Introdução
O proposito deste artigo é discutir o significado e abrangência da dinâmica de mudanças globais que ocorrem a partir dos anos 1990 e seus reflexos no âmbito da saúde, que resultam de crises externas e internas ao setor e sinalizam importantes inflexões que remetem à reflexão e revisão dos marcos de referência organizacionais e políticos que guiaram a área até as últimas décadas do século XX.
O fim da Guerra Fria marcou de forma importante esse processo com profundas e rápidas mudanças mundiais, impulsionadas pelo fim da bipolaridade que ordenou e conduziu o mundo desde a segunda metade dos anos 1940, com o término da Segunda Grande Guerra (1948). Todo o arcabouço institucional, jurídico-legal e de governança do sistema mundial, criado a partir de então, foi inspirado na superação dos horrores da guerra e do nazismo, e teve como objetivo central a reconstrução da Europa, a criação do sistema multilateral -organizacional e financeiro- da ajuda externa e da Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (CID)1 e a aprovação de novos códigos de conduta (nacional e internacional), novas regulações, direitos e deveres a serem cumpridos por todos os países, seja em relação às populações, indivíduos ou nações.
Essas mudanças significaram também, uma nova etapa do desenvolvimento capitalista no mundo, implementada sob a batuta dos Estados Unidos, supostamente em contraposição ao regime comunista adotado pelo outro polo dessa dinâmica (URSS, China e Leste Europeu). O período áureo desse desenvolvimento foi breve e já na década dos 1970, sobretudo a partir de 1975, começaram os problemas e crises econômicas, com repercussões políticas relevantes, anunciando uma “nova era” que se inicia com a queda do muro de Berlim (1989).
Essa síntese muito breve, descreve sucintamente o contexto de emergência de novos termos -como governança global- que tentam definir essas mudanças e afetam todos os setores, com ênfase, porém, nas políticas sociais, onde a saúde se insere -saúde global, governança da saúde global (ou governança global para a saúde) e diplomacia em saúde (ou diplomacia da saúde global). Para o que interessa discutir neste artigo, faz-se referência especificamente ao âmbito da saúde.
Na primeira parte discutem-se aspectos teóricos e metodológicos relevantes para esta análise. A seguir analisa-se o percurso histórico do termo governança e, na terceira sessão apresentam-se as mudanças mundiais no contexto pós-Guerra Fria. Aspectos do conceito de governança global são discutidos na quarta sessão, assim como a governança no setor saúde, na sessão seguinte. Conclui-se repassando as diferentes dimensões analisadas e seus efeitos no setor saúde, assinalando as vinculações com a dinâmica mais ampla do sistema mundial, que se materializam na entrada de determinados problemas de saúde considerados globais nas agendas de política externa, adquirindo diferentes significados, e na sua utilização como instrumento geopolítico. O surgimento de novas articulações político-institucionais (Iniciativas Globais em Saúde e Parcerias Público Privada) em nível internacional, e difundidas mundialmente, institucionalizam a maior participação do setor privado nos processos decisórios do setor saúde e interferem de forma importante na regulação setorial, traduzida na privatização da provisão de serviços, da cooperação e ajuda internacional aos países em desenvolvimento, proliferando os programas verticais e a desconsideração dos governos nacionais, em detrimento do fortalecimento dos sistemas de saúde públicos e universais.
Considerações metodológicas
Este artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa mais ampla que utiliza enfoque qualitativo: revisão bibliográfica (dados secundários); busca e análise de conteúdo de documentos; e entrevistas com atores-chave (dados primários). O tema discutido neste texto surge como relevante no processo de reflexão e desenvolvimento dessa pesquisa e motivou a realização de uma revisão não sistemática da bibliografia especifica sobre a ordem mundial pós-Guerra Fria e suas especificidades; a saúde na governança global; “inovações” nos sistemas de saúde a partir dos anos 1990, relacionadas com esse contexto de mudanças; e a saúde na agenda da política externa, principalmente a partir dos anos 2000. Considerou-se para análise desses assuntos o material publicado no período 1990-2018.
Foram identificados cerca de 120 textos entre artigos publicados em revistas indexadas, livros, capítulos de livros e literatura gris. A leitura e análise destes textos remeteu a uma segunda busca, a partir de referências citadas pelos diferentes trabalhos. Foram selecionados 45 textos que aportavam elementos relevantes para nossa discussão.
