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Trabajo y sociedad

On-line version ISSN 1514-6871

Trab. soc. vol.25 no.42 Santiago del Estero  2024  Epub Jan 01, 2024

 

Artículos

Efeitos previstos e imprevistos de uma política pública: O Programa Mais Médicos e seu impacto no mercado de trabalho médico brasileiro

Efectos previstos e imprevistos de una política pública: El Programa Mais Médicos y su impacto en el mercado laboral médico brasileño

Non-Predicted Effects of a Public Policy: The Mais Médicos Program and its impact in the field of Brazilian medicine

Gamaliel S. CARREIRO1  *
http://orcid.org/0000-0003-0139-7321

Paula Katiana da SILVA CARREIRO2  **
http://orcid.org/0000-0003-4274-7770

1Universidade Federal do Maranhão. Brasil. gamaliel.carreiro@ufma.br.

2 Programa de Pós-Graduação em História da UFMA Universidade Federal do Maranhão. Brasil. katianapaula@hotmail.com.

RESUMO

Estudos de meados das décadas de 1970 e 1980 já indicavam algum tipo de alteração no mercado de trabalho médico com a abertura de novos cursos de medicina no Brasil. Todavia, foi a partir da promulgação da Constituição de 1988 que o fenômeno ganhou força. Nela, o direito à saúde ascende à categoria de direito fundamental e um dever do Estado. Nas décadas seguintes, nasceram diversas políticas públicas e programas de governo que visavam a efetivação desse direito. O Programa Mais Médicos, da gestão Dilma Rousseff, surge como um importante instrumento garantidor desse direito. Nele, a ampliação do número de cursos de medicina constitui um dos eixos centrais. Este artigo analisa alguns dos efeitos não previstos desta política pública que vem reordenando o mercado de trabalho médico no Brasil. Discute-se quem foram os maiores beneficiados dessa ação governamental. Propomos, ainda, entender as mudanças nesse mercado dentro do contexto mais amplo das transformações do capitalismo.

Palavras-chave: política pública; sociologia; trabalho médico

RESUMEN

Estudios de mediados de los años 1970 y 1980 ya indicaban algún tipo de cambio en el mercado laboral médico con la apertura de nuevas carreras de medicina en Brasil. Sin embargo, fue tras la promulgación de la Constitución de 1988 cuando el fenómeno cobró fuerza. En él, el derecho a la salud asciende a la categoría de derecho fundamental y deber del Estado. En las décadas siguientes se crearon varias políticas públicas y programas gubernamentales que apuntaban a implementar este derecho. El Programa Más Médicos, bajo el gobierno de Dilma Rousseff, aparece como un instrumento importante para garantizar este derecho. En él, la ampliación del número de carreras de medicina constituye uno de los ejes centrales. Este artículo analiza algunos de los efectos imprevistos de esta política pública que viene reorganizando el mercado laboral médico en Brasil. Se discute quiénes fueron los mayores beneficiarios de esta acción gubernamental. También proponemos comprender los cambios en este mercado dentro del contexto más amplio de las transformaciones del capitalismo.

Palabras clave: políticas públicas; sociología; trabajo médico

ABSTRACT

Studies from the mid-1970s and 1980s already indicated some type of change in the medical job market with the opening of new medical courses in Brazil. However, it was after the promulgation of the 1988 Constitution that the phenomenon gained strength. In it, the right to health rises to the category of fundamental right and a duty of the State. In the following decades, several public policies and government programs were created that aimed to implement this right. The Mais Médicos Program, under the Dilma Rousseff administration, appears as an important instrument guaranteeing this right. In it, the expansion of the number of medical courses constitutes one of the central axes. This article analyzes some of the unforeseen effects of this public policy that has been reorganizing the medical job market in Brazil. It is discussed who were the biggest beneficiaries of this government action. We also propose to understand the changes in this market within the broader context of the transformations of capitalism.

Keywords: public policy; sociology; medical work

SUMARIO

Introdução. 1. Aspectos históricos do sistema de saúde brasileiros; 2. A profissão médica no contexto das políticas públicas brasileiras; 3. O Programa Mais Médicos; 4. Efeitos previstos do PMM; 5. Efeitos não previstos do PMM; 6. As políticas públicas no contexto do capitalismo contemporâneo; Conclusão; Bibliografia.

*****

Introdução

A presente reflexão tem como pano de fundo o marco histórico da promulgação da Constituição brasileira de 1988, que definiu o direito à saúde como um direito fundamental do cidadão e um dever do Estado. Nos anos seguintes, o estado brasileiro criou o Sistema Único de Saúde (SUS) e diversas políticas públicas que tinham como objetivo efetivar esse direito assegurado no texto constitucional. Propõe-se discutir algumas das consequências previstas e não previstas advindas sobre outros setores da sociedade à medida que tais políticas públicas eram implementadas. Em especial concentraremos nossa análise em compreender os impactos do Programa Mais Médicos (PMM) implementado durante o Governo Dilma Roussef (2013-2016) na reconfiguração do mercado de trabalho médico do Brasil. Este programa de governo possibilitou a ampliação, sem precedentes, do número de faculdades, cursos de medicina. Em todo o território nacional, consequentemente, de profissionais médicos formados no país em um curto espaço de tempo.

Esse artigo é parte dos resultados de duas pesquisas sobre o campo da medicina no Maranhão e suas transformações1. Elas foram aprovadas pelos órgãos colegiados da Universidade Federal do Maranhão, bem como pelo conselho de ética, e os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. À medida que a investigação avançou, tornou-se imprescindível compreender mais detalhadamente a rápida expansão dos cursos de medicina no país, especialmente entre 2013 e 2021, seu papel no contexto das políticas públicas brasileiras, bem como os efeitos de tal programa no mercado profissional médico. Os resultados aqui apresentados ancoram-se também em dados secundários referentes aos 19 anos de implementação de políticas públicas de expansão dos cursos de medicina no Brasil (2002-2021), mas, especialmente, após a implementação do PMM (2013). Eles foram coletados tomando como base cinco fontes, a saber: a) Portal Mais Médicos, do Ministério da Saúde; b) Sistema da Comissão Nacional da Residência Médica (SCNRM); c) portal e-MEC, do Ministério da Educação; d) dados populacionais do IBGE 2010 (IBGE, 2012); e) estudos demográficos de Scheffer sobre mudanças na população médica no Brasil (2013, 2015, 2018, 2020, 2023). Em outra frente de investigação, realizamos um trabalho de campo com entrevistas a médicos da rede pública e privada da capital maranhense, com vistas a compreender a atual situação do mercado de trabalho, concorrência entre médicos, renda desses profissionais, condições de trabalho oferecidas pelo governo e iniciativa privada para desenvolvimento das atividades laborais, relação com planos de saúde e redes privadas.

Aprofundamos a revisão da literatura sobre o tema e analisamos a expansão do mercado médico no Brasil dentro do contexto de modernização das grandes e médias cidades e do impacto do capital financeiro e do Estado como agentes alteradores das relações capital-trabalho no setor. Nestes termos, propõe contextualizar teoricamente as transformações no cenário nacional - do qual as políticas públicas são parte do processo - dentro de uma perspectiva mais ampla das transformações econômicas e do mercado de trabalho. Para isso, os resultados foram analisados a partir de um diálogo com a sociologia econômica e os destilados teóricos de autores como Lebaron (2010), Piketty (2014), Dubet (2015) e Karl Polanyi (2004).

Quando focamos nosso olhar para investigar a dinâmica interna do campo da medicina brasileira, fica claro que os trabalhadores que compõem este campo não constituem uma classe homogênea, ao contrário, a heterogeneidade é uma de suas principais características. Ela é formada por aqueles oriundos das classes positivamente privilegiadas cujos pais/parentes já ocupam posições de destaque. Estes estão muito bem posicionados no mercado de trabalho, ou entram em condições privilegiadas. São formados em boas universidades, possuem pós-graduação e residência médica e rapidamente alcançam elevada renda e ocupando postos nos mais importantes hospitais privados do país e em clínicas particulares. Existem, ainda, os médicos formados em universidades públicas e privadas que se empregam em serviços públicos e/ou convênios médicos privados. Por fim, há aqueles que atendem apenas nos planos privados de saúde ou nas redes públicas municipais nas periferias das grandes metrópoles e nas zonas rurais do país. Estes, não possuem especialização e, em geral, são os mais suscetíveis a passarem pelo processo de proletarização. Os destilados teóricos de autores como Pierre Bourdieu sugerem que esta estratificação interna presente no campo tende a se reproduzir socialmente. O sociólogo francês realizou intenso trabalho analisando o impacto da multiplicação do contingente de diplomados no mercado das profissões na França, o que ele chamou de “inflação do diploma” e seus efeitos (BOURDIEU e BOLTANSKI, 1975). É a partir dessa perspectiva bourdiesiana que estamos tentando compreender as alterações no mercado de trabalho médico brasileiro, uma das profissões que ao longo do século XX foi muito beneficiada com elevados salários, status social, prestígio e regalias especialmente, - mas não só por isso, - pela escassez de profissionais a disposição. O que o PMM e seu clone, criado durante o governo de Jair Bolsonaro (Programa Médicos Pelo Brasil-PMPB) promovem é a inflação do diploma médico ampliando a base da pirâmide de profissionais em um curto espaço de tempo. A pesquisa concentra esforços intelectuais para entender este segmento de trabalhadores cada vez maior dentro da economia brasileira. “São eles quem mais sofrem com a desvalorização do diploma, pois são privados de outras espécies de capital (em particular o capital social) capaz de rentabilizar os seus certificados.” (NOGUEIRA e CATANI, 1998: 12).

A análise interna do campo da medicina brasileira dialoga fortemente com um outro conjunto de reflexões macrosociológicas presentes no campo da sociologia econômica. Lebaron (2010) sugere que historicamente as categorias profissionais se ajustam às transformações e metamorfoses do processo de produção econômica, e a estrutura econômica determina o espaço que cada categoria deve ocupar na estrutura da sociedade. Muitas ações do Estado e de governos, por meio de políticas públicas, possuem afinidades eletivas (WEBER, 1999) com as metamorfoses do capitalismo corroborando com sua busca por maximização dos lucros.

