INTRODUÇÃO
Zoonoses e a Família Felidae
Pressões antrópicas causam a destruição de habitats de diversos patógenos, que em busca de novos hospedeiros acabam se aproximando ainda mais do ambiente urbano. Essa aproximação pode ocorrer por meio de vetores, pelas excretas dos hospedeiros silvestres ou pelo contato dos mesmos com animais em ambientes rurais ou domésticos (Vora 2008). O contato entre esses animais resulta na troca de vários agentes patogénicos que apresentam grande perigo a vida silvestre e humana (Alho 2012). Há registro de 70 famílias de bactérias, vírus e outros parasitas para os quais os animais são os reservatórios naturais, porém ocasionalmente podem infectar o homem (Palmer et al. 2011). Muitas doenças humanas, de alto risco e infecciosas, surgiram com a contribuição de patógenos hospedados em aves e mamíferos, como o ebola virus, que é causador do ebola, o Yellow fever virus causador da febre amarela, o Rabies lyssavirus causador da raiva e o Human immunodeficiency virus causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) (Weiss 2001). O surgimento dessas novas doenças foi resultado da modificação do ecossistema, pois afeta as interações entre animais selvagens, animais domésticos e humanos (Alho 2012).
As zoonoses podem causar graves surtos, como aqueles causados pela gripe aviária (H5N1) e pela gripe suína (H1N1) (Alho 2012). Um exemplo no Brasil é o surto da febre maculosa ocorrido em Campinas, no estado de São Paulo, transmitida por carrapatos de capivaras que alcançavam novas cidades, como Piracicaba, por meio do transporte dos animais pelos rios (Barci & Nogueira 2006). Outro estado que apresentou surtos da mesma doença foi Minas Gerais, onde durante os anos de 2007 a 2017 foram notificados 189 casos da doença em humanos, resultando em óbito 37% desses casos (SINAN 2019). Além de surtos, são capazes de gerar pandemias como a causada pelo COVID-19, que teve sua primeira notificação em dezembro de 2019 na China, de onde se alastrou por todo o mundo (Chakraborty et al. 2020). A provável fonte desse vírus foram os morcegos, sendo este um grupo já conhecido como reservatório primário de diversas zoonoses, incluindo o SARS-Cov-2 (Barci & Nogueira 2006). Essa teoria é apoiada por uma pesquisa de comparação do sequenciamento genético da espécie patogênica ao homem e da espécie do mesmo gênero encontrada em morcegos, onde há o compartilhamento de 86.9% do genoma (Zhu et al. 2020). Somando-se a isso, outra pesquisa com os primeiros infectados pelo vírus na China, mostrou que 66% dos pacientes infectados tiveram contato com o mercado de frutos do mar Huanan, cidade de Wuhan, onde animais silvestres, como os morcegos, eram mantidos vivos ou eram abatidos para consumo (Xu 2020).
Os mamíferos possuem papel essencial na transmissão de zoonoses devido seu parentesco evolutivo e constante contato com os humanos (Acha & Szyfres 2003). Dentre eles destacamos a família Felidae, que é representada pelos melhores carniceiros, com a maior redução dentária (Nowak & Paradiso 1983). No ambiente urbano, temos o gato doméstico Felis catus (Linnaeus, 1758) como um importante reservatório de zoonoses, tais como toxoplasmose, esporotricose, bartonelose e toxocaríase (Acha & Szyfres 2003). Esse caráter também é observado, ainda que em menor escala, dentre os felinos silvestres (Acha & Szyfres 2003), os quais são frequentemente encontrados em áreas rurais, onde buscam alimento nos criadouros de animais (Genaro et al. 2001). Também podem entrar em contato com animais domésticos, como o cão Canis lupus familiaris Linnaeus, 1758 e o gato doméstico, em ambientes periurbanos (Acha & Szyfres 2003).