O marco teórico utilizado situa-se no campo da análise de políticas públicas, nas quais se insere tanto a política de saúde e a política externa domésticas, quanto as políticas internacionais. Esse campo é multidisciplinar (articula diferentes disciplinas -sociologia, ciência política, economia política, relações internacionais e saúde coletiva), e nenhuma dessas disciplinas, isoladamente, é suficiente para a análise que se pretende neste artigo.
Essa opção teórica merece uma justificativa. Não há consenso na literatura sobre uma definição de política pública (Meny e Thoenig, 1992; Souza, 2006, entre outros). Historicamente, o estudo da política pública, como área de conhecimento e disciplina acadêmica, nasce nos Estados Unidos como subárea da ciência política e em uma perspectiva diferente da tradição europeia. Na Europa, surge como desdobramento dos estudos sobre o papel do Estado e sua principal instituição -o governo; já nos Estados Unidos, a área emerge na academia “sem estabelecer relações com as bases teóricas sobre o papel do Estado, privilegiando os estudos sobre a ação do governo” (Souza, 2006: 22).
A expressão “análise de políticas públicas” (policy analysis) foi formulada nos anos 1930 e, desde então se consolidou, a partir de diferentes autores norte-americanos que foram agregando elementos constitutivos tanto das políticas públicas em si quanto do processo de decisão que as define (atores, relações de poder, grupos de interesse etc.)2. Posteriormente outros autores trabalharam no refinamento da definição de políticas públicas3, porém, a mais conhecida e citada é a de Laswell (1936, apudSouza, 2006: 24): “decisões e análises sobre política pública implicam responder às seguintes questões: quem ganha, por quê e que diferença faz”. Em outras palavras, o foco está no locus onde ocorrem os conflitos/embates entre distintos interesses, preferencias e ideias. Inicialmente, essa especificidade remete às arenas governamentais. Por outro lado, a perspectiva da política pública como instrumento das decisões de governo é um dos produtos da Guerra Fria, que valorizou a tecnocracia e a burocracia estatal, para o enfrentamento da bipolaridade mundial.
Nas últimas décadas do século XX, a partir dos anos 1980, observa-se uma revitalização dessa área disciplinar, com ênfase nas instituições que formulam as políticas públicas, nos processos de formação de agenda e de decisão sobre as políticas, na sua implementação e resultados. Esse ressurgimento se deve aos ajustes macroeconômicos e seus efeitos, assim como às redefinições do papel do Estado na perspectiva neoliberal e às reformas preconizadas e implementadas (do próprio Estado e de setores específicos) (Santos, 1997; Dubrow, 2013). Tipologias sobre as políticas públicas e diferentes modelos de análise proliferaram4.
O outro debate relacionado ao tema se refere à perspectiva de análise da política externa como uma política pública, igual a qualquer outra política nacional (Lima, 2000; Milani e Pinheiros, 2013). Esse pressuposto possibilita a reconcepção do processo decisório da política externa sob os referenciais da política pública (Ratton Sanchez, Silva, Cardoso e Specie, 2006). Nas duas últimas décadas do século XX ocorre “um misto de resgate e renovação nas teses da análise da política externa” como uma política pública, na área de pesquisas em Relações Internacionais (RI) (Milani e Pinheiros, 2013: 14)5.
Tradicionalmente a política externa sempre foi considerada distinta de qualquer outra política doméstica e com autonomia em relação a estas. Até pouco tempo essa concepção era amplamente aceita no campo das RI, sobretudo pela forte influência da teoria realista, ou seja, a formulação da política externa como um instrumento da ação exterior do Estado se daria sempre e exclusivamente com base em interesses e valores territorialmente situados.
Com a globalização contemporânea, a intensificação dos fluxos de interação entre os âmbitos internacional e nacional evidenciou que muitos problemas internos foram globalizados, ao mesmo tempo em que, problemas internacionais (ou globais) foram nacionalizados. Uma das bases teóricas que permitiu o avanço dessa concepção
“[...] foi a da «interdependência» desenvolvida por Robert Keohane e Joseph Nye em fins da década de 1970 [... que] remete a uma determinada concepção de mundo em que é reforçada a relevância das diversas relações políticas e sociais entre os Estados e outros atores não-estatais, na condução das políticas internacionais”. (Ratton Sanchez et al., 2006: 126)
Portanto, as inter-relações entre as políticas doméstica, externa e internacional constituem um continuum de processo decisório, do nacional ao internacional, estruturados como poliarquias6, o que evidencia, por um lado, que as decisões internacionais cada vez mais se conectam com políticas distributivas, redistributivas e regulatórias (políticas públicas clássicas), ao mesmo tempo em que os processos de decisão se tornam mais plurais e complexos7. Essa constatação possibilita a utilização da metodologia de análise de políticas públicas em uma perspectiva mais ampla (Lima, 2002).
