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Relaciones internacionales

On-line version ISSN 2314-2766

Relac. int. vol.29 no.59 La Plata June 2020

 

Lecturas

Livro resenhado: Discurso Nacional e etnicidade em África. O caso da Guiné-Bissau (1959-1994)

Marcelle Carvalho*

Natalia Cabanillas2  **

2Professora no Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira- UNILAB, Ceará

MONTEIRO, Artemisa Odila Candé. Discurso Nacional e etnicidade em África. O caso da Guiné-Bissau (1959-1994). 2019. Appres editora, Curitiba: ISBN: 9788547338855.

No Brasil, sob a forte pressão do Movimento Negro, a Lei n. 10.639 foi sancionada em 2003, trazendo a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira para as escolas de ensino fundamental e médio (Gomes, 2019). Desde então, as universidades brasileiras começaram a se mobilizar para adicionar a disciplina de História da África nos cursos de graduação. As propostas de pesquisas na pós-graduação sobre a temática passaram a se avolumar. Em 2011 aconteceram dois Simpósios Temáticos de História da África no maior evento nacional voltado para as pesquisas na área de História: a ANPUH Nacional, na cidade de São Paulo. Na mesma data, em assembleia, foi aprovado o GT de História da África. Desde então, vem se firmando um espaço mais sólido de pesquisa na área (Ribeiro e Santos, 2013). Em paralelo, também foram implementadas as cotas étnico-raciais para o ingresso de estudantes negros/as nas instituições de ensino superior no Brasil. Contudo, o número de pesquisadoras negras com doutorado no país ainda é muito reduzido, sem atingir sequer 3%. E no que se refere ao número delas, que chegam ao corpo docente da pós-graduação, essa porcentagem cai para 0,4% (Ferreira, 2019).

Em nível internacional, a situação não é diferente para autores/as africanos/as, que ainda são uma minoria ensurdecedora no campo científico: a socióloga nigeriana Amina Mama calcula que apenas 1% dos artigos científicos publicados nos jornais de maior impacto em língua inglesa foram assinados por autores/as africanos. Se considerarmos ainda o gênero –autoras mulheres africanas– este porcentual diminuiria drasticamente. Isto não significa que as diversas instituições de ensino e pesquisa africanas ou os e as intelectuais africanos/as radicados/as fora do seu continente não produzam conhecimento, Pelo contrário, geopolítica da produção e difusão de conhecimento reflete o impacto do racismo estrutural; de forma tal que as pesquisas de autoria africana e sobre temáticas de estudos africanos dificilmente são parte das áreas mais prestigiadas dos campos científicos.

Por todos estes motivos, Discurso nacional e etnicidade em África: o caso da Guiné-Bissau (1959-1994), escrito por a Artemisa Odila Candé Monteiro, é um livro de grande contribuição para o conhecimento da História dos países lusófonos e seus desafios na contemporaneidade. O livro é fruto da pesquisa de doutorado realizada pela autora em uma instituição chave: O centro de Estudos Afro-Orientais, da UFBA, Salvador Bahia, um reconhecido polo de produção de conhecimento sobre África e Afro-Brasil. A UNILAB, onde a autora atualmente trabalha, é uma universidade federal cujo projeto contém como princípio a internacionalização da educação universitária, em acordos de cooperação internacional com os países africanos de língua oficial portuguesa (PALOPs), o que supõe tanto um currículo orientado ao ensino e pesquisa em estudos africanos quanto a recepção de alunos africanos oriundos daqueles países. Portanto, a partir das instituições brasileiras e em diálogo com diáspora negra brasileira, a autora elabora uma agenda de pesquisa particular, nesse espaço intersticial que a sua experiência multi-situada lhe permite (Hall, 2004). Uma agenda de pesquisa que não poderíamos chamar exatamente de endógena, nos termos do célebre filósofo Paulin Hountdonji (2008), pois não emerge de centros de produção de conhecimento situados no continente; mas que certamente não é exógena, pois responde às necessidades e preocupações dos/as intelectuais africanos/as sobre o devir político, social ou econômico dos seus países.