No Brasil, a diversidade recente dentro da família Felidae está dividida em quatro grupos monofiléticos, representados, respectivamente, pelos gêneros Panthera Oken, 1916, Puma Jardine, 1834, Herpailurus Severtzov, 1858 e Leopardus (Mattern & McLennan 2000; Moreno et al. 2006). De acordo com a taxonomia revisada de Felidae (Kitchener et al. 2017), esses gêneros são compostos pelas seguintes espécies: Panthera onca (Linnaeus, 1758), Puma concolor (Linnaeus, 1771), Herpailurus yagouaroundi (É. Geoffroy Saint-Hilaire, 1803) e, segundo revisões taxonômicas recentes do gênero Leopardus Gray, 1842 (Nascimento 2010; Nascimento & Feijó 2017; Nascimento et al. 2020), também ocorrem: Leopardus braccatus (Cope, 1889), Leopardus emiliae (Thomas, 1914), Leopardus geoffroyi (d’Orbigny & Gervais, 1844), Leopardus guttulus (Hensel, 1872), Leopardus munoai (Ximénez, 1961), Leopardus pardalis (Linnaeus, 1758), Leopardus tigrinus (Schreber, 1775) e Leopardus wiedii (Schinz, 1821), totalizando 11 espécies como potenciais reservatórios de agentes zoonóticos no Brasil.
Conservação
Os felinos são animais solitários, com baixas densidades populacionais e baixa taxa reprodutiva, pois sua ocorrência depende da qualidade ambiental e da disponibilidade de recursos (Rabinowitz 2002). Apesar disso, são capazes de ocupar todos os biomas brasileiros, além de mosaicos vegetais como pastagens e campos de cultivo (Paglia et al. 2012). Atuam no equilíbrio biológico de populações de pequenos e médios vertebrados nessas áreas, pois são predadores de topo, influenciando fortemente a cadeia trófica (Graipel et al. 2014). A onça-pintada (P. onca) e o puma (P. concolor) são consideradas espécies-bandeira, ou seja, são aquelas espécies que possuem papel essencial para aquisição de apoio social em projetos de preservação de áreas ambientais (Sanderson et al. 2002). Como são espécies de grande porte e predadores topo de cadeia, necessitam de grandes áreas de vida, o que possibilita a conservação de uma grande biodiversidade animal e de habitats (Sanderson et al. 2002).
Essas grandes áreas de vida e o papel ecológico dos felinos refletem uma alta exposição aos patógenos dos ambientes ou de suas relações intra e interespecíficas (Filoni 2006). O estudo das enfermidades e seus efeitos é importante para a conservação desses animais, pois os patógenos podem, eventualmente, ser zoonóticos, sendo necessário identificá-los para a tomada de medidas profiláticas apropriadas (Filoni 2006). Nesse contexto, o presente estudo teve como objetivo revisar a literatura sobre as zoonoses que acometem as linhagens viventes de felinos silvestres no Brasil e contribuir para o maior conhecimento sobre a atuação desse grupo taxonômico como reservatório de zoonoses. Discutimos o panorama dos estudos zoonóticos da família Felidae no país, os padrões apresentados pelos dados e suas possíveis justificativas.
MATERIAL E MÉTODOS
O levantamento bibliográfico foi realizando entre novembro de 2017 e outubro de 2018, em várias bases de dados on-line (descritas no próximo parágrafo), utilizando a maior variedade possível de palavras e seus sinônimos para alcançar mais resultados. Utilizamos as seguintes palavras-chaves: Felidae, Carnivora, Leopardus, Panthera, Puma, Herpailurus, Mammalia, Felinos, Brazil e South America combinadas aos pares com Zoonosis, Bacteria, Vírus, Protozoa, Nematoid, Rabies, Rabies lyssavirus, Rabies virus, Eastern equine encephalitis virus, Toxoplasma gondii, Toxoplasmose, Leishmaniose, Leishmania chagasi, Leishmania braziliensis, Doença de Chagas, Trypanosoma cruzi, Leptospira, Leptospirose, Clostridium dificile, Clostridium perfringens, Rickettsioses, Rickettsia, Erliquiose, Anaplasmose, Ehrlichia canis, Ehrlichia chaffeensis, Anaplasma platys, Anaplasma phagocytophilum, Bartonelose, Bartonella henselae, Brucelose, Brucella abortus, Brucella canis, Febre Q, Coxiella burnetii, Ancylostoma sp., Ancylostoma braziliense, Ancylostoma caninum, Capillaria sp., Dirofilariose, Dirofilaria immitis, Toxocaríase, Toxocara canis, Toxocara catti, Trichuris sp. e Trichuris vulpis.