Em síntese, essa discussão remete à constatação que “os interesses específicos do país estão, mais do que nunca, atrelados aos seus interesses gerais na dinâmica do funcionamento da ordem mundial” (Lafer, 2000: 263). A condução dessa dinâmica requer o reconhecimento da interdependência entre os Estados e as negociações com outros atores (estatais e não-estatais) em diferentes níveis, nas distintas arenas decisórias; e, ao mesmo tempo, a necessidade de mecanismos de coordenação e cooperação entre eles, também no âmbito internacional, o que remete à questão da governança, cuja compreensão se beneficia dos instrumentos da análise das políticas públicas.
Governança global: um pouco de história
O termo governança admite diferentes definições, segundo o nível de análise, a perspectiva do autor, ou o sentido que lhe é outorgado em conjunturas especificas. Sinteticamente e de forma muito genérica, se refere à capacidade de governar, isto é, de conciliar diferentes interesses e construir força política para o alcance de determinados objetivos. Em âmbito nacional, as definições estão relacionadas aos diferentes níveis de governo e suas distintas dimensões; já na esfera internacional, ou global, se refere à necessidade de criação e condução de uma determinada ordem mundial, que, por sua vez, muda no tempo e no espaço. Em outras palavras, existem diferentes definições pragmáticas do termo, porém, não há consenso na literatura sobre um conceito que permita analisar e explicar as distintas realidades em cada momento histórico. A questão central que permanece é decifrar o sentido que esse termo adquire em determinados períodos, ou seja, qual (ou quais) questões se pretende explicar e entender com essa elaboração conceitual.
Por sua vez, o termo governança global ganha maior visibilidade a partir da segunda metade da década de 1980 e início dos anos 1990, mas é caudatário de pelo menos dois longos e intensos debates. É útil repassar brevemente os momentos históricos que confluíram na generalização do termo governança global, nos anos 1990, para entender as questões empíricas e teóricas que estimularam os debates e a sua construção sua pragmática e conceitual.
Um desses debates se estabelece no âmbito da economia política internacional (na perspectiva geopolítica) e o foco é sobre a questão da “estabilidade hegemônica”, ou do conceito de world hegemony (Kindleberger, 1973; Gilpin, 1987), ou seja, refere-se à existência, ou necessidade, de um “poder global acima de todos os outros”, ou um “poder global legitimado por outros”, para a estabilidade do sistema mundial (ou sistema mundo), composto pelos estados-nação (Wallerstein, 2004), que seria imprescindível para conduzir o mundo em uma determinada direção (Fiori, 2005). Este debate foi desencadeado pela discussão sobre as crises econômicas dos anos 1970 e a suposta, ou possível, perda de poder do hegemon da época -os Estados Unidos, desde a Segunda Grande Guerra.
Pode-se afirmar que com o início da consolidação dos primeiros estados territoriais europeus, a partir do século XIV, foi se constituindo uma determinada dinâmica -competição econômica e acumulação de poder-, onde as guerras foram o motor propulsor de um sistema interestatal conduzido por disputas territoriais e pela necessidade perpetua de acúmulo de poder e riqueza pelos grandes impérios (Fiori, 2005 e 2018).
Chase-Dunn e Lerro (2013: 60, 61 e 62), por sua vez, entendem “o desenvolvimento histórico do sistema mundo moderno” a partir do que denominam a evolução de instituições-chave (produção de mercadorias, tecnologias e técnicas de poder), “conformadas por lutas entre poderes rivais e entre centro e periferia ao longo dos últimos seis séculos” (desde o sec. XV), com a emergência da hegemonia Europeia. Para estes autores, as ordens globais foram reestruturadas em diferentes momentos, para facilitar a acumulação capitalista consolidada e transformada em diferentes “ondas de globalização”. Nesse longo processo histórico, conferem particular relevância ao que denominam “revoluções mundiais” e “movimentos antissistêmicos crescentemente transnacionais”. Assim, “as principais revoluções mundiais após a Reforma Protestante ocorreram nos séculos XVIII (1789), XIX (1848), e XX (1968 e 1989). Desta forma, “a ascensão e queda dos poderes centrais hegemônicos deve ser vista como uma sucessão de modelos de ordem mundial”8.
