Introdução1
A cena de forja do escudo de Aquiles no âmbito da visita de Tétis a Hefesto em busca de novas armas para o filho (Ilíada XVIII. 369-617) é uma das passagens mais influentes e comentadas de Homero na Antiguidade e Modernidade.2 Isso obriga o comentador moderno que vai propor uma nova leitura a deixar bem claras as razões de fazê-lo.3
Para diversas abordagens teóricas e metodológicas recentes aplicadas à poesia grega arcaica, o Escudo revelou-se particularmente frutífero. Duas abordagens que se tocam e produziram inegáveis ganhos na interpretação dessa poesia são a cognitiva e a estética. No que diz respeito à primeira, a distinção entre narração e descrição, fundamental na discussão do Escudo e da poesia homérica em geral desde o Laooconte (1766) de G. E. Lessing, tem sido rediscutida a partir da teoria enativa de cognição, e sua aplicação recente ao exame da poesia homérica (Grethlein e Huitink, 2017) tem consequências importantes para a discussão do Escudo (Minchin, 2021). Quanto à “virada estética”, o Escudo articula a produção de objetos de arte a uma emoção que tem ganhado destaque na bibliografia crítica, o thaûma (Neer, 2010, pp. 57-103; Hunzinger, 2015; Lightfoot, 2021), muito embora, em Homero, ela não seja central como a térpsis 4 quando o contexto são experiências que de forma mais evidente o receptor pode aproximadar da sua própria como ouvinte ou leitor do canto homérico. Por fim, o impulso extraordinário que ganhou a investigação da poesia lírica nas últimas décadas inevitavemente teria consequências sobre a interpretação do Escudo (Steiner, 2021, pp. 25-75), pois em nenhuma outra passagem homérica há tão grande concentração de fenômenos que dizem respeito à mousiké.5
As interpretações do Escudo se diferenciam entre si pela forma como são enfatizados os níveis de representação da écfrase: o referente; o meio físico utilizado por Hefesto; o artífice e a arte; o efeito da obra ou a reação a ela (Becker, 1995, pp. 42-43). Assim, por exemplo, Steiner (2021, pp. 25-75) procura mostrar como a representação do artífice (e de suas criações mencionadas na cena) é reforçada pelo privilégio de certos referentes ligados à dança coral, concluindo que a passagem mostra “the intimate relations between craftsmanship, choreia and the action of the chorêgos” (p. 25). Ainda que, desta forma, a autora, na esteira de diversos trabalhos, clássicos ou recentes, com razão dê destaque para a penúltima vinheta, a do khóros (vv. 590-606), tal abordagem acaba, indiretamente, por relativizar o peso daquela que é a mais longa vinheta do escudo, a da cidade em guerra (vv. 509-40).
Sem querer cair no equívoco de Alden (2000, pp. 48-73), o de sobrevalorizar os referentes da vinheta das duas cidades (490-540) à medida que essa permitiria construir relações mais estreitas entre o Escudo e a narrativa principal do poema, discutirei como o Escudo propõe ao receptor da Ilíada pensar a tensão entre a experiência da mousiké e o tema por excelência da poesia épica heroica, a guerra e a destruição.6 Essa tensão será mostrada, num primeiro momento, no contexto maior do canto XVIII.
É importante explicitar que meu objetivo central não é apontar se e como o poeta da Ilíada aproxima a sua própria poesia dos outros fenômenos da mousiké que perpassam o canto XVIII. Assim, ainda que se aceitasse que a representação de Aquiles cantando kléa andrôn acompanhado de uma lira (Ilíada IX. 186-89), por si só, ou seja, não por outros elementos do canto IX,7 aponta para o próprio poeta da Ilíada, não há a priori elementos suficientes para uma analogia entre o que se fala da performance de Aquiles nessa passagem da forma como se concebem formas de mousiké no canto XVIII. Repare-se que o adjetivo kalós, que pode ser utilizado para se definir um conjunto de experiências na Grécia arcaica como estéticas (Peponi, 2012), pelo menos na Ilíada, qualifica sobretudo formas físicas que são objeto da visão (LfgrE, s.v. καλός). Com efeito, não se usa nem este adjetivo nem outro equivalente para qualificar a tecelagem de Helena (Ilíada III.125-28), outro trecho metapoético do poema. No caso da cena de Aquiles, a qualificação estética é apenas da lira que ele toca (kalêi daidaléei, IX.187: “bela e adornada”), dois adjetivos utilizados com frequência no canto XVIII para objetos da visão. Isso sugere que, se o poeta da Ilíada concebe uma noção abstrata de beleza (estética), sua atribuição ao canto épico heroico que é a Ilíada só se faz de forma mediada.