Diante das transformações econômicas e cognitivas pelas quais a nossa sociedade está passando (LEBARON, 2010), qual é o espaço que os médicos ocupam na estrutura da sociedade? E quais ocuparão no futuro? Quando analisamos em perspectiva histórica as transformações do mercado de trabalho médico, em especial o brasileiro, tal qual apresentaremos nas próximas páginas, nos alinhamos teoricamente com aqueles autores que afirmam que as pesquisas mais recentes sobre as transformações econômicas e sociais indicam que existe uma tendência de aumento das desigualdades sociais e um retorno a situações análogas ao século XIX (PIKETTY, 2014; DUBET, 2015). Assim, um dos problemas centrais colocados por estes autores é o debate em torno do jogo de forças entre capital e trabalho, a renda dos trabalhadores e as formas de distribuição da riqueza. Como essas transformações, constatadas em outros continentes, manifestam-se em economias periféricas como a brasileira e de que maneira elas atingem categorias profissionais como a dos médicos, que historicamente ocupou uma posição privilegiada (em termos de salários, renda e liberdade de atuação profissional) frente a outras profissões?

Importa salientar que a assistência à saúde passou por profundas transformações a partir dos anos 1980 no Ocidente (BYRNE e ASHTON, 1999), embora seus efeitos só tenham sido sentidos no Brasil a partir da década de 1990 com a consolidação tanto do SUS quanto do pujante mercado privado de assistência médica dominado atualmente por grandes corporações financeiras à frente de redes privadas de hospitais e planos de saúde (SANTOS, 2018; CORREIA, 2007, OCKÉ-REIS, 2015).

Sociologicamente, a saúde foi transformada em uma mercadoria fictícia no sentido de Karl Polanyi (2004), e sua valorização social e monetária reifica progressivamente o trabalhador que a produz. Nas últimas três décadas, temos visto a face desse fenômeno de forma mais clara no Brasil. As políticas de expansão universitária e, consequentemente, de profissionais à disposição no mercado corroboram com esse processo na medida em que oferecem ao mercado mais e mais mão de obra, e isso tem efeitos deletérios à renda de enfermeiros, nutricionistas, farmacêuticos, dentistas e, mais recentemente, médicos, só para indicar algumas categorias da saúde, embora não se restrinja a esse setor da economia. No caso brasileiro, é um período marcado pelo empresariamento da educação, com o aparecimento de grandes corporações financeiras internacionais proprietárias de faculdades espalhadas por todo o território nacional que formam milhões de trabalhadores para o mercado.

Na outra ponta, o setor da saúde, também marcado pela presença de grandes corporações, se beneficia dessa abundância de trabalhadores para negociar ou renegociar salários em patamares cada vez mais baixos. O mercado de trabalho médico foi um dos últimos a ser afetado por esse processo, o que permitiu que, comparativamente a outros segmentos, estes trabalhadores mantivessem elevada a renda pelo seu trabalho. Todavia, já há algum tempo, os ventos estão soprando em outra direção e a sua renda vem paulatinamente diminuindo à medida que o número desses profissionais no mercado aumenta, consequência de políticas públicas e programas de governo como o PMM que apresentaremos adiante.

Os limites físicos desse artigo não nos permitem analisar todos os objetivos do PMM e seus efeitos no mercado de trabalho médico, de modo que concentraremos a reflexão no rápido aumento do número de cursos de medicina e vagas nos já existentes e, por conseguinte, no número de profissionais formados no país a disposição do Estado e do capital privado.

1. Aspectos históricos do sistema de saúde brasileiros

A saúde como um direito fundamental possui uma história social que envolve diretamente um processo de transferência da responsabilidade do cidadão para o estado brasileiro que assumirá diversas obrigações ao longo do século XX. É, sobretudo a partir da década de 1930 que o Brasil passará por mudanças significativas em termos de urbanização e industrialização. É verdade que entre 1808 e 1929 se constatam a abertura das primeiras manufaturas no país, entretanto entre 1930 e 1955 a economia brasileira inicia um processo de substituição de importação e diversifica seu parque industrial com a criação de importantes indústrias de base e maior investimento em infraestrutura. A década seguinte será marcada pela chegada do capital internacional no país e a indústria brasileira ganha força.

À medida que o país se transforma, urbanizando-se, industrializando-se, as condições de vida pioram significativamente especialmente nos grandes centros urbanos. Milhões de trabalhadores das grandes cidades passam a viver em condições precárias de higiene, saúde e habitação e isso tem efeitos na baixa produtividade e no próprio processo de industrialização. As demandas populares por melhores condições de vida se amplificam e repercutem politicamente exigindo a criação de políticas públicas capazes de dar conta dos problemas que afligiam a população, em especial, os problemas de saúde. O estado tenta responder essas questões ampliando seu escopo de atuação. Nas primeiras décadas do século XX a intervenção mais robusta do estado foi na resolução de endemias como a febre amarela, doença de chagas, gripe espanhola e tuberculose que dizimaram milhões de brasileiros. Nas décadas seguintes se preocupou em auxiliar parte dos trabalhadores das indústrias na concessão de benefícios de seguridade social e médica. A partir de meados da década de 1940 o estado ampliou a precária rede pública de postos de saúde e criou hospitais gerais, sanatórios, leprosários em todas as regiões do país. A partir das décadas de 1960, atuou fortemente na realização de campanhas de vacinação contra a varíola, poliomielite, BCG e tentou erradicar a malária. Na década de 1970 criou centros de distribuição de medicamentos gratuitos para a população carente, promoveu a interiorização das ações de saúde e saneamento, especialmente no Nordeste do país e ampliou o sistema de imunização da população. Na década seguinte, amplia sua atuação com a criação de mais postos de saúde e hospitais e estende a cobertura vacinal. Finalmente, com o fim do regime militar e a proclamação da constituição de 1988, a saúde é alçada a condição de um direito fundamental do cidadão e um dever do Estado.

Cumpre observar que as transformações econômicas sociais e de vida urbana andavam em ritmo mais acelerado do que a capacidade de intervenção do Estado que, como apontado acima, estava mais preocupado em solucionar os problemas mais estruturais da saúde pública (vigilância sanitária, vacinação, controle de endemias), o que possibilitou a iniciativa privada atuar no setor de modo a prestar um serviço de saúde focado no cidadão e em seus problemas imediatos. Assim, desde pelo menos a década de 1930 o sistema público de saúde convive com a iniciativa privada. Entre 1930 e 1950 algumas categorias de trabalhadores politicamente organizadas e financeiramente fortes tais como os ferroviários e marinheiros, ligados à produção e exportação foram beneficiados com direitos a aposentadorias por invalidez ou tempo de serviço, pensão por morte e serviços médicos (OLIVEIRA & TEIXEIRA, 1985). Parte dos recursos que financiavam esses direitos vinha das empresas, outra parte vinha do próprio estado. No início da década de 1950, as transformações econômicas, urbanas e o avanço da industrialização nacional em algumas regiões do país exigiram a expansão rápida dos serviços de saúde e como o Estado não conseguia supri-las na velocidade demandada, abriu espaço para a iniciativa privada atuar (MENDES, 1993). Baptista observa que os custos da assistência se tornaram muito elevados para o Estado brasileiro e o hospital ganhou centralidade na busca pelo atendimento a saúde - modelo hospitalocêntrico que se consolidava (BAPTISTA, 2007). A iniciativa privada passou a atuar no setor e os primeiros hospitais privados foram criados para atender segmentos economicamente privilegiados.

Naquele período, o setor privado consolidou-se como a principal alternativa de assistência a saúde a uma nascente classe média. A instalação sobretudo das indústrias automobilísticas, durante o governo Kubistcheck (1956-1961), foi o grande propulsor dessa expansão. As multinacionais recém-chegadas no país passaram a demandar e contratar assistência médica privada para seus funcionários, tal qual faziam suas matrizes, visando manter estável a produtividade de suas fábricas (CORDEIRO, 1985). O fenômeno foi replicado para outros setores, inclusive o serviço público, possibilitando a formação das primeiras organizações voltadas para a prestação de serviços privados de saúde (BAHIA, 2001).

No final da década de 1970, o Governo Militar cria o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência (INAMPS), um sistema público que nascera para substituir os diversos institutos 2previdenciários e de assistência a saúde que existia no país e atendiam frações da classe trabalhadora. A assistência à saúde desenvolvida pelo INAMPS beneficiava apenas os trabalhadores da economia formal, com “carteira assinada”, e seus dependentes. Os setores da população que não faziam esta contribuição não podiam acessar estes serviços. Assim, o INAMPS não tinha o caráter universal que passa a ser um dos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS). A criação desses instituto impôs a necessidade de construção por parte do estado de grandes unidades de atendimento ambulatorial e hospitalar além da contratação de serviços privados nos centros urbanos onde estavam a maioria dos beneficiários. Milhares de trabalhadores foram incorporados compulsoriamente pelo INAMPS sem que este tenha multiplicado na mesma proporção sua redé de atendimento o que levou a piora na prestação de serviços de saúde criando uma imagem péssima desse setor público que reverbera até os dias de hoje.

Enquanto os investimentos públicos na saúde eram ínfimos diante das demandas que cresciam pela incorporação de novos segmentos de trabalhadores, o próprio Estado tratava de financiar o setor privado como observou Cordeiro (1985,). As pesquisas de Favaret Filho e Oliveira (1990), comprovaram que recursos da previdência social cobriam parte do custeio desse setor, enquanto recursos do Fundo de Apoio Social (FAS), também públicos, custearam a expansão da rede de hospitais privados e seu desenvolvimento tecnológico. Pesquisas realizadas (MÉDICI, 1991; SAYD, 2003; ANDREAZZI, 1998; FLEURY, BAHIA e AMARANTE 2007; FAVARET FILHO e OLIVEIRA, 1990) indicam o aumento da precaridade dos serviços prestados durante as décadas de 1970 e 1980 e a insatisfação de certos setores da sociedade, especialmente a classe média empregada em funções intermediárias. Ao mesmo tempo, o setor privado financeiramente robustecido (direta ou indiretamente) com os incentivos financeiros do Estado, desenvolvia estratégias para captar para si as frações de classe positivamente privilegiadas da sociedade brasileira por meio da medicina de grupo, seguradoras e outros produtos ofertados3. No início de 1980 o Brasil possuía mais de 15 milhões de segurados por planos de saúde e convênios médicos e esse número não parou de crescer desde então.

