palavras, alheia ao "pensamento único" em prol do "pensamento crítico". Pois, como bem rememora Santos, Moraes, Ramonet e Serrano, o sistema midiático e as tecnologias que lhe dão forma desempenham papel-chave em nossa organização social, fortemente marcada pela espetacularização imagética, sobretudo no plano sociocultural. A questão é que ao se configurar, nos dizeres de Santos (2001), como uma das máquinas ideológicas mais destacadas do status quo, ou, nos termos de Moraes (2013), como um porta-voz dos valores do neoliberalismo, conjecturamos a existência de um uso político das tecnologias de mídia que tem como finalidade impetrar junto à população a concordância e aceitação dos preceitos da "globalização perversa".
De tal modo, a democratização dos veículos de comunicação e informação é peça fundamental no caminho rumo à "globalização humanitária", de forma que não seria exagero alegar que ambos os temas são intrínsecos. Logo, se para Santos (2001) uma outra globalização é possível, para Moraes, Ramonet e Serrano (2013) uma outra comunicação, idem. Para os quatro, no entanto, bastaria basicamente vontade política de utilizarmos as tecnologias existentes tendo como desígnio não a nutrição da "perversidade econômica e/ou cultural", e sim a promoção da "cidadania".

Considerações finais

O caminho por uma outra globalização perpassa o caminho por uma outra comunicação de um modo tal que é praticamente inconcebível pensar uma coisa sem a outra. Pois, seria inaceitável ao mundo que poderia ser manter as arcaicas políticas de privilégios financeiros e econômicos às elites globais e nacionais em detrimento das camadas populares (Santos, 2001). Muito menos admissível seria conservar as regalias dos grupos de comunicação hegemônicos, os quais, mundo afora, arrecadam fortunas e colecionam concentrações e fusões (Moraes, 2013) enquanto persistem em "fabular" a realidade da "globalização perversa" (Santos, 2001).
Nesse sentido, as Jornadas de Junho nos demonstraram o quanto os dois assuntos estão integrados. Isto é, o quanto o desejo pela "globalização humanitária" (com a disseminação da igualdade de direitos, deveres e oportunidades) passa pela efetiva democratização dos meios de comunicação (com o abandono do "fechamento" dos significados, da descontextualização e da celebração do consumismo, em benefício da valorização da pluralização, da complexificação dos fatos e acontecimentos e dos valores da cidadania). Entretanto, seria um lapso não lembrar que o inconformismo com as políticas neoliberais da "globalização perversa" não veio à tona apenas no Brasil. Protestos eclodiram, também, no Egito, na Turquia, na Grécia, na Espanha, na Itália, nos EUA, dentre outros países. Em comum, mesmo que com variações e especificações locais na pauta, todos expressaram o descontentamento com as medidas econômicas atualmente em vigor e a vontade de fazer do mundo como ele é um mundo mais humanitário.
No Brasil, a Copa do Mundo de Futebol 2014 parece ter sintetizado e/ou canalizado as pressões populares na expressão do desejo por esse mundo que poderia ser. Talvez isso explique o porquê de, às vésperas do início da competição, a expressão "Não vai ter Copa!" ter se popularizado. Embora alguns a tenham interpretado como um anúncio de "sabotagem" dos movimentos sociais e dos grupos opositores ao evento, o termo parece adquirir mais sentido quando pensado no campo das disputas simbólicas. Isto é, quando ponderado em contraposição à afirmação do governo de que estava preparando a "Copa das Copas" e em alusão ao desagrado com os gastos com a organização do evento.
Segundo levantamento do Instituto de Pesquisas Datafolha, faltando poucos dias para o início da competição predominava uma conjunta de descontentamento generalizado. Para se ter uma noção do quadro, em novembro de 2008 10% dos brasileiros declaravam ser contrários à organização do evento. Em abril de 2014, o índice saltou para 41%. Na mesma sondagem (abril de 2014), 55% achavam que o evento traria mais prejuízos do que benefícios à população.18 Entretanto, esses índices variaram com a proximidade, o decorrer e o pós-Copa. Assim, outro instituto de pesquisa, o Ibope, levantou que se em 10 de junho, dois dias antes da partida inaugural, 54% dos consultados apoiavam o mundial, em 15 de julho, dois dias após o encerramento, esse percentual havia saltado para 66%. Outros números, porém, ainda revelavam certo pessimismo. Em julho, 55% voltaram a declarar que a Copa traria mais prejuízos do que benefícios ao país (o mesmo percentual que o levantamento feito pelo Datafolha havia registrado em abril), ao passo que 19% declararam acreditar que a Copa seria uma boa oportunidade para a geração de empregos (em junho, eram 35%).19
Eis, por fim, dois dos maiores desafios que enxergamos e apontamos como obstáculos a serem ultrapassados em alternativa à "globalização perversa": erigir a "globalização mais humana", com a disseminação das oportunidades, deveres e direitos em igualdade para todos; e democratizar os meios de comunicação, com o rompimento dos laços entre a "financeirização" e a "produção simbólica", mirando a elaboração e a difusão de informações plurais e descentralizadas do "pensamento único".