Tétis lamenta Aquiles
A primeira representação musical (“coral”) do canto XVIII, ainda que sem música em sentido estrito, é a reunião das Nereidas em torno de Tétis quando esta percebe o sofrimento paroxístico do filho, que recebera a notícia da morte de Pátroclo (vv. 35-38). O contexto musical evocado pela representação da reunião entre as divindades potencialmente destoa do quadro maior que o emoldura, qual seja, o sofrimento de Aquiles e de sua mãe.8
A fórmula que introduz o discurso direto de Tétis dirigido às irmãs é ἐξῆρχε γόοιο (“regeu o lamento”, v. 51). Na poesia arcaica, o sentido de ἐξάρχω é sobretudo o de iniciar, liderar determinadas formas musicais (LfgrE, s.v. ἐξάρχω; Nagy, 2009, pp. 212-27). Essas podem ser um canto acompanhado de dança (molpé, Ilíada XVIII.606), o peã e o ditirambo (respectivamente, Arquíloco 120 e 121 West). Mesmo que em XVIII.51 ἐξῆρχε γόοιο apenas evoque e não introduza uma representação coral em sentido estrito,9 a passagem como um todo é musical também (ou talvez sobretudo) graças ao catálogo de Nereidas (vv. 38-49).10
As Nereidas reúnem-se em volta de Tétis (v. 37, ἀμφαγέροντο),11 com o que se evoca o movimento circular possível de um coro.12 Na chave neoanalítica (Kullmann 1960, pp. 36-37), a performance de Tétis e das Nereidas é associada à morte de Aquiles, em particular a seu funeral, cuja representação verbal mais antiga encontra-se em Odisseia 24.43-94. Nesse poema, diz-se que as “imortais marítimas” (v. 47), “filhas do ancião do mar” (v. 58), em conjunto com as nove Musas (v. 60), participaram do funeral: aquelas ὀλοφυρόμεναι (“gemendo”, v. 59), estas, ἀμειβόμεναι ὀπὶ καλῇ/θρήνεον (“alternando-se com bela voz,/ cantavam o treno”, vv. 60-1).
Ao comentar Odisseia 24.60-64, Danek (1998, pp. 472-73) defende que a presença das Musas no resumo de Proclo da Etiópica deve-se à influência da Odisseia: na matéria de uma Memnonis, o treno só seria cantado por Tétis e pelas Nereidas, ao que a passagem iliádica aludiria. Na Odisseia, as tarefas – as Nereidas lamentam-se, as Musas cantam o treno – seriam divididas. A canção das Musas seria a chave para o kléos incomum de Aquiles.13 No lugar da imortalização em sentido estrito, a imortalização por meio de tal canto.14
Seja como for, o catálogo dos nomes falantes das Nereidas, na passagem iliádica, em vista de sua qualidade sonora e da posição em que se encontra, é a primeira “interrupção” do sofrimento e da violência que sempre de novo irrompem agudamente nesse canto. Na chave indiretamente criticada por Auerbach (2015) no capítulo “A cicatriz de Odisseu” (pp. 7-27),15 esse catálogo funcionaria como uma interrupção, um deleite sem outra função que ele mesmo. É exatamente nesse sentido que o entenderam dois representantes da tradição contra a qual Auerbach se colocou implicitamente. Na formulação de Wilamowitz-Moellendorff (1916), “as Nereidas não têm nada para fazer, mas exatamente a enumeração de seus nomes, eufônica como o murmúrio do mar calmo, acalma nossa excitação, desvia nossa atenção da cena excitante, nos torna receptivos ao estilo da conversa entre mãe e filho, cujo tom é tão completamente diferente. Sobre esta, seriedade silenciosa…” (p. 165).16 Ainda mais significativa é a leitura de Schadewaldt (1965), para quem várias características do catálogo (“nomes absolutamente falantes, eufônicos”) fazem com que “a impressão de horror da primeira imagem morra e desapareça”, qual seja, o sofrimento agudo de Aquiles: “assim, já mais afastado, ouvimos o lamento de Tétis” (p. 249). O olhar crítico que podemos dirigir a essas interpretações em seu vínculo à herança clássica de Weimar criticada por Auerbach torna ainda mais premente buscar razões para a beleza do catálogo nesse momento de representação do mais agudo sofrimento.