A constituição de 1988 consolidou essa dupla organização sistêmica da saúde. Ao mesmo tempo que a nova carta magna instituía o saúde como um direito universal e um dever do Estado, instituindo o Sistema Único de Saúde (SUS) como o ator por excelência para o cumprimento desse direito, ampliou o espaço de atuação do setor privado, por um lado, regulamentando sua atuação por meio de uma legislação específica; por outro, por meio de incentivos fiscais, concessão de subsídios estatais, enfim, financiando sua atuação na sociedade brasileira.

Por um lado, o SUS, como observa Correia, (CORREIA, 2015, p.1) foi resultado de importantes lutas sociais de setores da sociedade civil que se posicionavam contra o modelo médico assistencial privatista da previdência social que só garantia o direito à saúde a quem trabalhava com carteira assinada. Foi resultado ainda, de uma luta contra a transformação da assistência médica em mercadoria e, portanto, fonte de lucro (MEDEIROS, 2008). Por outro, a constituição de 1988 não conseguiu reverter o quadro hegemônico da saúde/mercadoria, antes, porém, manteve a prestação do serviço privado (art 199) o que gerou mais empecilhos à consolidação do SUS pois: “Em vez da progressiva estatização da saúde, (…) houve um processo de progressiva privatização por dentro do SUS e através da expansão da saúde suplementar (planos e seguros privados de saúde) com apoio estatal”. (CORREIA, 2015, p. 1). Correia chama esse processo de “universalização excludente”.

Assim, como observa Correia (2015) consolidou-se no Brasil um sistema de saúde em que aqueles cidadãos com melhores remunerações (do setor público ou privado) migraram para os planos e seguros privados de saúde, enquanto a população mais carente se refugia no SUS que capenga com insuficientes investimentos estatais. Semelhantemente ao que acontecera nas décadas anteriores, o setor privado continúa fortalecido e drenando - por meio da perpetuação de incentivos governamentais indiretos (deduções de Imposto de Renda, incentivos fiscais, etc) e diretos (financiamento de planos privados para servidores públicos e empregados de estatais) - os recursos estatais que deveriam ser destinados ao SUS.

O mercado privado de assistência a saúde tornou-se tão atrativo e lucrativo - em razão, sobretudo da existência desses incentivos - que nos últimos 20 anos empresas de outros setores da economia como bancos privados, financeiras e o capital internacional redirecionaram seus negócios para este setor da economia comprando operadoras de planos ou construindo redes hospitalares, laboratórios e clínicas médicas.

Diante desse quadro de consolidação da saúde mercadoria, uma variável estava em dissonância e continuava incomodando estado e capital em seus projetos particulares. O problema da falta de profissionais da saúde, especialmente médicos seja para atender ao SUS e garantir o direito a saúde como preconizado na constituição, seja para atender a rede privada que se consolidava e almejava ampliar seus lucros precisa ser enfrentado e a partir da década de 1990 em diante alterações significativas nesse mercado serão promovidas.

2. A profissão médica no contexto das políticas públicas brasileiras

Não é de hoje que o Estado e os diferentes governos atuam em determinados setores da sociedade para alcançar determinados fins políticos e sociais. Em certo sentido, essa é uma das principais funções deles. Com o mercado de trabalho médico a história não foi tão diferente. Oliveira et al. (2019) afirmam que o ensino médico no Brasil e, consequentemente, o mercado profissional, historicamente, estiveram sob forte influência de decisões, conjunturas políticas, regimes de governo, modelos econômicos e da gestão de diferentes políticas públicas. Muitos autores têm corroborado com esse debate e fazem importante resgate dos múltiplos elementos que caracterizaram e marcaram o desenvolvimento das escolas médicas no Brasil desde 1808, quando foram criados os dois primeiros cursos no país, na Bahia e no Rio de Janeiro (AMARAL, 2007; LAMPERT, 2008; HADDAD et al,. 2006). Desses relatos históricos, dois momentos são particularmente importantes, como observam Oliveira et al. (2019):

O início dessa dinâmica de expansão ocorreu a partir das décadas de 1960/1970. Nesse período, iniciou-se para todas as profissões o próprio processo de expansão do ensino superior no país. Essa fase foi marcada pela multiplicação de escolas de graduação e do número de vagas. Por um lado, esse processo permitiu ascensão social nas camadas médias da sociedade a diferentes graduações. Por outro, o contexto de desenvolvimento econômico do país exerceu forte pressão para o desenvolvimento da educação no ensino superior como importante dimensão da economia de mercado (Amaral, 2016; Haddad et al., 2010). [...] Na área da saúde, a formação foi impulsionada por estudos e debates que, à época, estabeleciam como referência a relação entre tamanho populacional e o número de médicos, o estímulo à formação de enfermeiros e à qualificação de pessoal de níveis médio e elementar (Haddad et al., 2010). Também influenciaram, nesse processo, o modo de organização do setor saúde, a industrialização e urbanização crescente. Com isso, a política expansionista teve relação direta com o desenvolvimento econômico, tecnológico, político e social do país. (Oliveira et al., 2019: 2).

Um outro momento histórico que marcou a forte interferência do Estado na saúde e, consequentemente, no campo da medicina, tem umbilical relação com a promulgação da Constituição Federal de 1988, na qual consolidou-se a relação entre saúde, educação e direitos dos cidadãos. Como sublinhado acima, a saúde passou a ser tratada como um direito fundamental do brasileitro, assegurado por lei, o que impulsionou, nas décadas seguintes, a criação de diversas políticas públicas que concentraram esforços para solucionar o problema histórico da falta de assistência à saúde para as populações mais carentes. Das inúmeras intervenções do Estado, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, foi a mais importante. Um sistema público que organiza a política de saúde em todo o território nacional e visa ofertar a todo cidadão acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde. O SUS foi criado tendo como referência o modelo britânico instituído em 1948 e replicado em outros países como Canadá e Austrália onde seu funcionamento é custeado com a coleta de impostos.

Para corroborar com o SUS na democratização do acesso da população à saúde, foram implementadas, ao longo das décadas seguintes, diversas políticas públicas, tais como: o Programa de Interiorização do Sistema Único de Saúde (1993), o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (2001), o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (2011) e o Programa Mais Médicos (PMM - 2013) (BRASIL, 2012; OLIVEIRA et al., 2015).

Em um outro flanco de ações, o Estado passou a ampliar a flexibilização das regras para a abertura de novos cursos de graduação na área da saúde com vistas a ter, à disposição, profissionais para atuar no SUS. Desse modo, a ampliação do ensino superior no Brasil, especialmente no que diz respeito à abertura de cursos e vagas na área da saúde durante esse período, foi parte de um conjunto de alterações políticas e econômicas e de elaboração de políticas públicas subsidiárias ao fortalecimento do SUS que almejavam o aumento do número de profissionais que pudessem ser utilizados nos serviços públicos de saúde do país. Nas décadas posteriores a 1988, viu-se no Brasil uma ampliação sem precedentes de novos cursos e vagas de enfermagem, nutrição, fisioterapia, terapia ocupacional, odontologia e farmácia, tanto na rede pública quanto nas faculdades privadas. Nesse primeiro momento (pós-Constituição de 1988), os cursos de medicina não foram atingidos na mesma proporção que ocorrera com os demais cursos da saúde, em grande medida graças à força do lobby médico fortemente atuante junto ao parlamento e ao Governo Federal, como demonstrado pelos dados de Scheffer (2020)4. Mas as primeiras duas décadas do século XXI alterarão significativamente esse jogo de forças. As políticas implementadas, sobretudo durante os governos petistas de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2016), romperam essa barreira e, desde então, vêm reconfigurando em outros patamares o mercado de trabalho médico.

É claro que questões econômicas fizeram parte das variáveis que pressionaram o Estado para o destravamento do ensino superior no Brasil, em especial o mercado de faculdades de medicina, que já vinha em um crescente desde a década de 19705. Todavia, essa ampliação de novos cursos e vagas na área da saúde ancorava-se também na nova Constituição aprovada em 1988, especialmente na consolidação da saúde como direito do cidadão e da necessidade de se estreitar a relação entre saúde e educação superior. Assim, continuam argumentando Oliveira et al.:

Com a Constituição de 1988, consolidou-se a interface saúde e educação, que acabou conferindo ao ensino médico a condição de fator estratégico para a formação e ordenação dos recursos humanos no processo de implantação do novo sistema de saúde brasileiro ‒ o Sistema Único de Saúde (SUS) (Amaral, 2016). […] A Constituição de 1988 atribuiu ao SUS a missão de ordenar a formação de recursos humanos para a área da saúde (Brasil, 1988). Assim, o Ministério da Saúde, desde 2003, por meio do Departamento de Gestão da Educação na Saúde, da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, passou a desenvolver e apoiar ações no campo da formação e desenvolvimento dos profissionais de saúde (Haddad et al., 2010; Oliveira, Sanches e Santos, 2016). (Oliveira et al., 2019: 2-3).

3. O Programa Mais Médicos

Dentre as tentativas de intervenção governamental no campo da medicina, o PMM exerceu a maior força constrangedora e interventora do Estado brasileiro sobre o mercado dessa profissão, colocando-o a serviço de um projeto amplo e ousado de democratização do acesso aos serviços médicos para populações historicamente esquecidas nos rincões do Brasil profundor6.O processo de implantação do PMM é composto por embates jurídicos, ideológicos, disputas políticas, mas também forte reação e protestos da classe médica e das entidades que a representam. Naquela conjuntura social e política, o Governo Federal conseguiu implantar uma política pública de cima para baixo, atropelando o lobby médico e desconhecendo as demandas específicas desse campo.