A pesquisa sobre Guiné Bissau aborda um tema ainda pouco explorado, contribuindo no enriquecimento do debate brasileiro para o avanço e cumprimento da Lei N. 10.639/2003. Se debruça sobre a questão do Estado, da identidade nacional e a construção das etnicidades em uma perspectiva histórica, assuntos que são preocupação em diversos estados pós-coloniais africanos. Em alguns sentidos, a autora recolhe elementos da historiografia nacionalista. Por exemplo, a erudição e esforço por documentar cada um dos processos históricos relatados em uma descrição densa nos lembra ao pedido de Joseph Ki-zerbo no primeiro capítulo da História Geral da África (2013) para estudar a História de África em seus próprios termos. Além disso, a abordagem da questão da cultura nacional apresenta uma nítida conexão com o pensamento de Amílcar Cabral, principal líder na luta pela independência em Cabo Verde e Guiné Bissau. Em outros aspectos, a obra retoma a agenda pós-independência, abordando temáticas controversas sobre a construção do Estado e apresentando a reconstrução do processo histórico através de uma sociologia dos conflitos multi-situada, o que bloqueia qualquer tentativa de leitura linear ou romantizada da história nacional. Monteiro escolhe os conceitos etnicidade e nacionalismo, historicizando a sua construção, problematizando e ampliando o nosso entendimento deste debate e suas manifestações sociológicas.

A obra, objeto desta resenha, é dividida em 5 capítulos, além da introdução e das considerações finais:

No primeiro capítulo, intitulado O processo fundante do Estado-nação: nacionalismo como instrumento de libertação, Artemisa Monteiro faz uma discussão sobre as concepções teóricas a respeito do nacionalismo, destacando a importância da criação, difusão e conscientização da ideia de “unidade” para uma África dividida, seja por sua diversidade orgânica ou pelas invenções dos colonizadores, com vistas à luta pela libertação dos países lusófonos. Destaca a importância do fortalecimento de um nacionalismo específico contra o colonialismo, que se sobressaísse e unisse todas as etnias da Guiné-Bissau e Cabo-verde, sem distinção de raça, cor, religião ou classe social. Demonstra as complexidades dessa empreitada, tendo em vista as divergências e tensões impostas pelo colonialismo. No período colonial, cada colônia foi tratada de forma diferente e os habitantes seguiram caminhos distintos. Cabo Verde desenvolveu grande número de “assimilados”, ou seja, indivíduos que adotaram a cultura portuguesa, com domínio da língua e do cristianismo, e com maior acesso à educação formal, inclusive ao ensino superior (em Portugal). Enquanto a maioria dos habitantes de Guiné Bissau não havia se convertido, mantinha-se conectada às suas diversas culturas e, consequentemente, eles eram excluídos de direitos básicos. A metrópole fortalecia uma política de distinção entre assimilados, mestiços e indígenas, intensificando progressivamente as diferenças sociais e econômicas entre as duas colônias. Desta forma, as realidades específicas traziam consigo ideias que tinham que ser trabalhadas, talhadas e encaminhadas pelos partidos políticos. Paralelamente, Portugal acirrava seu domínio sobre as colônias e aumentava a repressão contra as populações locais. O Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) assumiu a dianteira e buscou via pacífica de negociação com Portugal, porém, depois da negação sistemática, decidiu-se pela luta armada pela independência.