As bases consultadas para busca de artigos sobre doenças infecciosas e parasitárias foram: LILACS - Literatura Latino- Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (http://lilacs.bvsalud.org/), BVS- Biblioteca Virtual em Saúde Doenças Infecciosas e Parasitárias (https://webofknowledge.com.br), na qual estão disponíveis diferentes bases de dados para pesquisa, dentre os quais foram utilizados as seguintes bases: MEDLINE: Literatura Internacional em Ciências da Saúde (http://bases.bireme.br/cgi-bin/wxislind.exe/iah/online/?IsisScript=iah/iah.xis&base=MEDLINE&lang= p&form=F), CidSaude (http://saudepublica.bvs.br/pesquisa/?fb=&output=site&lang=pt&from=1&sort=dachar372Bdesc&format=summary&count=20&page=1&q=&index=&filterchar375Bdbchar375Dchar375B char375D=CidSaude) e REPIDISCA (http://bases.bireme.br/cgibin/wxislind.exe/iah/online/?IsisScript=iah/iah.xis&base=REPIDISCA&lang=e&form=A). Além dessas, também foram úteis na busca de artigos completos, teses e dissertações as seguintes fontes: TESESSP - Biblioteca Virtual em Saúde Portal de Teses e Dissertações (http://bases.bireme.br/cgi-bin/wxislind.exe/iah/bvsSP/?&IsisScript=iahchar372Fiah.xis&nextAction=lnk&lang=p&base=TESESSP) e Google Acadêmico (http://scholar.google.com.br) eo Portal de Periódicos CAPES/MEC (http://www.periodicos.capes.gov.br/).
Para cada zoonose com detecção do agente etiológico, foram registradas as espécies de felinos e a localidade mais específica possível em que ocorreu o registro. O presente estudo teve como modelo as revisões realizadas para as ordens Chiroptera (Corrêa et al. 2013) e Cingulata (Capellão et al. 2015).
RESULTADOS
Foram encontrados na literatura 83 artigos ou dissertações com os registros de 19 zoonoses/agentes etiológicos para 10 espécies de felinos silvestres. As zoonoses são divididas em: duas causadas por vírus, cinco por nematoides, quatro por protozoários e oito por bactérias. A incidência das zoonoses foi mais elevada nas regiões Centro-Oeste e Sudeste (com 15 e 14 das 19 zoonoses registradas, respectivamente), enquanto as regiões Norte e Nordeste apresentaram os menores números, com apenas cinco zoonoses cada uma (Fig. 1). Os acrônimos utilizados para as unidades da federação e regiões do Brasil registradas encontram-se no Apêndice S1. A relação das localidades e coordenadas geográficas encontram-se no Apêndice S2.
Os registros das zoonoses e agentes etiológicos encontrados no presente estudo são relacionados como a seguir:
Vírus
No ciclo silvestre os felinos são reservatórios do Rabies lyssavirus (RABL) e Eastern equine encephalitis vírus (EEEV) (um único registro) (Onuma et al. 2016). Os vírus foram identificados em 55% das espécies de felinos do Brasil, sendo 63% pertencente ao gênero Panthera, 26% Leopardus e 11% ao Puma (Tabela S1). A maioria dos casos ocorreram na região mato-grossense, no Centro-Oeste do Brasil (Fig. 2).