Foi constatado que a situação da saúde pública brasileira se encontrava muito aquém do ideal e que os Programas e políticas públicas implementados nos governos anteriores não tinham surtido o efeito necessário de reverter essa situação. Detectou-se ainda a necessidade dos investimentos federais recaírem majoritariamente sobre a atenção primária, pois era ali, na porta de acesso a saúde pública, onde a precariedade estava mais concentrada. Foi diagnosticado a escassez de médicos no Brasil, e sua concentração no mercado privado de saúde. Constatou-se que a saúde continuava a ser um bem acessível apenas aos positivamente privilegiados e era necessário democratizá-lo por meio do SUS como previsto no texto constitucional. O governo de plantão percebera o caráter elitista dos cursos de medicina no país, com formação curricular incompatível com as demandas dos SUS, daí a necessidade do Estado intervir nos currículos de modo que as instituições passassem a formar profissionais capacitados a atuar no setor público, em espcial no Estratégia Saúde da Família. Por último, mas não menos importante, era necessário encontrar uma estratégia rápida de interiorizar essa mão de obra nas regiões mais afastadas dos grandes centros de modo a suprir de forma emergencial o drama da falta de médicos no interior do país. O maior problema em relação a isso era a recusa histórica dos médicos brasileiros de assumirem esses postos no Brasil profundo.

Tendo esses elementos como pano de fundo foi lançado em 2013 o PMM. O seu desenho envolvia três ações simultâneas de curto, médio e longo prazo, complementares entre si. São elas: 1) a promoção de “aperfeiçoamento de médicos na área de atenção básica em saúde, mediante integração ensino-serviço, inclusive por meio de intercâmbio internacional” (BRASIL, 2013); 2) a ampliação da oferta de cursos de medicina e de vagas para residência médica, sobretudo nas regiões mais carentes do Brasil; e 3) o estabelecimento de novos parâmetros curriculares para a formação médica no país que fossem adequados às demandas do SUS. Acrescenta-se a isso o fato de que o modelo britânico que serviu de referência para a criação do SUS estabelecia a proporção de 2,5 médicos por grupo de 1000habitantes como a ideal para atender a população. Essa referência foi colocada como uma das principais metas a ser alcançada pelo PMM.

Os objetivos visados pelo PMM eram:

  1. I. diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a fim de reduzir as desigualdades regionais na área da saúde;

  2. II. fortalecer a prestação de serviços na atenção básica em saúde no país;

  3. III. aprimorar a formação médica no país e proporcionar maior experiência no campo de prática médica durante o processo de formação;

  4. IV. ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de atendimento do SUS, desenvolvendo seu conhecimento sobre a realidade da saúde da população brasileira;

  5. V. fortalecer a política de educação permanente com a integração ensino-serviço, por meio da atuação das instituições de educação superior na supervisão acadêmica das atividades desempenhadas pelos médicos;

  6. VI. promover a troca de conhecimentos e experiências entre profissionais da saúde brasileiros e médicos formados. (BRASIL, 2013)

Kemper et al. fazem a seguinte observação do papel do PMM no contexto geral da saúde Brasileira:

Uma resposta à necessidade legítima de fortalecimento da Atenção Básica, de expandir a cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF), a qual vinha apresentando crescimento lento (1,5% ao ano), também com a proposta de distribuição mais equitativa dos médicos nos serviços, com foco na ampliação e universalização do acesso à saúde e, consequentemente, produzir impactos na qualificação da atenção. Para além da provisão imediata de médicos, o PMM traz estratégias para reordenar a formação em saúde no País, como uma tentativa de cumprimento do papel regulador do Estado em efetivar o Direito à Saúde, conforme preconiza a Constituição Federal. Em termos de possibilidades e potencialidades, o PMM se configura como um projeto transformador efetivo em defesa do SUS, como uma oportunidade de transformar a Atenção Primária à Saúde (APS) e de implantar o modelo de cuidados concebido pela ESF, contribuindo para a organização e o desenvolvimento das redes de atenção em saúde e a transformação do modelo de atenção. (KEMPER et al., 2016: 2789).

Em 2023, passada uma década desde a criação do PMM, o país e, sobretudo, o campo da medicina começam a sentir os impactos da expansão do contingente populacional médico. Como pontuado no início dessa reflexão, nos ocuparemos aqui em analisar especialmente os efeitos dese programa no mercado de trabalho médico. Sobre isso, alguns dados merecem menção de modo a contextualizarmos a dimensão dessa transformação. Em 2003, o país possuía 64 cursos de medicina, em 2007, esse número foi ampliado para 93 - 65 dos quais em IES privadas7. Uma década depois (2017), já eram 303 cursos, dos quais 30% foram abertos a partir de 2013 como parte da nova legislação implementada no bojo das estratégias do PMM, que ampliou os incentivos às instituições privadas a abrirem cursos de medicina em municípios com determinados perfis socioeconômicos. Somente naquele ano o MEC autorizou a abertura de novos cursos de medicina em 37 municípios brasileiros que atendiam ao perfil estabelecido pelo PMM, perfazendo um total de 2.355 novas vagas.

Estudos estatísticos de Mário Scheffer (2013, 2018, 2020 2023) vem analisando as alterações no campo da medicina na última década. Suas reflexões cruzam dados sobre taxa de crescimento médico, taxa de crescimento da população em geral e razão de médico por grupo de 1000 habitantes. Ele tem demonstrado que o número de profissionais à disposição do Estado vem evoluindo em velocidade muito rápida, sobretudo depois da criação do PMM. Scheffer (2020) observa que, em 1980, o Brasil contava com 113.500 médicos para atender a uma população de 121 milhões de brasileiros. Em 2000, a população de médicos saltou para 239.100, enquanto a população brasileira cresceu para um pouco mais de 169 milhões. Duas décadas depois (2020), o número de médicos ultrapassa a marca de 500 mil, enquanto a população brasileira aumenta para um pouco mais de 210 milhões. Sintetizando os dados evolutivos, pode-se afirmar que, entre 1970 e 2020, a mão de obra médica cresceu 1.170,4%, ou 11,7 vezes, enquanto a população brasileira foi ampliada em 222,3%, ou 2,2 vezes (SCHEFFER, 2020).

Em 1980 o país possuía uma razão de 0,94 médicos por grupo de 1000 habitantes. Em 2000 ela sobe para 1,41. 23 anos depois (2023) ela já chega a 2,41. A taxa brasileira fica próxima de países como Estados Unidos (2,5), Canadá (2,4) e Japão (2,2). Em termos de comparações globais, os dados brasileiros são melhores do que os do Chile (1,6), China (1,5) e Índia (0,7). Segundo Scheffer, em 2020, o país possuía taxas de médicos para grupos de 1.000 habitantes semelhantes às de países como Coreia do Sul, México, Polônia e Japão, embora abaixo das encontradas em outros 35 países membros da OCDE, como Canadá, Reino Unido e Estados Unidos. Entretanto, o ritmo de crescimento desses profissionais sugere que em pouco tempo o país ultrapassará muitas nações ranqueadas por essa organização. Somente entre 2013 e 2019, período de vigência do PMM e de seu clone, Médicos pelo Brasil, criado pelo governo Bolsonaro, as vagas em cursos de medicina saltaram de 20.522 para 37.346.

Cabe salientar que se trata de uma das profissões mais longevas no país. Isso quer dizer que a cada ano entram muitos mais profissionais do que saem. Ainda recorrendo aos dados de Scheffer (2023:37), constata-se que o número daqueles que saem sofreu poucas alterações ao longo dos últimos 20 anos. Em 2000 se formaram aproximadamente 8.100 médicos, enquanto saíram do mercado de trabalho um pouco mais de 1.000 desses profissionais. Em 2021 saíram menos de 1500 enquanto entraram 25,070. Projeta-se, com base nos dados de Scheffer (2020) que, a partir de 2024, as universidades públicas e privadas lançarão no mercado de trabalho quase 32 mil médicos por ano.

Importa salientar que estes profissionais estão distribuídos de forma desproporcional no território nacional. As regiões mais ricas e desenvolvidas do país e as capitais concentram grande parte dessa mão de obra, enquanto as regiões mais pobres e o interior do Brasil ainda amargam com a falta desses profissionais. As regiões Sul e Sudeste possuem 2,95 e 3,39 médicos por grupos de 1000 habitantes, as regiões Norte e Nordeste apenas 1,45 e 1,93 respectivamente. As 1250 cidades com até 5000 habitantes onde vivem 2% da população, concentram apenas 0,3% dos médicos. Por outro lado, as 49 cidades com mais de 500.000 moradores concentram 31,9% dos brasileiros e 61,9 % dos médicos. As cidades com menos de 50 mil habitantes (4.890 municípios), onde vivem 31% da população, abrigam apenas 8% do total de médicos do país. (SCHEFFER, 2023:47).

Cabe aqui uma ponderação importante; as pesquisas de Scheffer não conseguem perceber o trânsito dos médicos das grandes e médias cidades brasileiras em direção ao interior, o que altera significativamente para melhor a realidade da prestação de serviços de saúde nas pequenas cidades e nas zonas rurais do Brasil. Nossas investigações no estado do Maranhão, situado na região nordeste do país, no estado que possui a segunda pior taxa de médico por grupos de 1000h, apontaram que há um trânsito intenso desses profissionais das grandes cidades e de estados visinhos para preencher as vagas abertas pelas redes pública e privadas nas pequenas cidades maranhenses. Assim constatou-se a presença de médicos ocupando postos de emprego público há mais de 500 km de distância de seus lares, uma realidade muito comum em todo o país, acelerada nos últimos anos pelo excesso desses profissionais nas capitais.

