Introdução
Ao longo da história do jornalismo, ou das mídias jornalísticas, três fatos se destacavam: o primeiro curso superior surgira na Escola Missouri de Jornalismo, em Columbia, Estados Unidos, em 1908;1 as pesquisas mais relevantes começaram a se projetar a partir da década de 1940, principalmente com Harold Lasswell (Teoria Hipodérmica, 1948) e Claude Shannon e Warren Weaver (Teoria Matemática da Comunicação, 1949), todos nos Estados Unidos; tornou-se lugar-comum conectar a origem do lead (o primeiro parágrafo noticioso) à Guerra da Secessão (conflagração civil norte-americana, ocorrida de 1861 a 1865).
O desenvolvimento contemporâneo de uma imprensa livre, atuante e de dimensão mundial, atribuía-se até então somente à influência das Revoluções Industrial (a partir de 1720, na Inglaterra), da Independência Americana (1776, nos Estados Unidos) e Francesa (1789-99). Portanto, sob o ponto de vista tradicionalista, o jornalismo resultava do conjunto de esforços e impactos causados por fatos históricos desenrolados na Inglaterra, Estados Unidos e França, por meio das novas invenções e avanços tecnológicos, das garantias constitucionais de livre expressão e de declarações de direitos para os cidadãos.
Ao verificar as entrelinhas de outras fontes, revelam-se posicionamentos e achados que se contrapõem ao ensino histórico legado durante mais de um século como referencial unilateral da gênese jornalística, incluindo as primeiras pesquisas e até mesmo a concepção do lead. Neste artigo, pretende-se expor outro aspecto, no qual o jornalismo aflora como resultado dos desdobramentos da Reforma Protestante e não da visão aceita e difundida pelo tradicionalismo histórico, vinculando-o exclusivamente às forças decorrentes das revoluções mencionadas.
É preciso também esclarecer algumas diferenças terminológicas. O judeu-alemão Johannes Gensfleisch Gutenberg não inventou a imprensa jornalística, mas aperfeiçoou conceitos que geraram a tipografia.2 Em seus primórdios, as oficinas tipográficas produziam livros. Décadas depois passaram a imprimir outros modelos de impressos. No entanto, sabe-se agora que o jornalismo impresso não nasceu no formato conhecido atualmente de jornais e revistas, mas nas configurações de livros e panfletos, fanzines. Desse modo, “mídia impressa” ou “imprensa jornalística” não tem o mesmo significado de “imprensa tipográfica” ou “editora literária”.
Engenharia do Discurso
Estruturada sobre três pilares, a Teoria da Engenharia do Discurso surgiu ao se verificar a deterioração dos fazeres jornalísticos e o modo como estes impactavam o sistema democrático. Para tanto, a compreensão dos conceitos “palavra de ordem”, “atribuições do outro” e “linha fronteiriça” se tornam basilares mesmo diante de uma revisão histórica, como a discutida neste artigo.
Esclarece-se aqui que tais premissas se desenvolveram em outras teorias. Enquanto Ernesto Laclau3 detalha o funcionamento da “palavra de ordem” no quadro narrativo, Chantal Mouffe4 esmiúça as características do “outro” nas interações sociopolíticas, e Boaventura Santos5 demarca com propriedade os efeitos das linhas abissais, ou fronteiriças, sobre as relações entre metrópoles e colônias, e o modo pelo qual suas raízes continuam bem ativas. De maneira indireta, Tzvetan Todorov6 também aborda essas conceituações, sem necessariamente abordá-las como principal objeto de pesquisa.
A palavra de ordem emerge costurada na cadeia discursiva, apropriando-se da atenção dos públicos. Entenda-se “públicos” como leitores, radiouvintes, telespectadores, internautas - ou seja, os navegantes do mundo digital em veículos de conteúdo jornalístico. No caso, consumidores midiáticos das narrativas da imprensa, da produção jornalística em qualquer plataforma, de gênero informativo, interpretativo, opinativo ou diversional, e respectivas categorias, subcategorias. A palavra de ordem pode se manifestar literalmente, assim como se sobrepor enquanto concepção ideológica nos relatos.