Não se pode falar, porém, em governança propriamente dita nesses períodos anteriores, ou mesmo em qualquer intenção de “condução de uma ordem mundial”, na forma como foi estruturada no pós-guerras no século XX. Houve intentos relevantes, embora nem sempre bem-sucedidos (Fiori, 2005 e 2018; Murphy, 2014; Chase-Dunn e Lerro, 2013).
A Paz de Vestefália, assinada em 1648, depois da Guerra dos 30 anos (1628-1648), “definiu o princípio da «soberania nacional» e o «sistema político-estatal europeu»” (Fiori, 2005: 67), mas, ao mesmo tempo, consagrou a permanente rivalidade entre eles (Fiori, 2018). Desde então discute-se a necessidade de algum tipo de “poder global” capaz de controlar a violência estrutural do sistema mundial e instaurar alguma forma de governança que permitisse uma convivência mais cooperativa do que beligerante entre os estados nacionais (Quadro 1).
Ano / Século | Propósito |
1815 / Sec.XIX | Depois do fim das Guerras Napoleônicas, nas decisões do Congresso de Viena, com o intuito de pacificar a Europa |
1919 / Sec. XX | Nos Acordos da Conferência de Paz de Paris, depois da Primeira Guerra Mundial, que instaurou a Quádrupla Aliança (entre Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Itália) e resultou na criação da Liga das Nações. |
1948 / Sec. XX | Depois da Segunda Guerra Mundial, com a criação do sistema de Organização das Nações Unidas (ONU). |
Fonte: Elaboração própria a partir de Fiori (2018: 68-69).
O sistema político que se institucionalizou na Europa a partir de 1648 consolidou as mencionadas interações multidimensionais entre Estados soberanos que se “disseminou por todo o mundo, quando o sistema de impérios coloniais se transformou em um sistema interestatal planetário” (Chase-Dunn e Lerro, 2013: 68-69). Para estes autores, a governança “assumiu a forma de liderança e dominação por parte de uma sucessão de nações poderosas -as hegemônicas- e de seus aliados, embora a hegemonia fosse intermitente” (Chase-Dunn e Lerro, 2013: 69).
Historicamente a dinâmica do sistema mundial avança liderada por alguma potência/estado nacional, que conseguiu garantir o controle de territórios políticos e econômicos mantidos na forma de colônias, domínios ou periferias (in)dependentes (Chase-Dunn e Lerro, 2013; Fiori, 2005). Mesmo assim, apenas duas grandes potências conseguiram, em momentos históricos distintos e de forma especifica, “impor o seu poder e expandir as fronteiras de suas economias nacionais até quase o limite da constituição de um império mundial: a Inglaterra [1870 e 1900] e os Estados Unidos [1945 e 1873]” (Fiori, 2005: 69 e 70). Resumindo: a posição hegemônica é uma conquista, um lugar de poder disputada mesmo nos períodos de paz, e transitória, que só pode ser mantida com a expansão e acumulação contínua de poder do hegemon.
Contudo, esses autores afirmam que, por sua própria natureza, o sistema mundial é regido por “duas forças político-econômicas contraditórias” (Fiori, 2005: 68): (1) a tendência na direção de constituir-se um império ou Estado universal, que via de regra não tem interesse colaborativo e se impõe aos demais Estados nacionais; e (2) a resistência, ou recusa dos demais Estados em aceitar imposições que ameacem sua soberania. Chase-Dunn e Lerro (2013) denominam essa segunda força de “resistência nacionalista”.
Em outra clave analítica, as discussões remetem à crise de governabilidade que se seguiu às crises econômicas dos anos 1970 (choques do petróleo e aumento da dívida externa dos países em desenvolvimento), que desembocou nos processos de ajustes estruturais macroeconômicos dos anos 1980 e na consequente reforma do Estado. Nesse debate o foco estava nas dificuldades de implementar os ajustes, principalmente em contextos de jovens democracias periféricas ou semiperiféricas (Souza, 2006; Milani e Pinheiros, 2013).