Um dos vetores da cena é a rima entre o sofrimento de Tétis e o do filho, uma imortal e um mortal. Imortais por certo sofrem na Ilíada, mas não como os mortais.17 Tome-se, por exemplo, dusaristotókeia (“desmãe do melhor”, v. 54), adjetivo usado por Tétis para si mesma – um hapax absoluto –, o qual é glosado na sequência (-aristotokeia) e ecoa o adjetivo que a deusa usa antes em referência a si própria (dus-) (vv. 54-56a): ὤ μοι ἐγὼ δειλή, ὤ μοι δυσαριστοτόκεια,/ ἥ τ' ἐπεὶ ἂρ τέκον υἱὸν ἀμύμονά τε κρατερόν τε/ ἔξοχον ἡρώων.18 Trata-se de um termo paradoxal, pois ao elemento negativo dus- junta-se o positivo arist-, ainda que cada um diga respeito a uma afirmação isolada do fluxo discursivo.19 Sonora e emocialmente, seu caráter extraordinário é sublinhado pela repetição do grito ó moi, o que não ocorre em nenhuma outra passagem de Homero; repetições homólogas, porém, são comuns na lírica (Rutherford, 2019, p. 105).
Na sequência, Tétis, em formulação que repetirá a Hefesto (vv. 437-43), aponta para a sua própria impotência em relação ao filho ao usar uma metáfora vegetal que acentua a perecibilidade do mortal, aqual, como é possível mostrar em outras passagens do poema, está em oposição à imperecibilidade dos metais valiosos, justamente a matéria por excelência do escudo. A guerra marca o clímax da vida de Aquiles; na representação de Tétis, uma dissipação total da vida,20 pois ela criou o broto para ser destruído antes do tempo (vv. 56b-60):
(…) ὃ δ' ἀνέδραμεν ἔρνεϊ ἶσος,
τὸν μὲν ἐγὼ θρέψασα φυτὸν ὣς γουνῷ ἀλωῆς
νηυσὶν ἐπιπροέηκα κορωνίσιν Ἴλιον εἴσω
Τρωσὶ μαχησόμενον· τὸν δ' οὐχ ὑποδέξομαι αὖτις
οἴκαδε νοστήσαντα δόμον Πηλήϊον εἴσω.
(…) e cresceu feito broto./ Eu mesma o nutri tal árvore de pomar na encosta/ e o
expedi a Ílion sobre as naus recurvas/ para pelejar com troianos: de novo não o
receberei,/ pois não retornará a casa, a morada de Peleu.
Essa mesma coordenação, não diretamente problematizada, entre o mundo vegetal/agrícola e a guerra voltará, em ordem inversa, no escudo, no qual, após a cidade em guerra, seguem três vinhetas agrícolas (vv. 541-72). Orgulho pelo filho, isso Tétis também parece demonstrar (Coray, 2016, p. 39), mas mais importante é a evocação do que será representado de forma literal no escudo: no mundo dos homens, experimenta-se tanto a produção como destruição da vida. O paradoxo que é dusaristotókeia, portanto, reflete o paradoxo que é a Ilíada: um poema sobre quem é ἀμύμονά τε κρατερόν τε/ ἔξοχον ἡρώων (vv. 55-56) mas cuja vida é definida pela morte e sofrimento (v. 62).
Após esse discurso, Tétis de pronto se desloca para o acampamento dos mirmidões e por fim ouvimos a primeira fala de Aquiles desde que recebeu a notícia da morte de Pátroclo. Em seu primeiro discurso, destacam-se as armas de Peleu agora vestidas por Heitor: a forma como se refere a elas reitera que sua vida é ambígua desde antes de seu nascimento (vv. 79-93), e que nela beleza e morte têm estado inextricavelmente ligadas.
As correspondências entre esta cena e o encontro entre Tétis e o filho no início do poema reforçam o caráter problemático do pedido de Aquiles atendido por Zeus e resumido por Tétis em sua fala de chegada.21 Aquiles, porém, constrói um discurso ambíguo22 e notável sob diversos aspectos, destacando-se sua impressioante concisão poética (vv. 79-93).23 Não é possível examinar a densidade de cada um de seus versos; centro-me no valor das armas que Peleu recebeu dos deuses ao se casar com Tétis (vv. 82b-85):
(…) τὸν (sc. Pátroclo) ἀπώλεσα, τεύχεα δ' Ἕκτωρ
δῃώσας ἀπέδυσε πελώρια θαῦμα ἰδέσθαι
καλά· τὰ μὲν Πηλῆϊ θεοὶ δόσαν ἀγλαὰ δῶρα
ἤματι τῷ ὅτε σε βροτοῦ ἀνέρος ἔμβαλον εὐνῇ.
Perdi-o, e Heitor as armas/ despiu de quem matou, portentosas, assombro à
visão,/ belas: essas os deuses deram a Peleu, dons radiantes,/ no dia em que te
lançaram na cama de um varão mortal.