Bactérias
Os felinos são reservatórios de bactérias de diferentes espécies e sorovares de Leptospira, Clostridium, Rickettsia, Ehrlichia, Anaplasma e Brucella, além de Bartonella henselae (Regnery et al., 1992; Brenner et al., 1993) e Coxiella burnetii (Derrick, 1939; Philip, 1948) (Tabela S2). As zoonoses causadas por bactérias apresentaram distribuição ampla, com registros de hospedeiros em todas as regiões do país e em 82% das espécies, sendo 56% no gênero Leopardus, 20% Panthera, 15% Puma e 9% em Herpailurus. O gênero Leopardus apresenta maior número de localidades com registros, incluindo todas as regiões do Brasil (Fig. 3).
Protozoários
Encontramos registros de Toxoplasma gondii (Nicolle & Manceaux, 1909), Leishmania braziliensis Vianna, 1911, Leishmania chagasi Cunha & Chagas, 1987, Cryptosporidium sp. e Trypanosoma cruzi Chagas, 1909 em felinos silvestres brasileiros (Tabela S3). Esses registros ocorreram em todas as regiões do país e em 91% dos felinos brasileiros, sendo 47% no gênero Leopardus, 27% Panthera, 17% Puma e 9% Herpailurus, apresentando maior variedade de localidades nos gêneros Leopardus e Panthera (Fig. 4).
Nematoides
Os felinos são reservatórios de Ancylostoma braziliense (Gomes de Faria, 1910), Ancylostoma caninum (Ercalani, 1859), Capillaria sp., Dirofilaria immitis (Leidy 1856) (Raillet & Henry 1911), Toxocara canis (Werner, 1782), Toxocara catti (Schrank, 1788) e Trichuris vulpis (Froelich, 1789). Há apenas um registro de dirofilariose em L. tigrinus, enquanto o restante dos nematoides atinge 82% das espécies de felinos brasileiros, sendo 66% dos registros no gênero Leopardus, 18% Herpailurus, 10% Puma e 6% Panthera (Tabela S4). Os registros desses nematoides em felinos possuem maior incidência nos estados do Rio de Janeiro e Pará, no Sudeste e Norte, respectivamente, e abrangem todas as regiões brasileiras (Fig. 5).
A Fig. 6 inclui um resumo do número de espécimes infectados, incluindo todos os agentes etiológicos, por espécie de felino silvestre. As espécies L. pardalis, L. tigrinus, P. onca e P. concolor apresentaram o maior número de indivíduos infectados, considerando todas as categorias juntas (vírus, bactéria, protozoário e nematoides). Um panorama das regiões de procedência das instituições atuantes no estudo das zoonoses em felinos no Brasil pode ser consultado na Fig. 7 (gráfico baseado nos autores correspondentes) e nas Tabelas S1-S4.