O novo Estado exigiria requisitos políticos, societais, organizacionais e gerenciais que o tornasse eficaz e eficiente. Os conceitos de governabilidade e governança (governance) sintetizariam essas exigências, sendo tratados pela literatura de forma diferenciada. Muito foi produzido no intento de recuperar a origem histórica dos conceitos e de diferenciá-los (Souza, 2006).
Dois principais argumentos fundamentaram essas análises: um primeiro, do final dos anos 1960 e da década de 1970, centrava-se no excesso de participação e no aumento de demandas resultante, o que requereria o estabelecimento de uma nova ordem, pois o poder (leia-se o poder econômico) somente poderia ser distribuído depois de ser acumulado (o chamado efeito derrame). A saída seria, portanto, autoritária: em um Estado forte deveria predominar o Executivo no processo decisório e o insulamento burocrático garantiria a eficácia e racionalidade das políticas públicas (Souza, 2006)9.
O segundo argumento surge liderado pelas agências financeiras internacionais, com destaque para o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), e defende que a crise de governabilidade surge vinculada às condições de sustentação das políticas de ajuste em contexto democrático. Nos anos 1990, os trabalhos do Banco passam a se referir ao termo governance, que é associado implícita ou explicitamente à concepção de good governance ou good government (World Bank, 1992). Em outras palavras, refere-se à forma de exercício do poder da autoridade governamental no gerenciamento dos recursos do país para o alcance do desenvolvimento. “O viés normativo implícito é o que associa esses pré-requisitos do bom governo à democracia” (Souza, 2006: 4).
Governança se referiria, portanto
“[...] ao modus operandi das políticas governamentais -que inclui, dentre outras, questões ligadas ao formato político-institucional dos processos decisórios, à definição do mix apropriado do público/privado nas políticas, à participação e descentralização, aos mecanismos de financiamento das políticas e ao alcance global dos programas”. (Melo, 1995: 30-31)
Na realidade, no início da década de 1980, a percepção sobre a cooperação para o desenvolvimento mudou. Acreditava-se que o efeito derrame alavancaria a diminuição da pobreza, mas as evidências apontavam o contrário; e a formulação do combate (direto) à pobreza, com políticas especificas, foi obra do BM (Pereira, 2010; Almeida, 2016), construindo-se um consenso internacional de que a ajuda externa incluiria desenvolvimento sustentável, redução da pobreza, integração na economia mundial (abertura econômica) e reconstrução das economias e das sociedades nos países menos desenvolvidos, com participação da sociedade (Weiss, 2008). Os recursos foram então redirecionados para a reforma do Estado, com capacitações (capacity building) e reconstruções (economic and community building). A comunidade de doadores passou a reivindicar uma nova agenda política de boa governança (formalizada em 1992 pelo DAC/OECD), rediscutindo o papel do Estado e defendendo que o desenvolvimento seria alcançado com uma relação mais equilibrada entre o Estado, o mercado e o terceiro setor, privilegiando-se as Organizações não-governamentais (ONGs). Grande quantidade de recursos foram destinados nessa direção com enorme participação dessas organizações.
Os princípios do novo gerencialismo público (new public management), que integram a nova agenda de reforma do Estado, foi reforçado, posteriormente, pelo paradigma das Parcerias Público-Privadas (PPP) e demandas de maior participação de novos atores na construção da governança global (Almeida, 2002 e 2017).
Nessa perspectiva, o conceito de governanca ultrapassa o marco operacional para incorporar questões relativas a padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais que coordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras do sistema econômico (Melo, 1995). Incluem-se aí, não apenas os mecanismos tradicionais de agregação e articulação de interesses, tais como partidos políticos e grupos de pressão, mas também redes sociais (formais e informais) hierarquias e associações de diversos tipos.