No segundo capítulo, Da Guiné portuguesa à Guiné Bissau: a ocupação efetiva e as guerras de pacificação, a autora contextualiza a chegada dos portugueses na costa ocidental africana de modo a identificar como a escravidão atlântica foi fundamental na desorganização das sociedades estabelecidas em África, prejudicando profunda e historicamente suas economias. Os interesses pelas especiarias africanas – marfim, âmbar, almíscar, couro, ouro, cobre e pimenta malagueta – movimentaram um forte comércio dentro do continente e, com a chegada dos portugueses, se associaram ao escravismo. A autora defende que a chamada escravidão pré-existente no continente não se equiparava à desenvolvida pelos europeus, entre muitos motivos, por fazer parte de um sistema que incorporava o escravizado à linhagem da família do senhor, com a perda da condição servil, enquanto os portugueses destituíam os africanos e seus descendentes de sua humanidade, reduzindo-os a bens móveis. Ao longo do século XX, as investidas portuguesas contra os colonizados se intensificaram. Destaca-se a importância da imposição do imposto de palhota no fomento à insatisfação e aos conflitos físicos violentos. Assim, distingue-se dois grandes momentos de resistência: resistência primária, entre 1913 e 1936, e a resistência secundária, a partir de 1952. O primeiro movimento era comandado por alguns segmentos étnicos e não tinha caráter independentista, eram respostas às “campanhas de pacificação” portuguesas, pautadas na violência física e moral contra as tabancas, através de chacinas, pilhagens e perseguições. A resistência secundária já era marcada por organizações urbanas clandestinas, organizadas por uma elite intelectual, com intenções independentistas. A luta armada se tornou o último recurso, com um discurso pautado no combate da exploração colonial, do trabalho forçado, falta de oferta da educação formal, discriminação no serviço público e na luta contra as discriminações raciais, sociais e econômicas entre nativos e assimilados. Dessa forma, os assimilados se organizaram a partir da clandestinidade, tendo em vista a impossibilidade de sua legalidade no regime colonial, como o PAIGC (1956), o Movimento de Libertação da Guiné –MLG (1958) e a Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné –FLING (1962). O foco da obra voltou-se para o PAIGC, tendo em vista a envergadura de suas mobilizações dentro dos países e seu destaque internacional, sendo que o MLG era radicalmente contra a união de Guiné-Bissau e Cabo Verde e o FLING teve maior dificuldade de adentrar o território guineense e estabelecer atividades militares entre a população.

No terceiro capítulo, Amílcar Cabral e o contexto do pós-guerra: os acontecimentos que impulsionaram a via armada na Guiné, Monteiro analisa como os movimentos pan-africanos da década de 1950 se desenvolveram frente à conjuntura internacional pós segunda guerra mundial. Demonstra como Portugal teve que reformular suas estratégias de ocupação, negando a existência de colônias e pregando pela ideia de províncias ultramarinas. Nesse mesmo momento histórico se destacou a obra do brasileiro Gilberto Freyre, com sua teoria do lusotropicalismo, que justificaria uma capacidade dos portugueses em se adaptar aos trópicos, contribuindo para o desenvolvimento das sociedades e estimulando a harmonização entre negros e brancos, com a elevação da representação portuguesa. A tese sofreu forte resistência entre os africanos dos diversos espaços lusófonos. Amílcar Cabral e outros articuladores do PAIGC evidenciaram internacionalmente as violências implementadas pelo colonialismo com base no Massacre de Pindjiguiti e no Estatuto dos Indígenas das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. A partir de 1959 houve maior participação das massas no PAIGC e, consequentemente, aumentou a demanda da alfabetização de seus membros, uma vez que os nativos não podiam frequentar as escolas no colonialismo. Assim, o partido passou a oferecer uma instrução básica para capacitá-los no domínio maior dos manejos da língua. Cabral, com pais caboverdianos e nascido em Guiné-Bissau, foi o principal articulador da luta, reforçando a importância da conscientização da população sobre sua situação de exploração, sobre as potencialidades da unidade e as estratégias da luta armada.

No quarto capítulo, A luta armada de libertação nacional e a consciência nacional: uma análise da conjuntura internacional, a autora apresenta uma narração densa da rede de acontecimentos e pessoas que contribuíram para a independência de Guiné Bissau nos mais diversos cenários, através de depoimentos, documentos e uma vasta bibliografia. A narração dos processos está organizada através de uma sociologia dos conflitos apresentando as tensões e as formas como os eventos acontecidos em Portugal, Inglaterra, Senegal ou Guiné Conakry se entrelaçam com a história guineense. A autora dedica cerca de 7 páginas à participação das mulheres, mostrando um valioso material de História Oral e trabalho de arquivo, produzido através de entrevistas realizadas com ex-combatentes; embora este não seja o foco do livro, o material emerge como uma linha promissória de pesquisa, em diálogo com a bibliografia produzida por mulheres africanas sobre as questões de participação política em outros países, e com possibilidades interpretativas parcialmente diferenciadas da autora de referência nesta temática, Patricia Godinho Gomes (2015).