DISCUSSÃO
Prevalência e distribuição das zoonoses entre os felinos
Os gêneros Leopardus, Panthera e Puma obtiveram mais registros nas zoonoses encontradas, sendo as espécies mais infectadas L. pardalis, L. tigrinus, P. onca e P. concolor. As espécies L. pardalis e L. tigrinus são hospedeiras, respectivamente, de 15 e 13 zoonoses, sendo encontradas em ambas as seguintes: anaplasmose, bartonelose, brucelose, erliquiose, leptospirose, raiva, toxocaríase e toxoplasmose, além de agentes como Capillaria sp., Clostridium spp. e Trichuris vulpis (Silva et al. 2001, 2014b; Filoni et al. 2012; Araujo 2012; Andre 2012; Lenharo et al. 2012; Almeida et al. 2013; Mazzotti et al. 2018; Dib et al. 2018; Figueiredo et al. 2018; Barbosa et al. 2019). Apenas em L. pardalis são encontradas: ancilostomose, doença de Chagas, leishmaniose e rickettsioses (Noronha et al. 2002; Jorge 2008; Reis 2012; Rocha et al. 2012), enquanto em L. tigrinus, exclusivamente, são encontradas: criptosporidíase e dirofilariose (Filoni et al. 2009; Holsback et al. 2013). Já as espécies de grande porte, P. onca e P. concolor, apresentam registros de 14 zoonoses cada, sendo encontradas em ambas as seguintes: anaplasmose, ancilostomose, bartonelose, brucelose, erliquiose, leishmaniose, leptospirose, raiva, rickettsioses, toxocaríase e toxoplasmose (André 2008; Widmer 2009; Moreira et al. 2009; André et al. 2010a; Dahroug et al. 2010; Guimaraes et al. 2010; Jorge et al. 2010; Holsback et al. 2013; Furtado et al. 2015; Silva 2015). Registros exclusivos em P. onca são criptosporidíase, encefalomielite equina e febre Q (Gaspari 2010; Widmer et al. 2011; Onuma et al. 2016), enquanto apenas em P. concolor são a doença de Chagas e os agentes Capillaria spp. e Clostridium spp. (Rocha et al. 2012; Holsback et al. 2013; Oliveira Júnior et al. 2016) (Fig. 6). Panthera onca e P. concolor possuem distribuição ampla, ocupando todos os biomas brasileiros (Paglia et al. 2012). Além disso, como observado nos registros, são muito encontradas em zoológicos e reservas ambientais (André et al. 2010a,b; Ullmann et al. 2010). A ampla distribuição e o grande porte desses animais provavelmente auxiliam no estudo zoonótico dessas espécies, pois facilitam a captura e a coleta de boas quantidades de sangue, um paralelo ao que ocorre em espécies de morcegos de grande porte (Corrêa et al. 2013).
Leopardus pardalis e L. tigrinus pertencem a um gênero que recentemente passou por ampla revisão taxonômica (Nascimento 2010; Nascimento & Feijó 2017; Nascimento et al. 2020), o que explica possíveis identificações errôneas nos registros mais antigos.
Apesar disso, no caso de L. pardalis, a espécie possui altas densidades populacionais e ampla área de distribuição, sendo encontrada em todos os biomas do Brasil e habitando desde áreas conservadas até ambientes bastante modificados (Di Bitetti et al. 2008). Tais fatores contribuem para o fato dessa espécie ter sido fortemente registrada nos estudos em busca de agentes zoonóticos. As espécies com os menores índices de infecção pelos agentes zoonóticos (L. braccatus e L. geoffroyi) representam a escassez de estudos e o baixo número de amostras levantadas para esses táxons. Por outro lado, L. emiliae, que não apresenta qualquer registro de um agente zoonótico, era até recentemente considerada sinônimo junior de L. tigrinus (Nascimento & Feijó 2017). Esse resultado pode ser, também, decorrente da identificação errada das espécies, do modo de vida desses animais, sua densidade populacional e seu estado de conservação, já que essas espécies estão incluídas em alguma categoria de ameaça da Lista Nacional das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção (DOU 2014).
Panorama geográfico das zoonoses em felinos silvestres
A geografia das zoonoses registradas na literatura demonstra algumas discrepâncias entre as localidades amostradas e as instituições pesquisadoras. Esse fato pôde ser observado dentre as zoonoses causadas por bactérias, pois seus registros ocorrem em todas as regiões do país, sendo que o Norte e o Nordeste possuem registros escassos (Fig. 1). O padrão de distribuição dos registros de zoonoses observado em felinos parece estar relacionado com a procedência das instituições pesquisadoras, pois essas ocorrem em maior número no Sudeste e Centro-Oeste (Fig. 7). Nas zoonoses causadas por vírus, há registro em felinos nas regiões Centro-Oeste e Sudeste. Diferente do que ocorre com as bactérias, as instituições pesquisadoras localizam-se nas mesmas regiões de registro, exceto por uma instituição do Nordeste (Universidade Federal Rural do Semi-Árido- UFERSA).