As inflexões históricas nessa dinâmica ajudam a entender as mudanças que ocorrem no período pós-Guerra Fria e que impulsionaram transformações relevantes, tanto na dinâmica do sistema mundial, como na sua governança, mais conhecida contemporaneamente como governança global
O contexto mutante das arenas internacionais
Um século antes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) havia algum tipo de governança, realizada por algumas organizações públicas e privadas que articulavam os países industrializados dos principais impérios europeus e conquistaram e dividiram grande parte do mundo (Murphy, 2014; Birn, Muntaner e Afzal, 2017). Este momento particular da globalização do capitalismo industrial terminou com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a depressão dos anos 1930 e a Segunda Grande Guerra (1939-1945). Tanto a Liga das Nações como outros atores e ativistas tentaram encontrar alternativas para a paz, sem sucesso, o que só foi acontecer nos meados dos anos 1940, após o término da Segunda Guerra, com a criação dos instrumentos multilaterais de governança, sendo a Organização das Nações Unidas (ONU) o centro de um novo sistema de organizações públicas e privadas que alavancaram uma rápida transformação econômica por cerca de 20 anos (1945-1975).
Foi o fim da Guerra Fria (1989) que descortinou a complexidade da nova ordem mundial já então estabelecida, evidenciada tanto pelas mudanças em curso desde então (tecnológicas, econômicas, políticas, socioculturais e éticas), quanto pela maior visibilidade do grande elenco de atores transfronteiriços e crescentemente globais que atuam nas arenas internacionais (Weiss e Wilkinson, 2014).
Concretamente, o “desaparecimento do regime geopolítico bipolar”, as “bases éticas e ideológicas que sustentavam a cooperação entre as grandes potências capitalistas também desapareceram” (Fiori, 2005: 71). Este momento de transição para uma ordem incerta foi visto como um possível retorno ao caos e à anarquia (a qual, na perspectiva realista, sempre esteve presente), estimulando a reflexão, e reestruturação, de uma nova ordem mundial. Diferentes autores alertam para as mudanças cruciais que se descortinam nesse período.
Recuando um pouco no tempo, é conhecido que a Segunda Guerra Mundial teve um impacto devastador no mundo, repercutiu em praticamente todos os continentes (exceto América Latina e Sul da África), remodelou drasticamente a ordem mundial e teve como consequência primordial a transformação radical do poder global. A guerra forçou o reconhecimento de que a natureza e o processo de governança global, ou seja, a forma como diferentes atores atuavam -Estados, corporações multinacionais e sociedade civil- deveria mudar, coibindo-se a violência extrema, promovendo a paz e facilitando a interconexão e a interdependência das nações. Na esteira desse processo “o mundo começou a mudar, primeiro lentamente, depois em grande velocidade a partir dos anos 1980” (Held, 2014: 61).
A criação dos organismos multilaterais no imediato pós-guerra (ONU, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, entre outros) e, posteriormente, os órgãos voltados para o comercio (General Agreement on Tariffs and Trade-GATT, desde 1947) seguido da Organização Mundial do Comercio−OMC (criada em 1995), tinham como principal objetivo a abertura das fronteiras ao comercio exterior e são centrais para a chamada globalização econômica pós-guerra. “A estabilidade geopolítica gerada no pós-guerra foi uma pré-condição para a globalização econômica” e a CID cresceu de forma importante nesse processo (Held, 2014: 62).
Surgiram, em ritmo exponencial, várias organizações multilaterais, agências transnacionais e formularam-se novas política globais, envolvendo Estados, organizações intergovernamentais e organizações não-governamentais, além de inúmeros grupos de pressão. Essa dinâmica é atestada pelo grande crescimento dos tratados e regimes internacionais, que alteraram substancialmente o arcabouço legal nos quais os Estados operavam, assim como pelo número de conferências, fóruns e encontros internacionais dos órgãos-chave do processo de decisão internacional (Lima, 2009). Monta-se assim uma complexa articulação de mecanismos de coordenação e de colaboração10, enredando os Estados nacionais em grande variedade de mecanismos de governança.
De certa forma, essa teia de relações revela a adaptabilidade e flexibilidade da governança global, com vantagens, desvantagens e limitações (Held, 2014; Chase-Dunn e Lerro, 2013): por um lado, facilitou a interlocução direta entre os poderes mundiais e possibilitou a inclusão da periferia capitalista; por outro lado, incorporou no seu modus operandi a posição privilegiada dos atores mais poderosos de 1945. Em outras palavras, as novas relações de poder estabelecidas reproduziram a assimetria histórica de poder entre Estados e atores diversificados.
Nessa perspectiva, pode-se afirmar que “a governança global se estrutura como um sistema de estados nacionais aliados e rivais, em um movimento de ascensão e queda de poderes hegemônicos, em um sistema cada vez mais denso de instituições públicas e privadas em escala internacional e transnacional” (Chase-Dunn e Lerro, 2013: 69).