4. Efeitos previstos do PMM

Transcorridos dez anos desde a criação e implementação do PMM alguns efeitos positivos importantes foram constatados para a população brasileira. As diversas estratégias utilizadas pelo Governo para alcançar os objetivos propostos geraram uma série de benefícios a população brasileira dependente do SUS. A parceria com Cuba mediada pela Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial de Saúde (OPAS/OMS) possibilitou a chegada de mais de 18mil médicos na saúde básica do SUS, para atuar especialmente nas regiões mais longínquas do país. Há evidências de que o PMM gerou incremento na oferta de médicos especialmente nas regiões Norte e Nordeste, a mais carente desses profissionais, bem como nas regiões rurais onde a falta dessa mão obra era mais fortemente sentida. Pesquisas tem demonstrado a ampliação do acesso aos serviços de saúde à medida que o Programa se consolidava (SILVA, et. al, 2016; VIACAVA, et. al,.2018). A população diretamente assistida pelo SUS, especialmente a mais vulnerável, como indígenas e quilombolas, mas, também a das periferias das grandes e médias cidades brasileiras foram beneficiadas pelo programa, passando a ter acesso a estes profissionais e suas queixas ouvidas e tratadas. Pesquisa de Campos e Pereira (2016), ainda em 2016 já havia detectado melhora significativa na atenção primária do SUS no campo e nas cidades, consequência do PMM.

Outras investigações apontaram a melhoria na satisfação dos usuários com o SUS, justificadas pela ampliação no acesso, na qualidade, responsividade do cuidado, e melhoria na estrutura das unidades básicas de saúde. (GIOVANELLA e MENDONÇA, 2016; SANTOS, 2018; TRINDADE E BATISTA, 2016; SOARES, et. al, 2016). Pesquisas ainda ressaltaram a constante presença dos médicos nos postos de saúde, - situação que se diferenciava da anterior ao Programa - e seus impactos nos processos de resolutividade e melhora das condições de saúde da população assistida pelo SUS (LAPA, 2018). Alguns pesquisadores (RUSSO, et. al, 2020; HONE et. al, 2020) avaliaram a melhora dos indicadores como internações por condições sensíveis a atenção primária (ICSAP), - que são pesquisas que tratam do impacto da melhora da atenção primária nas condições gerais de vida do cidadão de modo a evitar o agravamento ou antecipar o tratamento do paciente - e seus impactos na melhora das condições gerais de saúde da população assistida pelo SUS. Tais pesquisas têm demonstrado que as taxas de ICSAP vem reduzindo ano após ano como resultado direto PMM que passou a ofertar a população mais leitos mais médicos, mais enfermeiros, mais auxiliares de enfermagem (MEZADRI, et.al, 2017; SANTOS et. al. 2019).

Por fim, a estratégia prevista no PMM de ampliação da abertura de novos cursos e vagas, sobretudo nas regiões onde havia maior falta de profissionais teve efeito positivo para o sistema público de saúde brasileiro, pois promoveu a interiorização dos profissionais médicos no Brasil profundo onde historicamente essa mão de obra sempre foi escassa ou inexistente. Milhares de vagas disponibilizadas pela rede pública em postos de saúde, nas pequenas e médias cidades brasileiras, mas também nas zonas rurais encontram-se hoje preenchidas por estes profissionais que, juntamente com médicos cubanos, corroboram com o SUS na prestação de serviços de saúde gratuito as populações. Sobre isso, importa destacar que em janeiro de 2023, o Brasil contava com 562.229 médicos inscritos nos 27 Conselhos Regionais de Medicina (CRMs). Isso equivale a uma razão de 2,60 médicos por grupo de 1.000 habitantes, números bem melhores do que os de 2012, antes da implementação do Programa, que era de 2 médicos para cada grupo de 1000 habitantes. Segundo Scheffer, “somente entre 2010 e 2023, 251.362 novos médicos entraram no mercado de trabalho, resultado da abertura de novos cursos e vagas no país” (SCHEFFER, 2023: 34). Assim, diante da dificuldade de encontrar emprego e boa renda nas grandes cidades brasileiras, os médicos formados no Brasil não tem outra opção a não ser ocupar esses postos no interior do Brasil.

O país ainda padece da má distribuição desses profissionais no território nacional, um fenômeno que não é exclusivamente brasileiro. O mesmo acontece em países como EUA e Austrália, que possuem grande dificuldades de fixar essa mão de obra longe dos centros urbanos mais desenvolvidos8. Todavia, se é possível apontar uma tendência no Brasil no mercado de trabalho médico, sobretudo nos governos petistas (2003-2016), e especialmente a partir de 2013, é a de ampliação do número de médicos formados, e consequentemente o aumento da taxa de médicos por grupo de mil habitantes à disposição do Estado brasileiro e, portanto, do SUS e de sua missão de democratizar o acesso gratuito a saúde ao cidadão.

O PMM foi oficialmente encerrado em 1º de agosto de 2019. Naquela data ele foi substituído pelo Programa Médicos pelo Brasil (PMPB), do governo Jair Bolsonaro. O novo programa resultou na dispensa de cerca de 8.500 médicos cubanos, causando grande impacto no atendimento à saúde da parcela mais pobre da população, bem como à comunidade indígena. Todavia, à exceção das querelas criadas entre o então presidente e os médicos cubanos, de um modo geral, a análise dos dois programas indica que o novo programa criado manteve os mesmos princípios preconizados pelo seu antecessor9, embora possa não tê-los implementado na prática por falta de vontade política. O novo programa também manteve intactas as decisões anteriormente impostas pelo MEC do governo anterior que alteraram os projetos pedagógicos dos novos cursos abertos e das novas vagas solicitadas por instituições públicas e privadas, de modo a manter a política de formação de médicos especialistas em Estratégia de Saúde da Família e, portanto, aptos a trabalhar na saúde pública do país. A novidade do PMPB foi a possibilidade de contratação dos profissionais pelo regime CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), em substituição aos contratos temporários de até três anos existentes no PMM. Assim, tanto o PMM quanto seu clone, o PMPB, constituíram-se nas principais políticas federais para o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde (APS) entre 2013 e 2022.

O retorno ao poder do Partido dos Trabalhadores em 2023, com a eleição e posse de Luís Inácio Lula da Silva, marca a volta do PMM como a principal estratégia de governo para ampliar a democratização do acesso da população brasileira à saúde pública. Camilo Santana, ministro da Educação do governo Lula, afirmou a necessidade de reavaliar as políticas de abertura de novos cursos e vagas e criar critérios novos que subsidiem essa ampliação10. Scheffer (2023) observa que nunca houve um crescimento tão grande da população médica no Brasil em um período tão curto de tempo. Em 2003, se formaram 9.253 médicos; em 2013, esse número pulou para 18.611 e, em 2021, 25.070 médicos. Mais de 50% dos médicos atuantes no Brasil em 2023 entraram no mercado de trabalho antes do ano 2000. Para o autor, o número desses profissionais no mercado de trabalho pode ultrapassar mais de 1 milhão em 2035 em todos os cenários e projeções realizados. Esse ritmo de crescimento acelerado é o resultado das metas de médio e longo prazo do PMM. “A maior velocidade de crescimento é registrada após 2020, efeito da Lei Mais Médicos, de 2013, que induziu a maior abertura de vagas a partir de 2014” (SCHEFFER, 2023: 55).

5. Efeitos não previstos do PMM

A implantação do PMM tem efeitos que vão muito além dos almejados O objetivo do PMM era o de levar saúde pública e gratuita a todo cidadão brasileiro como preconizado na Constituição Cidadã de 1988 e uma das estratégias utilizadas - ampliar rapidamente o número de profissionais no mercado - teve como efeito o redimensionamento do jogo de forças não apenas entre médicos e o Estado, o maior empregador do país, mas também frente ao capital privado, que também compra essa mão de obra no mercado e a revende a população por meio planos de saúde e nas redes privadas de hospitais e clínicas.

Como pontuado anteriormente, foi a constituição de 1988 que consolidou essa dupla organização sistêmica da saúde no Brasil (a púbica e a privada). Ao mesmo tempo que o texto constitucional instituía a saúde como um direito universal e um dever do Estado, criando o Sistema Único de Saúde (SUS), ampliou o espaço de atuação do setor privado, por um lado, regulamentando sua atuação por meio de uma legislação específica11 e, por outro, via incentivos fiscais, concessão de subsídios, etc. O que se viu a partir da década de 1990 em diante foi a consolidação desse setor como um dos mais poderosos da economia brasileira. Sua regulamentação por parte do estado tinha como objetivo garantir, por um lado, o equilíbrio e a solvência econômica desse segmento da economia e, por outro, os direitos dos consumidores de planos privados de saúde em expansão desde finais da década de 1980. A aprovação da legislação regulatória gerou o aumento dos investimentos estrangeiros nesse mercado, seja com aquisição de empresas que vendem planos e seguros de saúde (operadoras) ou, comprando redes hospitalares e de clínicas do país. Assim, ao longo das décadas de 1990 e 2000, dezenas de pequenas operadoras foram engolidas pelas gigantes que passaram a dominar o mercado desde então. Nas duas décadas seguintes constatou-se, por um lado, o incremento no número de beneficiários do setor de saúde ao mesmo tempo em que o número de operadoras diminuía consideravelmente. Todavia, faltava resolver um problema, qual seja: a falta de médicos no mercado, a autonomia que possuíam frente aos agentes empregadores, o poder social e os altos salários recebidos que historicamente drenava parte considerável dos lucros das empresas. A contribuição do Estado ao setor foi fundamental na medida em que conseguiu resolver o problema da falta de mão de obra. O PMM fez surgir um exército industrial de reserva a disposição dessas organizações. Por outro lado, ao longo dos últimos dez anos, um conjunto de alterações tem sido implementadas por essas empresas no sentido de minar a força desse segmento profissional. O passo seguinte foi no sentido de diminuir a autonomia desses profissionais e os altos salários. Uma das estratégias utilizadas pelo setor foi investir no processo de integração vertical ou verticalização. O debate sobre verticalização permite esclarecer a origem do lucro dessas mega organizações que dominam o mercado privado de assistência a saúde no Brasil. Antes, porém, importa umas poucas palavras sobre as formas de remuneração do trabalho médico no interior do sistema privado brasileiro.