Notas:

1 Para mais, ver "Manifesto do partido comunista (1848)". Referências completas na seção de "Referências bibliográficas".

2 Disney, News Corporation, Time Warner, CBS, Viacom, CC Media Holdings e Life Nation Entertainment (Moraes, 2013: 23).

3 Maio de 2014, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=QOxPswJn_uA.

4 Maio de 2014, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=KcmAmJZc604.

5 Ao longo deste artigo, quando aplicamos o conceito de "ordem" e seus preceitos ("pureza", "sujeira", "poluição", "faxina" e "higiene") os utilizamos no sentido em que Bauman (1998) os emprega.

6 Citamos como ilustração simbólica, pela notoriedade do episódio, o chamado "Caso Amarildo", ajudante de pedreiro, morador da "pacificada" favela da Rocinha, localizada na rica e próspera zona sul do Rio de Janeiro, torturado até a morte por policiais da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da comunidade, em níveis de crueldade tais que remetem aos assassinatos cometidos por agentes do Estado durante os anos da Ditadura Militar brasileira (1964-1985). Maio de 2014, disponível em: pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Amarildo.

7 Uma página no Facebook, chamada Rio $urreal – Não pague, virou fenômeno no meio midiático brasileiro ao "denunciar" os "extorsivos" (ou surreais) preços cobrados no Rio de Janeiro (em bares, restaurantes, estacionamentos etc.). Com o sucesso, a página passou a receber (e publicar) contribuições de internatas indignados e perplexos com a escalada dos valores dos serviços na cidade, nos mais diversos estabelecimentos e ramos.

8 Maio de 2014, disponível em http://www.portalpopulardacopa.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=355:remo%C3%A7%C3%B5es-for%C3%A7adas-para-copa-e-olimp%C3%ADadas-no-brasil-er%C3%A3o-tratadas-em-sess%C3%A3o-do-conselho-de-direitos-humanos-da-onu.

9 Maio de 2014, disponível em http://www.zap.com.br/imoveis/fipe-zap/.

10 Maio de 2014, disponível em http://economia.uol.com.br/financas-pessoais/calculadoras/2013/01/01/indices-de-inflacao.htm.

11 Dois portais ficaram famosos por defenderem abertamente a existência de uma bolha imobiliária no Brasil, cuja existência segue negada pelas autoridades governamentais e representantes do setor imobiliário: o "Bolha Imobiliária" (www.bolhaimobiliaria.com), o qual procura fundamentar a existência da "bolha" através da exposição de argumentos teóricos embasando-os em dados econômicos e mercadológicos concretos, e o "Tem algo de errado ou estamos ricos??" (www.estamosricos.com.br), que compara o preço (e a qualidade) das moradias à venda no Brasil com as do exterior.

12 Maio de 2014, disponível em http://esporte.uol.com.br/rio-2016/ultimas-noticias/2014/04/16/orcamento-olimpiada-de-2016.htm.

13 Maio de 2014, disponível em http://anistia.org.br/direitos-humanos/blog/anistia-internacional-lan%C3%A7a-campanha-mundial-contra-repress%C3%A3o-aos-protestos-du.

14 Como ilustração, sugerimos ver imagens publicadas no site do jornal O Globo. Maio de 2014, disponível em http://oglobo.globo.com/rio/a-decoracao-anti-copa-nas-ruas-do-rio-12531916.

15 Maio de 2014, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Bx7BQkdGPro.

16 Maio de 2014, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=RCR68eAYrvk.

17 Maio de 2014, disponível em http://propmark.uol.com.br/midia/48455:globo-e-a-estrategia-para-a-copa.

18 Maio de 2014, disponível em http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2014/04/1437519-cai-apoio-dos-brasileiros-a-realizacao-da-copa-do-mundo-no-pais.shtml.

19 Agosto de 2014, disponível em http://blogs.estadao.com.br/marcelo-moraes/pesquisa-mostra-aumento-de-apoio-a-copa-e-grande-decepcao-com-selecao-brasileira/.

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Registro bibliográfico:

THEBALDI, Bruno. "La Copa de los "tres mundos". Reflexiones sobre globalización, media y la Copa 2014" en La Trama de la Comunicación, Volumen 19, Anuario del Departamento de Ciencias de la Comunicación. Facultad de Ciencia Polí tica y Relaciones Internacionales, Universidad Nacional de Rosario. Rosario, Argentina. UNR Editora, enero a diciembre de 2015, p. 217-231. ISSN 1668-5628 - ISSN digital 2314-2634.

Fecha de recepción: 28-05-2014.
Fecha de aceptación: 20-08-2014.

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