O aparente ataque terrorista aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, suscitou uma palavra de ordem amplamente difundida pelos meios de comunicação, repetindo-se mesmo uma década mais tarde. “Foi o maior ataque terrorista da História” transbordava nas pautas de telejornais, revistas, diários, emissoras de rádio e veículos digitais como a suprema verdade, a de que os norte-americanos se tornaram alvos e vítimas de uma conspiração mundial liderada por fundamentalistas islâmicos. Utiliza-se a palavra de ordem não apenas para enfatizar determinado ponto, tese, conceito filosófico, interesse político-partidário, mas para convocar os públicos receptores do conteúdo midiático, aprovando uns e reprovando outros. A palavra de ordem se encarna junto à linha editorial adotada, algumas vezes na forma de um manual de redação, do qual se extraem as diretrizes patronais presentes nas entrelinhas das narrativas.
Se árabes, ou palestinos, atacam e israelenses respondem, não se sabe ao certo. Talvez evidencie como descrição correta dos fatos no Oriente Próximo, ou se trata de mera construção da imprensa internacional. Certeza mesmo, somente a palavra de ordem projetada em veículos do mundo inteiro construída nessa sequência: “Árabes atacam, Israel responde”.7 Em ambos os exemplos anteriores, a imprensa usou palavras de ordem para tentar obscurecer a compreensão a respeito de outros fatos, tornando os eventos mais recentes detentores do discurso ideal para os respectivos públicos. Diante desse cenário, “mesmo entre supostos concorrentes, comumente encontra-se certa harmonia discursiva, com poucas ou raras notas dissonantes e independentes - dissonantes quanto às narrativas cujas mídias buscam hegemonizar; independentes ao tentarem projetar sua particularidade discursiva”.8 Ou seja, as alianças corporativas se entrelaçam por meio dos discursos, sem a necessidade de amálgamas legais, sindicais, consorciais, associativos, corporativos.
Comumente, a palavra de ordem se associa à uma paixão: fascínio, deslumbramento, expectativa, decepção, surpresa, confirmação, medo. Durante o período da pandemia, cujo tempo se prorrogava cada vez mais, a paixão do medo se sobressaiu em meio ao “fique em casa”, mesmo essa palavra de ordem não tendo sido empregada literalmente nos textos jornalísticos. Contudo, a sentença imperativa insistia na convocação dos públicos para uma ação, permanecer em casa distante dos riscos do misterioso coronavírus, ou mantendo o devido distanciamento entre as pessoas.
Ao convocar os públicos, a palavra de ordem os aproximará do Outro ou os afastará ainda mais. Atributos com polaridade positiva agregam os públicos ao Outro, tornando-o Outro-amigo. Por outro lado, os públicos se distanciam do Outro-inimigo devido aos atributos com polaridade negativa, inadmissíveis para a percepção cosmovisionária da imprensa. O enunciador midiático busca convocar e “convencer o leitor desse saber para que ele deseje a aproximação ou o afastamento do Outro. Afinal, existe uma política editorial a ser cumprida e é preciso mostrar argumentos em defesa do discurso contrário, favorável ou moderado”.9 Em algumas ocasiões, o Outro pode ser tão somente tolerável. Não significa que ele detenha atributos com polaridade positiva, mas se deve suportá-lo por força de lei, interesses políticos, econômicos, ideológicos, patronais nem sempre esclarecidos, para depois, na oportunidade mais propícia, descartá-lo.
As narrativas contêm palavras de ordem convocadoras dos públicos para aceitar ou rejeitar o Outro. Essa rejeição parte da premissa da existência de uma linha fronteiriça convertendo um dos lados como superior àquele presente do lado oposto.