Que as armas sejam thaûma idésthai (83, “assombro à visão”)24, isso talvez realce seu caráter divino (Hunzinger, 2018). Mas é mais difícil avaliar o que o enjambement notável de kalá (v. 84; Coray, 2016, p. 48) produz em relação aos demais elementos que visam a dar conta do valor dessas armas e, por extensão, do casamento entre Peleu e Tétis e, por fim, da própria vida de Aquiles. Pelória (v. 83), a seu turno, ecoa em dôra (v. 84):25 tal adjetivo, embora qualifique guerreiros e deuses, quando diz respeito a coisas, na Ilíada se refere somente a objetos divinos. Mais precisamente, para de Jong (1987), “the adjective seems to denote not objective measuring of size but rather the subjective impressions and emotions of someone who is scared by the enormity of what he perceives” (p. 130). O adjetivo, portanto, talvez prepare o receptor para certa violência subjacente às bodas de Tétis e Peleu tal como resumidas por Aquiles (v. 85; cf. Coray, 2016, pp. 48-49). Nesse sentido, a existência de Aquiles faz parte de uma sequência na qual atos de violência estão ligados a formas de compensação, sejam armas (como serão as novas armas de Hefesto), seja outro ato de violência (a morte de Heitor). Essa sequência só será interrompida no canto 24, quando outro tipo de thaûma se faz presente na cena em que Aquiles e Príamo se contemplam mutuamente (XXIV.628-33).
O pedido de Tétis e a resposta de Hefesto
Desde o início do episódio protagonizado por Tétis e Hefesto, destaca-se a imperecibilidade, o brilho, a riqueza do ambiente dominado por Hefesto; sua morada, construída por ele próprio, é ἄφθιτον ἀστερόεντα, μεταπρεπέ' ἀθανάτοισι (XVIII.369-71).26 A obra seguinte do deus a ser referida, 20 trípodes em fase final de produção, são thaûma idésthai (vv. 373-77). Assim como na Teogonia trechos narrativos como que linguisticamente geram uma sequência catalógica significativa (Vergados, 2020, pp. 23-48), descreve-se, nessa passagem iliádica, um ambiente tomado pela kháris antes de se informar que Kháris, qualificada por um kalé em enjambement (vv. 382-83), é a esposa de Hefesto, a qual recebe Tétis.27
Auerbach também poderia ter escolhido o episódio do Escudo como exemplo de um primeiro plano que faria o receptor esquecer a tensão da narrativa principal. Na complexa sequência de ações do canto XVIII, após o discurso de Aquiles delineando sua violenta vingança pela morte de Pátroclo (vv. 324-42),28 temos uma longa cena no centro da qual estão os mais elevados artefatos artísticos imagináveis.
Entretanto, sem demora o receptor é lembrado que, mesmo quando os deuses estão entre si, também pode sentir álgos (“dor”, “sofrimento”; v. 395).29 Assim como para os mortais, nesse caso também para os deuses certa forma de compensação (zoágria, v. 407) é eficaz: no caso de Hefesto, à dor por ter sido rejeitado pela mãe, seguiu-se sua “iniciação” como deus artesão (vv. 397-405).30 Isso ocorreu na morada marítima junto a Oceano, aonde ele foi parar quando Hera o lançou para longe do Olimpo. Tétis e uma filha de Oceano, Eurínome,31 lá o acolheram (hupedéxato, v. 398). O mesmo verbo Tétis utiliza duas vezes para definir uma forma de intervenção no mundo dos mortais interditada a ela: como Aquiles morrerá em Troia, ficará sem retorno e ela não o acolherá em Ftia (hupodéxomai, vv. 59 e 440). O próprio Aquiles usa esse verbo, também no tempo futuro e definindo um nóstos não realizado (vv. 89-90), o que reitera para o receptor sua ligação com a mãe divina. Essas duas ações patéticas em paralelo –acolher uma divindade e não acolher um filho que morre na guerra– sugerem que algo “trágico”32 só ocorre nos assuntos humanos; adicionalmente, a contraposição dessas duas ações –a realizada e a impossível– com o feito de Hefesto que será colocado diante do receptor na sequência –a feitura de armas– sugere que essas não funcionam, de fato, como compensação pela morte: diferente de Aquiles, Hefesto nunca correu o risco de perder sua vida.33 Acrescente-se que a reiterada menção de Oceano na anedota biográfica de Hefesto (vv. 399 e 402) reforça a ligação desse evento pregresso com o Escudo, em cuja borda externa é representada essa divindade (vv. 607-8).