No quinto capítulo, A Guiné Bissau no contexto das independências africanas e o nascimento de um estado africano: desafios e possibilidades, novamente, a autora se propõe inserir a reflexão sociológica sobre Guiné Bissau no debate ao respeito do caráter do Estado e a formação de identidades étnicas em contextos africanos. Este capítulo, de alguma forma se inscreve na agenda de debate de Amílcar Cabral: a questão da cultura e a formação da consciência nacional na construção do Estado pós-independência. É de salientar que Artemisa Monteiro aborda a questão étnica e da consciência nacional relatando os processos históricos através dos quais estas identidades se manifestam, e como essa abordagem oferece também um marco teórico conceitual implícito e que confronta de forma aberta o estigma de atemporalidade associado às identidades. Neste capítulo podemos também apreciar um minucioso trabalho de arquivos e entrevistas, através dos quais vão se apresentando os dilemas do período pós-independência, no que diz respeito às limitantes existentes na maquinaria estatal, as diferenças ao interior do PAIGC e as formas de lidar com elas.

Após essa breve explanação, ressaltamos o desafio de sintetizar os textos sem reduzir a riqueza de suas discussões. Destacamos a centralidade com que o tema da identidade e unidade nacional é conduzido na obra, dando consistência ao enfrentamento das diversidades e discordâncias em África. O conhecimento detalhado e bem documentado de 35 anos da história guineense merece um destaque especial, pois o período analisado (1959-1994) condensa mudanças de cenário muito aceleradas, seja no clima político, na ideologia, com as alianças e inclusive na própria institucionalidade do Estado guineense colonial e pós-independência. Sem dúvida, muitos temas de História da África demandam de quem pesquisa uma ginástica intelectual redobrada, para abordar temáticas com as quais as teorias históricas ou sociológicas disponíveis não foram pensadas ou não são adequadas. É neste desafio que o livro Discurso Nacional e Etnicidade em África é bem sucedido.

i. Bibliografia

FERREIRA, Lola. Menos de 3% entre docentes da pós-graduação, doutoras negras desafiam racismo na academia. Portal Geledés. Educação. 31/03/2019. Disponivel em: https://www.geledes.org.br/menos-de-3-entre-docentes-da-pos-graduacao-doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/Links ]

Gomes, Nilma Lino. (2019) O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]

Gomes, Patrícia Godinho. (2015) “O estado da arte dos estudos de gênero em Guiné Bissau: um estudo preliminar”. En: Outros Tempos, Brasil. v. 12, n.19, pp. 168-189. [ Links ]

Hall, Stuart. (2004) A identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. [ Links ]

Hountdonji, Paulin. (2008) Conhecimento de África, Conhecimento de Africanos. Duas Perspectivas sobre os Estudos Africanos. En: Revista Crítica de Ciências sociais, Coimbra, v. 80, pp. 149-160. [ Links ]

Ki-Zerbo, Joseph. (2013) “Introdução Geral”. En Joseph KI ZERBO (Ed.) História Geral da África, t.I, Brasília: Cortez Editora y UNESCO, pp. XXXI- LVII [ Links ]

Mama, A. (2007) “Is It Ethical to Study Africa? Preliminary Thoughts on Scholarship and Freedom”, African Studies Review, Cambridge, v. 50, t.1, pp 1-26. doi:10.2307/20065338. [ Links ]

RIBEIRO, Alexandre VIeira; SANTOS, Vanicleia Silva. "De que África estamos falando” (I): perspectivas da pesquisa histórica e do ensino de História da África (do século XI à primeira metade do século XIX). XVII Simpósio Nacional de História. Conhecimento Histórico e diálogo social. ANPUH. Natal, RN. 19/08/2020. http://www.snh2013.anpuh.org/simposio/view?ID_SIMPOSIO=1066 Links ]

*

Doutoranda em História na Universidade Federal do Ceará

**

Professora no Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira- UNILAB, Ceará

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