Arma ponderosa
Contíguo ao desenvolvimento das técnicas de impressão por Gutenberg, outro elemento se posicionou de modo relevante nas transformações que colocariam fim ao mundo medieval e romperiam as amarras impostas pelo catolicismo e monarquias aliadas. Sem o papel, não existiria a imprensa. O papel se transformou no mais poderoso instrumento das instituições e indivíduos, bem ou mal-intencionados.
Em sua narrativa a respeito da importância do papel junto ao aperfeiçoamento da imprensa tipográfica, Wilson Martins sublinha como fator de mudança e impulso do papel a necessidade de renovação espiritual dos usuários, interlocutores e leitores diante de uma sociedade decadente. Daí a consideração do papel como “a grande arma, a arma mais perigosa, mais potente e de maior alcance já inventada pelo homem”.10
Havia, assim, a urgente necessidade de um ambiente propício para o estabelecimento das tipografias. De Mainz, na Alemanha, em 1439, as oficinas se espalharam pelo continente. Todavia, a Holanda se moldou como o principal referencial até o final dos anos 1700. Em decorrência da liberdade espiritual, o reino holandês contribuiu para a “democratização da cultura”, segundo Martins,11 e o enaltecimento do humanismo, modificando o panorama europeu nos âmbitos político, econômico, social, cultural e religioso.
Aqueles que se sentiram afligidos pelas vozes do papel não permaneceram silentes. A Igreja Católica tratou de levantar a censura, amparada pelos auspiciosos serviços do braço estatal. Martins caracteriza a “hostilidade contra a palavra escrita” como “profunda, inconsciente e imortal”.12 Deve-se enfatizar que a censura não se restringiu ao círculo católico. Os protestantes reagiram de modo análogo. Sousa13 relata o decreto de normas governamentais com o intuito de regular o fluxo noticioso, cuja leitura era considerada perigosa. A emissão de leis cerceadoras da livre expressão não partiu apenas da esfera religiosa, estendendo-se também à própria academia, tal como a imposição legal aplicada pela Universidade de Colônia, na Alemanha, em 1475, contra a produção e a leitura de notícias. Já o papa Alexandre VI, por meio da Bula Intermultiplices, em 1488, instaurou a censura prévia.
Outro instrumento de controle se manifestou pelo “sistema de licenciamento prévio” para a instalação de tipografias. Somente os indivíduos simpáticos às autoridades civis e religiosas recebiam a tal “concessão pública” para a impressão de livros. Depois da promulgação da Index Librorum Prohibitorum pelo papa Paulo IV, em 1559, “alguns dos editores-tipógrafos, pré-jornalistas, chegaram mesmo a morrer às mãos dos carrascos papistas por causa daquilo que escreveram, tais como os italianos Niccolo Franco e Annabale Capello”.14 A reação do papado às publicações continuou. Em 1570, Pio V editou um documento banindo os escritores que o difamassem, colocando-os diante da Justiça secular. Logo depois, em 1572, Gregório XIII proibiu a produção noticiosa em Roma, punindo com a morte todos os editores que desafiassem o edito papal.
Não obstante as tentativas religiosas e estatais de proibirem terminantemente a livre expressão da palavra escrita ou oral, nada conseguiu conter o desejo de acesso aos emergentes conteúdos literários e noticiosos que germinavam das tipografias. Martins acredita que o homem adquiria “plena consciência da sua força espiritual e se” atirava “ao livro como o sedento se atira à água”.15 Ele contempla nesses indivíduos uma “fome de leitura”, cujo lançamento apareceu no momento mais propício da história humana. Alberto Manguel menciona que Carlos II, da Inglaterra (1660), defendia o ensino de Lutero, pelo qual “a salvação da alma dependia da capacidade de cada um ler a Palavra de Deus por si mesmo”.16
Se por um lado a palavra de ordem do discurso político-religioso estimulava a leitura, na ponta contrária a leitura se recheou de proibições. Enquanto uns aproximavam o Outro, tratando-o como amigo e lhe concedendo os privilégios do mesmo lado da linha fronteiriça, havia opositores que consideravam o Outro como inimigo, pois acreditavam e defendiam o acesso à informação como privilégio de um seleto grupo, pequeno em número, mas grande e temido em poder.