Desde o início da cena, outro elemento prepara a problematização do papel do Escudo como forma de compensação pela perda da vida. Assim como Dédalo, mencionado no início da última vinheta desenvolvida do Escudo (v. 592), Hefesto sabe criar autómatoi (v. 376) e criaturas semelhantes a jovens vivas (v. 418)34 –mas ele não pode salvar Aquiles da morte. Tais sucedâneos, ainda que extraordinários, não são iguais à coisa mesma. O que é como a vida ainda não é a vida ela mesma. É esse “parecido com” mas não “igual a” que faz toda a diferença em passagens como o discurso das Musas a Hesíodo no proêmio da Teogonia 35 e a correção queixosa de Aquiles dirigida a Odisseu no Hades.36 Sim, as obras de Hefesto e Dédalo causam assombro e admiração, mas elas não são equivalentes aos mortais que são o objeto primeiro do poema.37
Proponho, além disso, que a insistência da passagem da Ilíada nas singularidades e imperfeições físicas do deus que cria obras maravilhosas38 é mais uma forma de se indicar que não há objeto artístico que preencha a perda que é a morte de um guerreiro jovem como Aquiles na guerra, ou seja, o deus ele mesmo reflete a ambivalência de seu escudo, que concentra a guerra e a dança, a destruição e a criação. Hefesto, por certo, potencializa seu próprio movimento graças a sua criação de servas robotizadas (XVIII.416-17). Mas Aquiles, que se destaca pela velocidade dos pés, uma vez que for imobilizado pela morte em combate, assim permanecerá. Hefesto, entre os deuses representados na Ilíada, parece ser o mais próximo de ter obtido, desde o nascimento, uma mistura de males e bens, o que aproxima dos mortais do mito dos dois cântaros (XXIV.527-33); contudo, os bens que Hefesto cria, imperecíveis, relativizam seus males cotidianos.
É nesse sentido que podemos entender a resposta do deus ao pedido de Tétis por novas armas (vv. 463-67):
θάρσει· μή τοι ταῦτα μετὰ φρεσὶ σῇσι μελόντων.
αἲ γάρ μιν θανάτοιο δυσηχέος ὧδε δυναίμην
νόσφιν ἀποκρύψαι, ὅτε μιν μόρος αἰνὸς ἱκάνοι,
ὥς οἱ τεύχεα καλὰ παρέσσεται, οἷά τις αὖτε
ἀνθρώπων πολέων θαυμάσσεται, ὅς κεν ἴδηται.
Coragem; que isso não te ocupe o juízo./ Oxalá eu pudesse, longe da hórrida
morte,/ escondê-lo, quando o fero quinhão alcançá-lo,/ assim como belas armas
estarão a seu dispor, as quais/ muito homem admirará, todo que as vir.
Assim como Hera não conseguiu esconder (krúpsai, v. 397) a debilidade do filho Hefesto, mas indiretamente lhe possibilitou desenvolver sua habilidade como artesão junto a Tétis, Hefesto não conseguirá esconder (apokrúpsai, v. 465) Aquiles longe da morte, mas isso lhe possibilita uma criação ímpar. A questão, portanto, é definir o que significa o maravilhamento/espanto das gerações futuras no que diz respeito às armas. Para muitos críticos, ele diz respeito a uma forma de imortalização, o que, por analogia com ao kléos conferido pelo discurso épico, conferiria um viés metapoético ao trecho (v.g.Lynn-George, 1988, p. 190-93; Muellner, 1996, p. 166; Iribarren 2018, p. 42-43). Digno de espanto, em Homero, é sempre aquilo que se vê,39 e, pelo menos num nível literal, as armas não podem ser vistas pelos ouvintes/leitores da Ilíada.40 O Escudo, porém, oferece uma experiência substitutiva da visão direta.
As vinhetas: equilíbrio de opostos?
O escudo produzido por Hefesto se caracteriza por elementos que, ao mesmo tempo, o aproximam e distinguem de objetos (divinos) equivalentes na poesia homérica, já que a atenção conferida à sua descrição/produção é única e o efeito das armas sobre quem as vir é enfatizado de forma singular: o thaûma (thaumássetai, v. 467) a ser experimentado pelos seus receptores futuros é ele mesmo inscrito no próprio escudo, já que experimentado por certo público receptor forjado numa vinheta (thaúmazon, v. 496),41 e o próprio aedo da Ilíada o experimenta durante sua narração (thaûma,v. 549),42 o que talvez contribua para o público ter a impressão de também estar “vendo” o escudo.43
Proponho que no Escudo se busque configurar uma tensão entre elementos que apontam para uma esfera estética e aqueles que ecoam o cerne mesmo da Ilíada, composto por morte, guerra e destruição.44 Caso se quiser ver no Escudo uma mini-representação do mundo ou de uma pólis grega, não é difícil propor certo equilíbrio entre as diferentes atividades que perfazem a vida humana:45 mesmo que se defendesse que esse não é estável, há um aspecto cíclico que articula a sequência de vinhetas (mais sobre isso abaixo). Ademais, é inegável que duas cenas se destacam nesse cosmo: a da cidade em guerra e a do khóros, a primeira, intensamente relacionada aos eventos do poema e da Guerra de Troia como um todo, a segunda, como demonstrou Steiner (2021, pp. 25-75), a uma série de elementos da cena envolvendo Tétis e Hefesto. Guerra e mousiké, Aquiles e Hefesto, destruição e criação: o Escudo é uma forma extraordinária de explorar e acentuar a tensão entre esses elementos, mas não parece que ele a resolva.46
Talvez isto seja apenas uma coincidência por serem as duas vinhetas mencionadas particularmente longas e/ou complexas,47 mas ambas contêm versos problemáticos, algo que não se verifica alhures na narração da forja do Escudo,48 muito embora algumas passagens, pela sua extrema compressão, sejam algo obscuras.49 As duas passagens dizem respeito diretamente à discussão que estou propondo. O primeiro trecho vem quase no fim da vinheta da cidade em guerra (vv. 535-40):
ἐν δ' Ἔρις ἐν δὲ Κυδοιμὸς ὁμίλεον, ἐν δ' ὀλοὴ Κήρ,
ἄλλον ζωὸν ἔχουσα νεούτατον, ἄλλον ἄουτον,
ἄλλον τεθνηῶτα κατὰ μόθον ἕλκε ποδοῖιν·
εἷμα δ' ἔχ' ἀμφ' ὤμοισι δαφοινεὸν αἵματι φωτῶν.