As relações comerciais estabelecidas no mercado de assistência privada a saúde historicamente criou dois lados: de um lado estão as grandes corporações hospitalares (hospitais e clínicas) que abrem espaço para a atuação dos médicos; do outro, ases grandes corporações de planos (operadoras) e seguros de saúde que pagam aos hospitais e médicos pelos serviços usados pelos seus clientes. Nestes termos, as redes hospitalares e os médicos encontram-se em um polo enquanto no outro estão as operadoras e seguradoras. Entre um e outro encontra-se o paciente aflito para resolver seu problema de saúde

De um modo geral, os hospitais não possuem vínculos empregatícios com os médicos. Estes, para trabalharem ali, são obrigados a constituírem-se como pessoas jurídicas e só nessa condição são contratados. Esse tipo de contrato tende a favorecer as redes hospitalares que economizam com todos os encargos e tributações presentes na contratação e manutenção de um empregado. Direitos básicos comum a todo trabalhador como férias, décimo terceiro, recolhimento de impostos para aposentadoria, entre outros, não fazem parte dos direitos que os médicos possuem. Como profissionais liberais, eles assumem todos os riscos de uma vida de trabalho sem proteção da legislação trabalhista que normatiza as relações capital/trabalho no Brasil. Importa salientar que a história da medicina no Brasil, sobretudo da segunda metade do século XX em diante, é marcada pela defesa da classe médica dessa bandeira (médicos como profissionais liberais)12. O que se analisa com esta reflexão são os impactos na profissão em uma nova situação em que o mercado de assistência a saúde passou a ser dominado por grandes e poderosas corporações financeiras.

Até o início da década de 1990 vigorou no país um sistema privado de serviços médicos marcado não pela presença das grandes corporação mas pela relação direta entre médicos e pacientes. Assim, de um lado encontravam-se os médicos como profissionais liberais, proprietários de seus próprios estabelecimentos, fornecedores da mercadoria saúde e do outro, os pacientes interessados em comprar essa mercadoria e restabelecer sua saúde. Essa relação é substituída por outras em que uma série de atores econômicos passam a intermediar a relação médico/paciente. Por um lado, surgiram gigantescos conglomerados financeiros que monopolizam a clientela (a exemplo das operadoras de planos de saúde com milhões de clientes) e, por outro, poderosas corporações (a exemplo das grandes redes hospitalares, de clínicas médicas e de laboratórios), organizações complexas, que são as únicas com capital financeiro suficiente para adquirir máquinas e equipamentos de exames e estruturas onde os pacientes são tratados. Tais organizações foram beneficiados pela consolidação do modelo hospitalocêntrico. No conflito econômico pelo lucro entre operadoras e seguradoras de um lado e redes hospitalares por outro, o médico, produtor dessa mercadoria se tornou o elo mais fraco, pois foi inserido em estruturas burocráticas que passaram a controlar o seu trabalho por inteiro.

Em um passado não muito distante, a parceria estabelecida entre hospitais e médicos favorecia a ambos, à medida que mais procedimentos eram realizados e, por conseguinte, pagos pelos planos de saúde. Assim, na relação com o paciente, - desprovido de qualquer conhecimento sobre que técnicas realizar para resolver seu problema de saúde - os médicos podiam prescrever uma série de procedimentos que seriam realizados dentro dos estabelecimentos (hospitais) onde eles prestam serviços13. Muitos dos procedimentos eram realizados pelos próprios médicos que os prescreveram. Esses custos são arcados pelas operadoras de planos de saúde. Nos últimos anos, estas vem adotando algumas estratégias para diminuir esses custos, sendo um dos mais importantes o processo de integração vertical ou verticalização. Trata-se de uma estratégia administrativa inversa à terceirização, uma vez que qualquer procedimento, do insumo à comercialização ao cliente, produzidos até então separadamente por diversas empresas, são realizados agora no interior de uma única organização (MACDOWELL e CAVALCANTI, 2001). Byrne e Ashton (1999) sugerem que a verticalização ocorre na maioria das vezes com o objetivo de maximizar os lucros. Ela gera ganhos reais de eficiência no interior das empresas pois racionaliza os procedimentos, elimina intermediários, diminui o risco moral14 e o problema da assimetria de informações entre elas e os demais prestadores. Sobre isso, Santacruz, observa que a assimetria de informações sempre foi um dos maiores gargalos para as operadoras e impulsionou o processo de verticalização. Observa Santacruz:

Especificamente no mercado de saúde suplementar, o conflito de interesses pode ser visualizado na relação entre as operadoras e os prestadores de serviços. O conflito surge essencialmente pelo fato de que aquilo que representa custo para as operadoras (por exemplo, as despesas médico-hospitalares) representa receita para os médicos ou hospitais. Analogamente, o que representa custo para os beneficiários (as mensalidades) representa receita para as operadoras. Portanto, o conflito de interesses materializa-se nas relações contratuais das operadoras com seus provedores e beneficiários na medida em que as ações estratégicas que governam estes contratos possuem sentidos opostos. Dependendo da forma de remuneração estabelecida entre os agentes (operadora e prestador de serviços), uma maior utilização de serviços pode estar sendo incentivada, como é o caso do pagamento por serviço realizado. Nesse caso, os agentes possuem incentivos opostos, o que leva a constante oposição de objetivos. Para a operadora, quanto menor for a utilização, maior seu lucro. Para o prestador, quanto maior for a utilização, maior o lucro. A assimetria de informação está presente, pois a operadora não monitora totalmente a ação do prestador e o incentivo para o comportamento oportunista por parte do prestador de serviço é evidente. (SANTACRUZ, 2011: 14)

Leandro (2010), observa que a integração vertical tem sido adotada pelas grandes operadoras de planos de saúde com o objetivo de colaborar no controle do número de procedimentos e dos preços dos procedimentos/produtos utilizados na prestação de serviços médico-hospitalares, diminuindo, portanto, o custo da sua operação. As operadoras perceberam que a aquisição de uma rede própria (hospitais, clínicas, laboratórios, etc) reestrutura a dinâmica econômica interna das organizações, alinhando os interesses entre os prestadores de serviços médicos e as operadoras de planos de saúde que passam a maximizar os lucros das duas atividades conjuntamente. A estrutura verticalizada reduz os custos das operadoras possibilitando, em tese, maior racionalidade econômica, maior capacidade de competição no mercado e a oferta de produtos com preços menores para os beneficiários (CUELLAR e GERTLER, 2006). Assim, a aquisição de hospitais e laboratórios por parte das operadoras de plano de saúde terá maior habilidade para controlar o número de procedimentos, a serem custeados. Ao mesmo tempo, transformar o médico em empregado com salário fixo, controla sua atividade e, por conseguinte aumenta os lucros.

Na nova realidade do mercado privado de assistência a saúde, sem acesso direto aos clientes, desprovidos de poder econômico para adquirir os equipamentos necessários ao desenvolvimento de sua profissão e obrigados a se submeterem aos desígnios dos grandes atravessadores, estes profissionais que um dia foram escaços no mercado, mas já não o são mais, não tem outra saída a não ser se submeterem ao crescente processo de assalariamento. Diante da nova configuração do mercado de trabalho, estes trabalhadores são facilmente submetidos a normas regulatórias e hierarquias administrativas que modelam a distribuição de serviços, definem procedimentos, em suma, destroem qualquer possibilidade de autonomia ou liberdade de atuação profissional. O quadro da profissão fica mais dramático no caso brasileiro na medida em que o rápido crescimento do número de médicos na última década enfraqueceu seu poder de barganha no mercado e fortaleceu o dessas organizações que dominam o setor e às quais os profissionais são obrigados a trabalharem e se submeterem as suas regras de controle.

6. As políticas públicas no contexto do capitalismo contemporâneo

A situação acima descrita é resultado de uma miríade de transformações sociais, econômicas, históricas e jurídicas que redimensionaram o jogo de forças entre este segmento profissional e a sociedade mais ampla. Dados os limites físicos do presente artigo, nos limitaremos a umas poucas palavras sintéticas sobre alguns aspectos teóricos adicionais desse debate de modo a pintarmos um quadro - caricatural, talvez - de como abordamos macrosociologicamente o objeto aqui investigado. Partimos da premissa de que os fenômenos sociais são sempre pluricausais, sendo impossível analisar todas variáveis que levaram ao seu surgimento, não obstante, algumas possuem peso maior na conformação de um fenômeno. O aprofundamento da pesquisa de campo, a revisão da literatura especializada e o debate teórico sugeriu a existência de dois conjuntos de variáveis que conformam o fenômeno investigado: variáveis macro e externas e micro e internas; transformações econômicas do capitalismo e transformações no âmbito da sociedade brasileira tais como: jurídicas e de políticas públicas. São a esses dois conjuntos de variáveis que atribuímos um peso causal (WEBER) maior capaz de promover uma reconfiguração do atual campo da medicina brasileira. Assim, tornou-se premente percebermos a relação entre causas externas (mudanças na dinâmica do capital) e causas internas (transformações jurídicas e de implementação de políticas públicas na sociedade brasileira) que possibilitaram o surgimento do fenômeno em investigação.

Algumas análises poderiam ser feitas no sentido de perceber as transformações micro, ocorridas no Brasil, como resultantes das transformações macro - reconfiguração do capital - mas, por um lado, tal análise extrapolaria os limites propostos por esta investigação. Em segundo lugar, temos consciência da influência das causalidades externas sobre as internas, mas estas não andam a reboque daquelas, não são seus corolários. Pelo menos, não foi por este caminho que trilhamos a nossa análise. Entendemos que possuem dinâmicas próprias e são influenciadas por outras forças e resultam das transformações na própria sociedade, que vão além das econômicas.

Quanto as causalidades externas e olhando a partir de uma macrosociologia econômica, há elementos históricos e teóricos que permitem afirmar o reposicionamento da categoria médica dentro do processo de produção econômica e as novas estruturas econômicas determinam o seu espaço e seu papel na estrutura da sociedade. Retomando as reflexões de Piketty (2014) e Dubet (2015), o problema central colocado é relativo à renda do trabalho e às formas de distribuição da riqueza. As transformações econômicas alcançaram categorias profissionais como os médicos brasileiros que, ao longo de praticamente todo o século XX, especialmente no Brasil, estiveram parcialmente fora do jogo capital/trabalho, mas que, a partir da promulgação da constituição de 1988, entrou em definitivo na lógica econômica que estrutura a dinâmica de todas as profissões.