Pré-jornalismo
Já no século 16 apareceram relatos de acontecimentos denominados “folhas volantes”. Jorge Sousa17 chama esse novo fenômeno de “pré-jornalístico”, cujo período incorporou todos os dispositivos empregados para a produção das narrativas noticiosas. Sob esse prisma, já se pode antecipar e interpretar o jornalismo como resultado de iniciativas anteriores às Revoluções Industrial, Americana e Francesa.
Entre os dispositivos pré-jornalísticos, destacam-se dois: as folhas volantes e os livros noticiosos. As folhas volantes, conhecidas também como ocasionais, noticiosas ou de relações, mostravam-se no formato de panfletos vendidos nas feiras, comumente nas de Gênova e Veneza - nesta recebeu o nome de gazzetta, termo referente à moeda usada para adquirir o impresso. Sousa explica que essas publicações herdaram diferentes nomes:
Relação, notícia, carta, manifesto e cópia (Portugal), avvisi, relazione, gazzetta, broglieti e fogli a mano (Itália), price-currents (Reino Unido), cartas nuevas (Espanha), zeitungen (Alemanha), occasionnel (França), etc. Porém, em nenhum lugar tiveram título ou periodicidade regular. Na primeira página, normalmente surgia o título da notícia a que se referiam, a data e o local de impressão. Algumas eram ilustradas com uma xilografia. Às vezes eram encadernadas como pequenos livros, o que se justificava, inclusivamente devido ao número de páginas que algumas tinham (mais de 20, chegando às centenas em alguns casos).18
Se a alguns conjuntos noticiosos determinavam o modelo de livros, não é impróprio afirmar a existência de uma “imprensa” ou “mídia” jornalística no século 16. Segundo Sousa, os livros ou opúsculos noticiosos agrupavam informações e fatos “sérios e com valor histórico”,19 de natureza popular e sensacionalista. Eles equivaleriam aos atuais anuários ou almanaques jornalísticos publicados por algumas empresas de comunicação, haja vista a periodicidade semestral ou anual. Atribui-se ao austríaco Michael von Aitzinger (1587) o pioneirismo dos livros noticiosos. Na década seguinte, o pregador luterano Conrad Lautenbach lançava em Frankfurt a Historicae Relationis Complementarum (1591).20
Para Sousa,21 o conceito de livro noticioso evoluiria para os anuários do século 20, comuns nas redações dos maiores periódicos do Ocidente. Talvez seja mais audacioso determinar que o livro noticioso do século 16 antecedeu o livro-reportagem, tal qual as folhas volantes e as cartas comerciais anteciparam a chegada dos jornais standard e tabloide, não obstante as diferenças físicas e editoriais entre as produções atuais e as de meio-milênio atrás. No formato de folhas volantes ou folhetins, o primeiro jornal apareceu em 1605, em Anvers, na Bélgica, sob a edição do judeu Abraham Verhoeven. Redigido “em francês e flamengo, publicando notícias locais, nacionais e do estrangeiro”,22 Nieuwe Tijdinghen (literalmente, “Novas Notícias”) despertou curiosidade e logo a ideia se espalhou pelo continente. Em Frankfurt, o Deutsch Frankfurter (1615) assumiu o pioneirismo ao publicar notícias do dia anterior.
Com o passar do tempo e o aprofundamento de novas pesquisas, achados em bibliotecas, arquivos e coleções, os nomes e datas desses pioneiros se projetarão para outras posições, cedendo lugar proeminente às eventuais descobertas.
Reforma
A novidade em se produzir informações e as espalhar pelas cidades, seja por meio das folhas volantes e livros noticiosos, ou mesmo pela literatura em si, não apenas se propagou nos territórios de domínio protestante. Até na Itália as tipografias causaram alvoroço, e a Igreja Católica soube tirar proveito, censurando os antagonistas e convocando os apoiadores.