ὡμίλευν δ' ὥς τε ζωοὶ βροτοὶ ἠδ' ἐμάχοντο,
νεκρούς τ' ἀλλήλων ἔρυον κατατεθνηῶτας.
Também lutavam Briga, Refrega e a ruinosa Funérea,/ que segurava um vivo
recém-ferido, outro, ileso,/ e a outro, morto, puxava pelos pés na confusão;/ nos
ombros, sua veste estava rubra de sangue dos homens./ Lutavam e pelejavam
como mortais vivos,/ e puxavam os corpos defuntos uns dos outros.
Esses versos foram transmitidos em todos os manuscritos da Ilíada, mas a maioria dos comentadores modernos condena os versos 535-38, defendendo que sua origem seria o Escudo de Héracles, atribuído a Hesíodo na Antiguidade.50 Não interessa a meus propósitos repetir toda a discussão,51 em relação à qual a suspensão de julgamento não deixa de ser uma postura razoável. Entretanto, vou explorar alguns argumentos (novos) para defender que os versos são eficazes na passagem e reverberam aspectos explorados alhures no poema.52
Independente de como se entender o sujeito do verbo emákhonto (v. 539),53 o último verso da vinheta destila seu elemento principal, a produção de mortos. Algo homólogo ocorre na cidade em paz (essa alcunha, bem entendido, origina-seda recepção crítica do escudo), cujas últimas palavras são δίκην ἰθύντατα εἴποι (v. 508, “sentenciasse de forma mais reta”). O que se espera obter nessa cidade é a mais reta sentença; na guerra, o que se alcança são essencialmente cadáveres.54 Os versos 535-38 não são necessários para se alcançar esse efeito, mas eles o potencializam.55
Outro elemento relevante dos versos em questão é que as três divindades neles mencionadas refletem aspectos das cenas protagonizadas por Aquiles no início do canto 18. Éris é a emoção que Aquiles deseja desaparecesse, junto com khólos, do mundo dos homens e deuses (vv. 107-8).56 Kudoimós, um termo relativamente raro no corpus hexamétrico,57 assim como éris, reflete um aspecto psicológico da batalha (Trümpy, 1950, pp. 158-59), e é usado para definir o primeiro efeito de Aquiles sobre os troianos após sua “epifania” (v. 218).58
Kér, cujas nuances de sentido, sincronica e diacronicamente, são controversas,59 é um termo bem mais usado no corpus homérico, mas ele se destaca no mesmo discurso em que Aquiles menciona a éris (XVIII.114-19):
νῦν δ' εἶμ' ὄφρα φίλης κεφαλῆς ὀλετῆρα κιχείω
Ἕκτορα· κῆρα δ' ἐγὼ τότε δέξομαι ὁππότε κεν δὴ
Ζεὺς ἐθέλῃ τελέσαι ἠδ' ἀθάνατοι θεοὶ ἄλλοι.
οὐδὲ γὰρ οὐδὲ βίη Ἡρακλῆος φύγε κῆρα,
ὅς περ φίλτατος ἔσκε Διὶ Κρονίωνι ἄνακτι·
ἀλλά ἑ μοῖρα δάμασσε καὶ ἀργαλέος χόλος Ἥρης.
Agora me vou para alcançar o destruidor de cara vida,/ Heitor: meu finamento
receberei no dia em que/ Zeus e os outros deuses imortais quiserem completá-
lo./ Nem a força de Héracles escapou do finamento,/ ele que era o mais caro a
Zeus, o senhor Cronida;/ não, a moira e a raiva nociva de Hera o subjugaram.