Em estudos de zoonoses causadas por protozoários em morcegos (Corrêa et al. 2013) e tatus (Capellão et al. 2015), apresentam um padrão semelhante na distribuição das mesmas espécies de protozoários listadas no presente estudo, exceto que não há registros na região Sul nesses grupos. A distribuição dessas zoonoses em felinos é compreendida pela atuação de instituições pesquisadoras deste grupo em todas as regiões brasileiras (Tabela S2).
Os registros de zoonoses causadas por nematoides permeiam todas as regiões do país. As principais instituições pesquisadoras desse grupo são localizadas no Sul e Sudeste, demonstrando a importância das instituições dessas regiões para o estudo zoonótico não apenas na categoria de nematoides, mas em todas as categorias aqui listadas.
Zoonoses com especial importância para o homem
A toxoplasmose é intimamente ligada à presença de felinos, os únicos hospedeiros definitivos (Dubey 1996), encontramos os estados de São Paulo e do Pará como os maiores registros de espécies infectadas (Whiteman 2007; Minervino et al. 2010; Silva et al. 2014a, 2016; Marujo et al. 2017). Sabendo-se que a incidência de anticorpos IgG contra o protozoário na população humana é maior nas regiões Norte, Sul e Centro-Oeste (Frenkel 2002; Lovison & Rodrigues 2017), observa-se que os registros encontrados em felinos coincidem com os estados de maior incidência do agente em humanos.
A raiva humana, no Brasil, obteve picos de incidência nas regiões Norte e Sul a partir do ano 2005, apresentando um gradativo decréscimo de sua prevalência nos anos seguintes (Wada et al. 2011). Esses dados contrastam com os registros observados em felinos, pois ocorreram nas regiões Centro-Oeste e Sudeste. Isso parece estar vinculado às principais instituições que atuam na pesquisa da raiva, pois estão presentes nessas mesmas regiões.
A incidência da lepstospirose, entre 2007 e 2017, foi maior nas regiões Sul (13 687 casos) e Sudeste (14 036 casos) (SINAN 2019). Sendo esses registros coincidentes com as regiões de elevados registros da bactéria em felinos. Além disso, também foi bastante registrada em felinos na região Centro-Oeste (20.5%), onde ocorreu a notificação de 593 casos de leptospirose humana, no mesmo período (SINAN 2019). Em felinos observamos uma grande variedade de sorovares e maior incidência nos estados de São Paulo (que também é o estado com maior prevalência da doença humana), Paraná e Mato Grosso. Não houve registros em felinos na região Norte, apesar de haver razoável prevalência da doença humana na região (SINAN 2019).
A brucelose causa sérios problemas sanitários e econômicos para o país e possui maior prevalência em humanos nas regiões Sul e Sudeste (Brasil 2011). Em contrapartida, nos felinos a incidência é maior nas regiões Centro-Oeste e Nordeste. Apesar desses dados provavelmente subestimarem a realidade da doença em felinos, demonstram também a falta de estudos sobre o agente no homem, pois os felinos indicam a prevalência da bactéria em regiões onde a mesma não é notificada em humanos.
Barreiras aos estudos das zoonoses
Os números de espécimes infectados encontrados na literatura provavelmente subestimam os valores reais, pois muitas regiões foram pouco amostradas, como Norte e Nordeste, apesar de possuírem áreas imensas. Além disso, outros fatores que prejudicam a pesquisa de agentes zoonóticos, não só em felinos, mas também em outros grupos de mamíferos silves tres, são as técnicas de diagnóstico, pois muitas vezes acusam, para um mesmo espécime, negatividade em um tipo de teste e positividade em outro (Capellão et al. 2015).