A censura não se restringiu ao catolicismo ou se originou nas entranhas do Vaticano. O protestantismo percebeu os riscos da informação circulando descontroladamente. Para Martins, “a Reforma, fazendo da imprensa a sua arma talvez mais importante e mais perigosa, provocou as primeiras restrições” na França calvinista. “Uma espécie de censura prévia”,23 segundo Sousa,24 em cujo relato também indica Lutero elogiando as folhas noticiosas. Precedente “dos jornais de ‘qualidade’”, as cartas comerciais se notabilizaram sob a responsabilidade editorial dos Fuggers, família alemã de banqueiros da Baviera. Essas folhas noticiosas comerciais informavam os valores de compra e venda de bens e serviços, os cenários político e militar, opinando a respeito dos efeitos de qualquer sintoma social, econômico, religioso ou político sobre os negócios.
Apesar do significado e importância da Reforma no continente europeu, as ações mais decisivas a favor da modernização das instituições e do processo de abertura e liberdade ocorreram na Inglaterra de Henrique VIII, assistido pelo plebeu reformista Thomas Cromwell. Segundo o documentário “As verdades sobre a corte de Henrique VIII” (2015), da francesa Philos TV,25 o Ato de Supremacia (1534), formulado por Cromwell e assinado por Henrique VIII, foi o primeiro passo para a democracia. A partir desse decreto real, a Inglaterra rompeu com o Vaticano e o rei inglês se tornou o chefe da Igreja Anglicana, fechando os mosteiros e proibindo qualquer atividade católica no país.
Deve-se esclarecer que a ingerência sobre Henrique VIII não partiu exclusivamente do self-made-man (empreendedor) Cromwell, mas de modo primordial da “amante evangélica” Ana Bolena, influenciada por membros huguenotes da corte francesa, na qual vivera como dama de companhia da rainha Cláudia. Henrique VIII teve seis mulheres, sendo a última Catarina Parr, reformista cujo prazer era discutir temáticas religiosas. As ações e posicionamentos de Cromwell também revelaram plena ascensão ideológica sobre um descendente de sua irmã mais velha, Catherine. Mesmo não sendo contemporâneo do famoso parente, Oliver Cromwell iniciaria a derrocada do absolutismo na Inglaterra do século 17, implantando o parlamentarismo. O conjunto desses fatos históricos fortaleceu o pensamento puritano e o desejo de migrar para a América. Não se pode imaginar os Estados Unidos sem Henrique VIII, Ana Bolena, Catarina Parr e Thomas Cromwell. Sem o papel deles na história não existiriam os pais peregrinos. Nas circunstâncias intermediárias desses fatos históricos do império britânico nasceu The Courant (1621), o primeiro jornal inglês, e não diante do impacto revolucionário industrial do século 18.
A palavra de ordem naquele território luterano visava a alfabetizar a todos, pois as pessoas precisavam acessar a Bíblia para lê-la. Com a criação da Companhia de Jesus, a Igreja Católica tratou de estabelecer a sua palavra de ordem na Contra-Reforma, censurando o livre pensamento, proibindo publicações e restringindo o acesso à informação apenas ao clero e à elite nobre, com os devidos limites. Se, no mundo protestante, a educação tinha caráter universal, nos países católicos a elite financiava o ensino nas escolas e universidades administradas pelo clero. No contexto protestante, a imprensa começou a aprofundar raízes de liberdade de atuação, não necessariamente de expressão. Em países católicos, a imprensa se submetia aos ditames religiosos.
Pesquisa acadêmica
Seguindo um rumo contrário à tradição histórica da comunicação e da imprensa, Eduardo Meditsch26 e José M. de Melo27 reconhecem o alemão Tobias Peucer como autor da primeira tese de Jornalismo publicada no mundo. Defendida em 1690 na Universidade de Leipzig, a pesquisa Relationes novellae (“Relatos de novidades”) analisou a ética profissional e os critérios empregados para o desenvolvimento noticioso em contraste ao sensacionalismo e interesses comerciais.