A densidade poética desse trecho reflete as interrelações entre os destinos de Héracles,60 Heitor e Aquiles, com destaque para o papel dos deuses. A repetição de sons para enfatizar a ideia de um deus antagonista61 é homóloga àquela que vimos para Pátroclo. A morte de Aquiles –e dos outros heróis mencionados– não é mero passamento, mas efeito das forças divinas.62 Kēr, por certo, não é personificada como em sua menção no Escudo, mas sua força não deixa de ter algo de sobrenatural. Ao mesmo tempo, a morte de Aquiles é representada como derivada também de sua própria decisão,63 e seu agente indireto é o mortal Heitor: Aquiles sela sua morte ao decidir matar um mortal.
Essa forma de se amalgamarem agências humanas e mortais no teatro da guerra, por sua vez, se coaduna com a interpretação de Palmisciano para ὥς τε ζωοὶ βροτοὶ ἠδ' ἐμάχοντο (v. 539), para quem o referente do sujeito verbal seriam as personificações Éris, Kudoimós e Kér, e não os exércitos mencionados antes. A oposição desse trecho seria com o distanciamento de Ares e Atena (vv. 515-16):64 a ação mesma se dá entre mortais; seu efeito mais visível é o sangue humano (v. 538). Proponho que o uso do singular Kér como que prepara a futura atuação de Aquiles no campo de batalha, pois, ao modo de Kér, ele conduzirá um troiano morto (Heitor) e outros ilesos (as vítimas sacrificiais para Pátroclo) ao acampamento aqueu, tudo isso, basicamente junto a um rio (533), o Escamandro.65
Voltando a meu ponto principal, a irredutibilidade última do horror da guerra à beleza da música, assinale-se que a vinheta que representa a arada realizada na primavera (vv. 541-49) vem logo após a batalha, podendo sugerir o fim da violência num mundo de paz e prosperidade;66 mas isso não dura (Lynn-George, 1988, p. 191-91).67 A vindima no fim do verão, pela juventude de seus protagonistas e pela sua atividade musical (vv. 567-72), por um lado, remete à cena de casamento que abre a representação dos cenários humanos (v. 493) e se articula com a dança que domina a última vinheta desenvolvida. Por outro lado, também esse festejo é interrompido pela irrupção da violência:68 a cena seguinte mostra um pastoreio interrompido pelo ataque sangrento de leões (vv. 573-86). Na cidade em guerra, tem-se um massacre de inocentes pastores que se deleitam com um instrumento de sopro (vv. 525-26); mais adiante no Escudo, a uma cena musical marcada por um instrumento de corda (vv. 569-70), segue uma imagem com leões (vv. 579), o animal mais usado em símiles para amplificar a violência dos guerreiros no poema.69
Assim, quando o receptor chega na curtíssima cena sem narrativa, o cenário de ovelhos pastando (vv. 587-89), ele passou por uma sequência balanceada, ritmicamente composta, de cenas diversas que contrapõem violência e música, guerra e festejo, conflito e paz, sem que uma dessas cenas prepondere sobre as outras. Nesse sentido, a última vinheta desenvolvida, a da dança (vv. 590-606), não deixa de ter um caráter extraordinário: inequivocamente, ela é o ponto culminante das cenas anteriores de mousiké e a ela não segue uma cena de violência. “Ponto culminante” porque sublinha, autorreferencialmente, a própria habilidade de Hefesto. A noção de um ponto culminante, de um ápice, porém, pode ser relativizada tanto pela presença do circular Oceano como imagem da última vinheta, esta curtíssima e não desenvolvida (vv. 607-8), bem como pela relação entre as constelações da primeira vinheta com o imaginário da dança (Carruesco, 2016, p. 78-79) e pela primeira imagem da cidade em paz ser como que uma sequência natural da dança final do escudo: se esta é realizada por jovens que chegaram à idade de se casar, aquela ocorre nas próprias bodas, ambas retratando performances corais. Ou seja, os elementos que conferem destaque à vinheta da dança são os mesmos que a articulam fortemente às duas primeiras vinhetas e ao próprio Hefesto como artesão.