Tal problema foi observado na pesquisa de soroprevalência de T. gondii em felinos silvestres do estado do Pará, onde um espécime de H. yagouaroundi obteve resultado negativo na técnica de hemaglutinação indireta, porém positivo na técnica de aglutinação direta modificada, ocorrendo também o inverso em outro espécime da mesma espécie (Silva et al. 2016). Essa discordância, assim como várias outras, demonstra a necessidade do aprimoramento dessas técnicas.
Há necessidade de algumas mudanças, principalmente relacionadas à tomada dos dados no campo, como a identificação precisa do local de coleta, pois em muitos casos não há especificação adequada da procedência do espécime (e.g., André et al. 2010b; Wada et al. 2011; Silva et al. 2014b; Oliveira Júnior et al. 2016). Em vista da problemática de especificar a localidade de cada espécime, alguns pesquisadores acabam adotando simplesmente a palavra “Brasil” como local de origem dos espécimes (e.g., Silva et al. 2001; Silva 2007; Silva et al. 2014a,b). Tais registros não permitem estudos aprofundados sobre a incidência das doenças e da origem de surtos, limitando as informações que podem ser extraídas do material coletado.
Quanto às informações sobre o espécime, dados como sexo, idade, densidade populacional e estação do ano em que as amostras foram coletadas são dados dificilmente tomados (Capellão et al. 2015).
Sendo essas as possíveis causas da variação na taxa de infecção encontrada nos felinos. Além disso, essas informações auxiliariam no aprimoramento de estudos sobre as zoonoses.
Outro fator importante que precisa ser aprimorado é a identificação correta das espécies reservatórios silvestres (Corrêa et al. 2013). O gênero Leopardus pode se apresentar como um grande problema, pois as espécies deste gênero são muito confundidas (Nascimento 2010). A identificação adequada desses espécimes é extremamente necessária para melhor compreensão do ciclo das suas respectivas zoonoses, além de facilitar a previsão de surtos, formas de disseminação, criação de ações profiláticas e identificação de situações de risco.
CONCLUSÕES
O presente levantamento é uma importante ferramenta para delinear um panorama dos estudos zoonóticos na família Felidae no Brasil. Observa-se a importância dos membros dessa família como reservatórios de agentes de várias zoonoses importantes, o que corrobora para a preservação dos habitats naturais dessas espécies. O Brasil não possui pesquisas em zoonoses com distribuição territorial homogênea, apresentando várias lacunas geográficas. As regiões Norte e Nordeste são as menos estudadas, apesar de possuírem as maiores áreas geográficas, o que demonstra a importância de mais estudos nessas regiões. A região Norte precisa ser mais almejada para estudos deste gênero, pois possui o bioma mais conservado em relação a vegetação original (Aguiar et al. 2016), e, por conseguinte, retém a maior diversidade biológica (Capobianco 2004).
Material suplementar
MATERIAL SUPLEMENTAR ONLINESuplemento 1 Apêndice S1. Acrônimos das unidades federativas do Brasil (1 a 19), do país (20) e instituições mencionadas nas tabelas do presente estudo (21 a 68). Ordem = número de acrônimos. Apêndice S2. Coordenadas geográficas das localidades conforme mapas nas Figs. 2, 3, 4 e 5. Tabela S1. Lista de espécies de felinos silvestres envolvidas em ciclos causados por Vírus no Brasil, discriminando o agente etiológico da zoonose. Tabela S2. Lista de espécies de felinos silvestres envolvidas em ciclos causados por Bactérias no Brasil, discriminando o agente etiológico da zoonose. Tabela S3. Lista de felinos silvestres envolvidas em ciclos causados por Protozoários no Brasil, discriminando o agente etiológico da zoonose.Tabela S4. Lista de felinos silvestres envolvidas em ciclos causados por Nematóides no Brasil, discriminando o agente etiológico dazoonose.