Surpresa com o conteúdo e as abordagens de Peucer, Zélia Adghirni menciona a presença na tese dos “famosos ‘seis Ws’ e o ‘lead’, que tem sido considerado uma invenção norte-americana”. Segundo Adghirni, Peucer defendia “a origem dessa técnica de abertura do texto jornalístico” como resultante da “retórica cultivada nos discursos da antiguidade clássica”.28 Os seis Ws - Was, Wer, Wann, Wo, Wie und (e) Warum - equivalem às perguntas básicas introdutórias dos gêneros textuais noticioso e interpretativo - O quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê? Contemporâneos de Peucer, tais como Ahasverus Fritsch, Christian Weise e Kaspar von Stieler, também pesquisaram os diários e os impactos desses veículos “pré”-jornalísticos na Alemanha, 250 anos antes da célebre Escola de Chicago e dos estudos em comunicação de massa.
De acordo com Melo,29 o primeiro curso de Jornalismo do mundo surgiu na Universidade de Breslau, em 1806. Situada na ocasião em território dominado pela germânica Prússia, hoje é a cidade polonesa de Wroclaw. Como sequela dos constantes conflitos e invasões, o projeto não seguiu adiante e deixou apenas um acento de pioneirismo, ainda objeto de estudos.
Não há dúvida de que os norte-americanos tiveram um papel tão destacado quanto qualquer outro país no desenvolvimento do jornalismo, da academia, da pesquisa e da luta pela liberdade de imprensa. Consolidou-se durante quase um século o predomínio do pioneirismo estadunidense, britânico e francês na vanguarda histórica da imprensa, conservando características peculiares e modos diferenciados de fazeres jornalísticos, sem nenhum demérito à qualidade dos trabalhos desenvolvidos nos dois continentes. Se a palavra de ordem privilegiava as raízes do jornalismo moderno resultante das Revoluções Industrial, Americana e Francesa, as pesquisas do último quarto de século tratam de transpor a linha de separação das pesquisas direcionadas segundo padrões predeterminados.
Conclusão
Como se pode perceber, não há motivos para definir a história do jornalismo em decorrência apenas do impacto das revoluções ocorridas na Inglaterra, Estados Unidos e França. Devem-se considerar outros fatos, tais como o desenvolvimento da tipografia europeia, o aperfeiçoamento das técnicas de fabricação do papel, a repercussão do Renascimento e, acima de tudo, o abalo causado pela Reforma Protestante, com destaque para as ações contra as normas censoras da Igreja Católica e ajustadas ao direito à liberdade de consciência emergidas nas sociedades protestantes alemã, holandesa e inglesa.
Ademais, o desenvolvimento de pesquisas a respeito do fenômeno jornalístico -fosse como folha noticiosa, folhetim ou livro noticioso- e suas ações sobre o comportamento social, econômico, cultural, político e religioso, não podem ser aceitos como eventos propagados tão somente na academia a partir do século 20. Fato é que ainda há muito o que se pesquisar, a fim de resgatar essa memória distante, quase esquecida e pouco estudada. Vasculhar os baús históricos, analisar o conteúdo das narrativas, interpretá-los e contrastá-los junto às produções acadêmicas contemporâneas, do mesmo modo se inserem no contexto da pesquisa científica e não podem ser desprezados.
Enquanto potestade defensora das liberdades e da democracia, sem dúvida alguma o jornalismo se ajustou a muitos dos interesses ideológicos defendidos pela Reforma Protestante. Apenas aqueles que centralizam o poder, concebem a sociedade como servidora de objetivos particulares e combatem o jornalismo, tratando-o como o Outro-inimigo a ser coagido e, se possível, eliminado, como se percebeu escancaradamente nesses tempos obscuros provocados pela pandemia. Não poucas vezes até mesmo por “fogo amigo”. A Reforma moldou um novo mundo com o intuito de permitir o livre acesso à informação, especialmente à literatura religiosa. As conveniências posteriores ao período reformista se adaptaram ao jornalismo ou fizeram deste uma arma institucional favorável a outras finalidades.