Se até o terceiro quarto do século XX, os médicos tinham relações diretas com os pacientes e o processo de trabalho era mais artesanal e baseado na autonomia, essa característica da assistência à saúde começa a se transformar no Brasil nos últimos trinta anos, com o processo de produção capitalista e a consolidação do modelo hospitalocêntrico e a saúde se transforma em definitivo em mercadoria fictícia no sentido de Karl Polanyi e seu produtor, o médico é ao mesmo tempo valorizado e o controle do seu trabalho cobiçado. Desse modo, o quadro que constatamos na atualidade, é o de submissão dos médicos às mesmas regras de produtividade impostas às demais categorias profissionais presentes no mercado de trabalho tais como: a instabilidade no emprego, ritmo intenso de trabalho, mão de obra em expansão no mercado, precarização das condições de trabalho, insalubridade, futuro incerto, etc.

Na dinâmica do capitalismo existe uma pluralidade de formas de valorizar as coisas transformando-as em mercadorias, obedecendo à lógica da acumulação ilimitada do capital e, para isso, este se desloca em diferentes campos em busca da lucratividade. Essa forma de deslocamento tem por efeito ampliar e harmonizar o universo da mercadoria. As exigências de lucro orientam as transformações e, por essa razão, os limites atingidos pelos lucros relativos da produção de massa estimularam o deslocamento do capitalismo em direção a novas áreas que ficaram a margem, enquanto a produção em massa era considerada como espaço privilegiado de lucro. Esse tipo de produção supõe fortes investimentos em capital e a mobilização de um grande número de trabalhadores aos quais é necessário pagar salários. Assim, há uma homologia entre a produção capitalista de massa e o desenvolvimento considerável da sociedade salarial (BOLTANSKI e ESQUERRE, 2017: 375-376). É nesse sentido que se desenvolve, no campo da medicina, um tipo de trabalho médico em grande escala, onde a organização disciplinada pela lógica da produtividade assume um papel central nos novos modos de dominação (BOURDIEU, 1989, 2004).

Para compreender a atual lógica de expansão do capitalismo e como os trabalhadores médicos são afetados, é preciso levar em conta os limites impostos pela busca da lucratividade na produção em massa. Como bem observa Boltanski e Esquerre (2017), o modelo de deslocamento das empresas em direção aos países com baixos salários têm por objetivo reduzir os custos da produção e manter a margem de venda e de lucro. Entretanto, tem algo novo acontecendo, pois a lógica da nova economia do enriquecimento procura captar menos dinheiro dos trabalhadores mais pobres, o que foi estimulante na produção de massa. Ao contrário, a maximização do lucro passa a ser buscada nas categorias liberais intermediárias como os médicos, por exemplo, através do processo de controle da profissão, do assalariamento desses profissionais e do monopólio do mercado de assistência à saúde. “É a extensão do campo da mercadoria que alimenta o desenvolvimento de uma economia do enriquecimento” (BOLTANSKI e ESQUERRE, 2017, p.379).

A institucionalização do sistema de mercado consolidou e desenvolveu progressivamente uma forma particular de organização do trabalho que atingiu também o trabalho do médico. Isso marca uma nova fase de desenvolvimento do capitalismo ao instituir o modelo de industrialização definido pela produção e pelo consumo de massa e uma nova arte de governar (POLANYI, 2004). Com a crise do keynesianismo, um novo modelo de organização do trabalho se instaura caracterizado por um controle sistemático de avaliação de desempenho baseado na produtividade. O fenômeno atingiu tanto as economias centrais quanto as periféricas e em desenvolvimento como a brasileira. Demorou mas conseguiu atingir até aquelas profissões que acreditavam estar fora dessa dinâmica capital/trabalho como a dos médicos. A concentração da força de trabalho da saúde e dos equipamentos em um único espaço que é o hospital (modelo hospitalocêntrico), a tecnificação do ato médico e a ênfase na medicina curativa são elementos centrais dessa transformação no mercado da saúde, por exemplo.

A transformação da saúde em mercadoria tornou possível também implantar um novo tipo de governabilidade e gerenciar os que produzem essa mercadoria fictícia que são os médicos. O hospital torna-se o espaço privilegiado de organização do trabalho e da produtividade dos médicos.

Com o reordenamento do trabalho médico, a dimensão científico-tecnológica da medicina tornou-se predominante, orientando global ou parcialmente os processos de trabalho atuais e impondo um novo padrão de formação escolar, ancorado na estrutura altamente tecnificada do hospital-escola, valorizado por meio de mecanismos formais e informais a aquisição de conhecimentos científicos e a integração ao mercado de trabalho através da especialização (NASCIMENTO SOBRINHO, NASCIMENTO E CARVALHO, 2005, p. 131-132).

É possível percebermos as ligações entre as transformações recentes do trabalho do médico associadas à grande transformação do sistema de produção capitalista que atingem as agências privadas e as políticas públicas de saúde. É o controle sobre a clientela, a propriedade privada dos meios materiais de trabalho e a liberdade de mercado em relação a fixação do preço (da consulta e do tratamento) que permite compreendermos a posição que o médico ocupa na sociedade, bem como a questão da autonomia da prática médica.

Mudanças ocorridas no modo de produção do cuidado médico promoveram crescente separação entre o produtor direto e uma parcela significativa de seus meios de produção, e a substituição da troca entre produtor e consumidor pela venda da força de trabalho, no âmbito de um sistema de produção estatal ou provado dos serviços de saúde. (NASCIMENTO SOBRINHO, NASCIMENTO E CARVALHO, 2005, p.133).

Essas transformações modificaram ainda as formas de inserção do médico no mercado de trabalho na medida em que este é caracterizado por uma perda progressiva da autonomia profissional e isso tem consequências não somente do stress para o médico, mas também para a qualidade do serviço prestado à população (SCHRAIBER, 1993; MACHADO, 1996; TEIXEIRA, 2016). Consolida-se no país um modelo de trabalho marcado pelo produtivismo ao qual o profissional dificilmente pode se opor. O fenômeno é percebido tanto na rede pública quanto na rede privada.

Embora existam profissionais que recusam a se curvar ao produtivismo e lutam por autonomia e por um estilo de trabalho mais humanizado, personalizado, sem metas diárias de atendimento a serem cumpridas, o produtivismo é um fato estabelecido tanto na rede pública quanto na privada e a pressão pelo aumento da produtividade diária dos profissionais é um fato. Os valores baixos pagos pelas operadoras de planos de saúde por procedimentos e consultas, por exemplo, também empurram estes profissionais para a intensificação das suas atividades diárias na busca de alcançarem rendas um pouco mais elevadas. O setor privado e mesmo o Estado, trabalham com a certeza da existência de um importante e crescente “exército industrial de reserva” para substituir o profissional que se recusa a se submeter as novas condições de trabalho e aos baixos salários, fato mais constante nas grandes cidades brasileiras.

Conclusão

O presente artigo apresentou, de maneira sucinta, parte dos resultados da pesquisa iniciada em 2018 sobre os impactos no campo da medicina de algumas políticas públicas que permitiram a ampliação da mão de obra médica no Brasil. Obviamente ainda há muito o que pesquisar e importantes temas ainda carecem de mais análise, mais pesquisa e reflexão adensada.

Enquanto entidades representativas da classe médica, como por exemplo o CFM, ficaram um bom tempo preocupadas com o governo Dilma Rousseff, que facilitara a migração de médicos cubanos para atender à população brasileira mais carente, não se atentaram para os efeitos das estratégias de longo prazo do PMM e que se mantiveram intactas no PMPB de Jair Bolsonaro, que era manter e ampliar o número de cursos e vagas em todo o Brasil, criando um verdadeiro exército industrial de médicos à disposição do Estado e do mercado. A volta do Partido dos Trabalhadores ao poder com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva em 2023 inaugura a volta do PMM como o principal programa de governo a atuar em todos os municípios do país. Nessa nova gestão petista, um freio de ajuste parece que foi acionado, pois o Ministério da Educação só prevê autorizar a abertura de novas vagas e cursos de medicina em regiões que sejam comprovadamente carentes de médicos ou onde se constate a dificuldade de fixação desses profissionais. O MEC também deixa claro que existe uma necessidade de redefinir critérios para a abertura de novos cursos e vagas no território nacional, o que pode ser considerado uma pequena vitória para a categoria15. O governo sempre apostou que a interiorização dos cursos de medicina promoveria por conseguinte a interiorização desses profissionais, sobretudo nos locais onde mais faltam médicos. Todavia, tal interiorização está acontecendo pela falta de trabalho nas grandes e médias cidades brasileiras que já não absorvem tantos profissionais formados a cada ano. Há limites financeiros por parte do setor público (federal, estadual e municipal) para contratação desses profissionais e o setor privado (especialmente as grandes redes hospitalares e os planos de saúde) vem se beneficiando dessa abundante mão de obra e oferece cada vez menos pelos serviços médicos.

Da perspectiva do Estado, políticas públicas como o PMM têm sido uma importante estratégia para se cumprir o que está definido na Constituição de ofertar saúde pública e gratuita à população brasileira. Algum tipo de mudança já é visível hoje. O programa contribuiu com a democratização do acesso à saúde para milhões de cidadãos, e o atendimento aos usuários, sem sombra de dúvida, foi ampliado em todo o país. Centenas de UPAs, hospitais e clínicas médicas estaduais e milhares de postos de saúde municipais e nas zonas rurais dispõem hoje de médicos para atender à população mais pobre.

Da perspectiva do capital privado, a abundância de mão de obra, especialmente nos grandes centros urbanos, tem permitido negociações trabalhistas favoráveis ao primeiro, permitindo a oferta de serviços médicos a preços populares, o que diminui também a pressão sobre o SUS. Nos últimos anos, se multiplicaram as clínicas médicas em os capitais e grandes centros urbanos que oferecem diversos serviços e tratamentos médicos economicamente acessíveis, sobretudo à classe média baixa. As operadoras de planos de saúde também têm se beneficiado dessa abundância de mão de obra médica e começam a estender sua rede assistencial para o interior do Brasil, naqueles municípios de médio porte.