Entretanto, são dois os movimentos que articulam o khóros final, em círculo e em fileiras (vv. 599-602), os quais se opõem entre si assim como o sexo e, consequentemente, as vestes dos dançarinos (vv. 593-96). Que as moças estejam ornadas com coroas, e os moços, com makhaírai (v. 597), todo esse conjunto de oposições complementares realça o contexto sexual mas não reatiça necessariamente a oposição entre paz e a guerra.70
Seja como for, essa polarização sexual (que, no imaginário grego, inicia pelo olhar), é desdobrada na sequência por outra, também marcada pelo desejo e prazer: aquela entre os executores e seu público (vv. 603-4). E então, também nessa vinheta temos a presença de um pequeno trecho polêmico (vv. 603-606):
πολλὸς δ' ἱμερόεντα χορὸν περιίσταθ' ὅμιλος
τερπόμενοι· [μετὰ δέ σφιν ἐμέλπετο θεῖος ἀοιδὸς
φορμίζων,] δοιὼ δὲ κυβιστητῆρε κατ' αὐτοὺς
μολπῆς ἐξάρχοντες ἐδίνευον κατὰ μέσσους.
Grande multidão circundava a adorável dança/ deleitando-se. [Entre eles
cantava divino cantor/ com a lira:] dois acrobatas, entre eles,/ liderando canto e
dança, volteavam no meio.
Assim como em outras vinhetas discutidas acima, as últimas palavras desta são significativas. Mesmo que não quisermos compreender katà méssous como autorreferencial, produzindo uma relação espacial, sobre o escudo, com a imagem seguinte, Oceano em volta da borda do escudo,71 esse adjunto adverbial produz mais uma relação polar nessa vinheta, aquela entre acrobatas e o coro. Nesse sentido, o cantor seria uma figura não apenas supérflua, mas algo destoante do ritmo geral desta vinheta, formado por oposições que, em seu conjunto, compõe a dança. Esse ritmo é definido quase desde o início por meio de Dédalo e Ariadne, homem e mulher.72
O único testemunho que temos acerca da presença da frase entre colchetes é Ateneu, e seu contexto antigo principal são críticas ao método ecdótico de Aristarco.73 Também é com isso em vista que a frase, ausente em todos os manuscritos e outros testemunhos antigos da passagem, entrou na edição do poema de F. A. Wolf, mas sua defesa posterior, sobretudo no século XX, na contramão da maioria dos editores, que a condena, diz respeito a outra questão: a ausência de “Homero” da Ilíada.74 Com exceção dos cantores anônimos que participam do funeral de Heitor (Ilíada XXIV.720), esse seria o único uso de aoidós no poema.75 Mais do que isso: a presença deste aoidós ocorreria numa passagem, o Escudo, que não só amplifica a figura do artesão divino, mas na qual esse é responsável pela criação de um cosmo no qual se destaca a música, ou seja, uma passagem metapoética que teria como seu clímax a menção de um aedo divino.76 Ao fim e ao cabo, a presença desse aedo é um detalhe menor, mas sua irrupção, numa vinheta marcada pelo equilíbrio dinâmico entre opostos que gera a dança,77 tem sido destacada, em particular, por críticos que buscam firmar uma leitura estetizante do poema.78
Conclusão
Em nenhuma outra passagem da Ilíada explora-se de forma tão consequente e com tanta poikilía 79 como no canto XVIII a tensão entre duas experiências fundamentais da vida humana, a destruição da vida, cuja forma mais concentrada e violenta é a guerra, e a criação de objetos culturais cujo mínimo denominador comum é mais difícil de definir, já que envolve objetos materiais permanentes como as obras de Hefesto, mas também performances musicais essencialmente efêmeras. Além disso, a forma como se explora essa tensão sugere que ela seja intrínseca à própria poesia épica heroica.
Leituras estetizantes e/ou humanistas do poema tendem a desenvolver uma leitura metapoética, em geral vinculada a certa interpretação do valor do kléos, segunda a qual o poema seria colocado como artefato artístico superior capaz de transcender a experiência efêmera que é a vida humana. Essa leitura comumente vem associada à outra, segundo a qual a violência extrema manifestada por Aquiles é passageira e daria lugar à sua visão final, esclarecida, do que é um ser humano. O que minha leitura buscou mostrar, porém, é que, segundo a Ilíada, tanto as formas de destruição como de construção são irredutíveis umas às outras e, irremediavelmente, compõem facetas da vida humana.
Destaquei, no canto XVIII, o ritmo talvez alucinante, sobretudo numa performance oral, formado pela alternância entre a beleza fônica, imagética e conceitual, de um lado, e as perdas –de vidas e de oportunidades futuras– que não param de se suceder. Assim como o Aquiles que age nesse canto, do qual fala Tétis e que se mostra como um deus aos troianos, não pode ser reduzido ao Aquiles como que morto em sua reação à morte de Pátroclo, as imagens do Escudo, assim como as demais criações de Hefesto, produzem espanto e admiração por estarem como que vivas, ainda que não haja criação divina que possa garantir a sobrevida do herói. Vida e morte, criação e destruição, guerra e música são alguns dos pares em equilíbrio tenso não apenas nesse canto do poema, mas alhures na tradição homérica.