A classe médica enxerga de outra maneira a supracitada política pública. Denúncias do CFM propagandeiam a piora nas condições de trabalho, em que se destacam: a perda de direitos trabalhistas - ao mesmo tempo que Estado e capital se aproveitam da grande oferta de mão de obra no mercado e promovem diminuição de salários em todos os níveis -, intensificação da exploração dos trabalhadores e o aumento dos processos de fiscalização da qualidade dos serviços prestados, sobretudo entre os recém-formados.

A escolha por essa política pública buscava solucionar os problemas crônicos da falta de médicos na saúde pública brasileira, não obstante, ela tem afinidades eletivas com a reforma implementada pelo neoliberalismo nas economias periféricas: de investir em retirar lucro não mais (ou não só) dos segmentos mais baixos, mas também dos setores intermediários como os profissionais liberais, dos quais os médicos são a “cereja do bolo”.

Não foi possível encontrar uma saída dentro do PMM capaz de garantir o cumprimento da obrigação do Estado na oferta de saúde pública e gratuita a toda a população e ainda preservar condições adequadas de trabalho e renda ao segmento médico. A implementação de uma implicou a precarização das condições de trabalho, o achatamento dos salários e a intensificação da exploração da mão de obra médica. A análise dos dados revelou um governo incapaz de atender a todas as demandas, sendo necessário fazer uma escolha. Dilma Rousseff e Bolsonaro, ao preservar a estrutura geral do PMM, escolheram, consciente ou inconscientemente, priorizar o usuário e, com isso, atenderam também aos interesses do capital, lançando a classe médica em uma nova realidade, muito diversa daquela encontrada no século passado.

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Notas

1 A primeira investigação intitulada As Políticas Públicas Dos Governos Petista Lula E Dilma Roussef (2003-2015) E Seus Impactos Na Reestruturação Da Profissão De Médico No Maranhão E Brasil. (Formação, Qualificação, Inserção Profissional E Status) iniciou em 2018 e concluido em 2021. Em seguida demos incício a uma outra investigação desdobramente dessa, chamada Os Atravessadores do Campo da Saúde: Um estudo sobre a expansão dos planos de saúde no Brasil e no Maranhão e alguns de seus impactos na reestruturação da profissão de médico no período de 2021 a 2023.

2O INAMPS tornou-se, durante o regime militar, a principal política pública de saúde e vigorou até 1988 quando foi criado o SUS (Sistema Único de Saúde).

3O sistema de saúde suplementar no Brasil iniciou suas atividades em 1956 com a criação da Policlínica Central fundada pelo médico Juljan Czapski na cidade de São Paulo.

4Importa salientar que a expansão da rede privada d ensino superior ocorre em quase todos os ramos do conhecimento a apartir de meados da década 1990 e é parte de um processo que se inicia com a mercantilização das universidades públicas para, em seguida, passar ao seu empresariamento. Assim, não somente os cursos ligados à saúde se multiplicam, mas o ensino superior como um todo. Todavia, o recorte da pesquisa buscou entender as motivações políticas que sustentaram as políticas públicas e programas como o PMM para justificar a expansão dos cursos de medicina.

5Algumas importantes pesquisas que analisam a expansão do ensino superior no Brasil, especialmente a partir da década de 1990 em diante, apontam uma série de variáveis importantes para entender esse processo. Destaque para a concessão de incentivos por parte do Governo Federal, especialmente a partir dos anos 2000, às instituições privadas e confessionais, impulsionando a participação do setor privado no sistema educacional. como observam Tomás e Silveira. (TOMÁS e SILVEIRA, 2021: 150-151).

6Um dos marcos históricos mais relevantes que acelerou esse processo foi a chamada Marcha dos Prefeitos (2013), que, sob forte pressão social, exigia do Governo Federal mais profissionais médicos: “Cadê os médicos?”.

7 Em grande medida, graças aos incentivos contidos na nova Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996, que afrouxara as regras, facilitando a expansão do ensino superior.

8A Organização Mundial de Saúde estima que 50% da população mundial vive em áreas rurais e é assistida por apenas 25% da força de trabalho médico (ARAÚJO E MAEDA, 2013).

9O PMPB previa, textualmente, a manutenção das estratégias de médio e longo prazo contidas no PMM, como o fortalecimento da interiorização de médicos, por meio da abertura de novos cursos e vagas fora das regiões metropolitanas e da prestação de serviços médicos na atenção primária do SUS nas localidades longínquas dos grandes centros urbanos. Previa, ainda, o aprimoramento do modelo de atendimento médico federal. O balanço realizado por estes pesquisadores desse programa indica que a saída dos médicos cubanos teve efeitos deletérios na prestação de serviços médicos à população mais carente. Por outro lado, o ritmo da abertura de novos cursos e a ampliação de vagas nos já existentes se mantiveram.

11Lei no 9.656/98, que regulamentou a presença dos planos de saúde no Brasil, além da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) (Lei no 9.961), instrumentos de intervenção direta do Estado no meio privado de assistência à saúde. Essa, ficou conhecida como Lei dos Planos de Saúde, pois regulamentou o modo com que as operadoras de saúde deveiam trabalhar. No período anterior a sua promulgação e a criação da ANS, as empresas de planos de saúde tinham total liberdade na construção de seus próprios contratos, fazendo, elas mesmas a definição dos direitos e deveres de cada uma das partes. Essa total liberdade gerava diversos conflitos com os clientes. A Lei dos Planos de Saúde ao ser implementada no ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu uma série de limitadores e balizas que os agentes deveriam seguir, dentre elas: a) Políticas de controle de reajuste dos planos de saúde; b) Regras para entrada e exclusão de beneficiários; c) Obrigatoriedade da prestação de contas; d) Definição da cobertura mínima do plano de saúde; e) Políticas de reembolso e renovação automática dos planos; f) Prazos de carência para atendimento. A Lei 9.656/98 proporcionou uma uniformidade para os contratos de planos de saúde, segmentando os serviços que são oferecidos e estabelecendo regras mais precisas para os reajustes de preços. Além disso, criou uma forma de regulamentação dos planos de saúde, permitindo que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) realize a fiscalização dos planos do país a partir de determinados parâmetros constitucionais.

12Uma marca histórica do campo da medicina no Brasil dos últimos 70 anos foi a defesa de um modelo liberal, sem regulamentação e intervenção do Estado brasileiro nas relações econômicas entre estes profissionais e a sociedade que demanda por seus serviços. Consolidou-se a ideologia segundo a qual a independência (especialmente econômica) do médico era considerada condição sine qua non para assegurar a qualidade do serviço prestado. Dito de outra maneira, a autonomia econômica do médico era essencial e tinha efeitos não econômicos como a liberdade terapêutica. Defendia-se a ideia de que um profissional independente ou não subordinado a estruturas burocráticas pode exercer sua profissão plenamente e conduta terapêutica será norteada pelas necessidades individuais de cada paciente e não por diretrizes estabelecidas por entidades superiores que se arvorem a controlar o trabalho desses profissionais (DONNANGELO, 1975; IMMERGUT,1992). Mesmo antes da consolidação das entidades de representação da classe médica como conselhos federais e estaduais de medicina, já se constatava a luta do setor em prol de um mercado que não fosse monopolizado por qualquer entidade, em especial pelo Estado. Almeida (1997: 665) observa que o setor: “lutarao contra a entrada do Estado no mercado de seguro-doença, contra os esforços subsequentes de controlar os custos regulando os honorários e mudando os métodos de pagamento para formas mais coletivas (como o assalariamento) e contra as proibições da prática privada para médicos empregados no setor público”. Foi uma luta inicialmente contra a presença do Estado como fornecedor desse serviço e posteriormente, - à medida que se constatava a necessidade de um serviço público de saúde - a luta se concentrou na construção e preservação de um mercado privado de assistência médica concorrente ou auxiliar do Estado. Acreditava-se que a consolidação desses dois campos de atuação (público e privado) protegia a liberdade médica/terapêutica dos profissionais que poderiam transitar entre um e outro e ainda assim sobreviver do seu trabalho.

13Os incentivos oferecidos por hospitais privados aos médicos para que prescrevam medicamentos, exames e outros procedimentos, leva a chamada indução de demanda pela oferta, fenômeno endêmico no setor de saúde privada. Quanto mais serviços dos hospitais são demandados pelo paciente, maior a fatura a ser paga pela operadora. Como há assimetria de informação entre o paciente e o médico, este pode sugerir/indicar a adoção de diversos procedimentos que não necessariamente tenham respaldo técnico-científico. Como as operadoras não conseguem monitorar se as orientações dos prestadores de serviços são adequadas ou se é uma tentativa de realizar procedimentos desnecessários como meio de aumentar a renda dos prestadores de serviços e como raramente elas encontram justificativas para negar os pedidos, seus gastos aumentam.

14O risco moral, ou moral hazard, refere-se à possibilidade de um agente econômico mudar seu comportamento a partir da leitura de diferentes contextos nos quais ocorrem as transações econômicas. Refere-se a uma situação em que um lado da transação detém maior quantidade de informações, ou informações mais seguras, do que o outro. O risco moral envolve algumas situações, destaque para: A ação de um dos lados não é verificável; O agente obtém informação privilegiada durante a transação econômica.

15Uma outra vitória da categoria que merece menção ocorreu durante o governo de Michel Temer. A subida ao poder do vice-presidente em razão do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, permitiu o redirecionamento de parte da política pública de expansão dos cursos de medicina. No final de 2017, o governo sinalizou com a suspensão da abertura de novos cursos e, atendendo ao lobby médico, em 5 de abril de 2018, o Ministério da Educação publicou as Portarias nº 328 e 329, implantando uma moratória de, pelo menos, cinco anos sem a abertura de novos cursos e vagas de medicina no país.

Recebido: 21 de Agosto de 2023; Revisado: 02 de Outubro de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

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* Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), e Prof. Associado 3 do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA. Professor do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal do Maranhão. gamaliel.carreiro@ufma.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0139-7321 (ORCID:0000-0003-0139-7321).

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** Assistente social, Mestra em Serviço Social pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFMA. katianapaula@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4274-7770 (ORCID:0000-0003-4274-7770).

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