Algumas tendências gerais caracterizam essa mudança, sintetizadas no Quadro 2.
Tipo de Mudança | Significado |
---|---|
1) Maior articulação entre as arenas políticas domésticas e internacionais | As relações entre os Estados nacionais/governos e os órgãos internacionais não são lineares nem unidirecionais, refletindo pressões e circunstâncias diferenciadas que interferem em ambas as esferas. Algumas dimensões dessa articulação são particularmente importantes -por ex. regras do comercio exterior e direitos de propriedade intelectual; crises financeiras internacionais e mudanças climáticas, entre outras. A mudança evidencia que problemas globais mobilizam vários níveis políticos e diversos atores, resultando em diferentes formas de governança, impactando o processo de decisão nos dois âmbitos, difundindo e impulsionando os arranjos transfronteiriços e as redes transgovernamentais. |
2) Emergência e crescimento de novos e poderosos atores não-estatais | Estes atores sempre foram ativos no debate político, sobretudo em nível nacional, a partir de lobbies, agregando e articulando interesses diversificados e, modelando, de alguma forma, o comportamento dos Estados nos fóruns internacionais. Entretanto, a partir dos anos 1990, esses atores se multiplicam e passam a influenciar também diretamente as políticas internacionais, atuando junto às organizações e instituições nessas arenas. Cria-se assim um sistema de governança muito mais complexo. |
3) Mudança na aplicação das regulações internacionais | Tradicionalmente, existem sanções ao descumprimento de acordos ou regulações internacionais sobre determinados temas aos quais os países aderem formalmente. Entretanto, de forma crescente, têm sido formuladas e aplicadas regulações a partir de meios e instrumentos alternativos, como “arranjos voluntários” ou “iniciativas”. A difusão dessas novas formas de regulação e a “construção de capacidades” podem ser instrumentos mais poderosos para mudar comportamentos do que as medidas punitivas. Assim, esse novo enfoque se traduz em incentivos e capacitações. |
Fonte: Elaboração própria a partir de Held (2014), tradução livre.
Held (2014) acrescenta que essas três tendências impulsionaram a proliferação de novos tipos de governança global que combinam vários atores públicos e privados, sob distintos graus de institucionalização, que são particularmente poderosos em algumas áreas, como na governança financeira e na governança global do setor saúde. O policentrismo (ou poliarquia) resultante pode ser vantajoso em alguns aspectos, como na concentração de expertise em determinadas áreas ou temas específicos; mas pode também exacerbar a fragmentação institucional, organizacional e sistêmica11.
Governança global contemporânea: algumas observações sobre o conceito
Em termos gerais, os autores consideram a governança global como algo que se refere à totalidade de mecanismos, formais e informais, que governam o mundo (Weiss & Wilkinson, 2014), i.e., um sistema complexo, policêntrico, multidimensional, multi-setorial e multi-ator (Held, 2014).
Há consenso na literatura que a emergência do termo ocorre nos meados da década de 1990, na esteira das crises (simultâneas ou sucessivas) subsequentes ao rápido (e breve) crescimento econômico do pós-guerras, que repercutiram de forma particular na ONU. Essas crises podem ser resumidas, muito sinteticamente no Box 1.
Box 1. Crises sucessivas ou simultâneas com o declínio do crescimento pós-guerras
1) Ameaças ambientais, que desde o início dos anos 1970 desencadearam muitos debates econferências mundiais coordenadas pela ONU. 2) Proposta dos governos de países em desenvolvimento de uma Nova Ordem Econômica Mundial, demandando reformas da governança econômica, seguida das crises do petróleo de 1973 e 1978. 3) Resultados desastrosos dos ajustes macroeconômicos dos anos 1980 em diante, condicionados pelos empréstimos do Banco Mundial, que aumentaram as desigualdades em vários níveis em diferentes países, que marcaram o renascimento e aprofundamento do fundamentalismo neoliberal. 4) Aumento de conflitos em várias partes do mundo e de demandas à ONU for peacemaking and peacekeeping services, em parte resultantes da queda dos regimes comunistas em países africanos (como Moçambique e Angola), asiáticos (como Timor Leste), do bloco Leste europeu e da mudança no equilíbrio de poder imposto pela Guerra Fria.
Fonte: Elaboração própria a partir de Murphy (2014), tradução livre.
Nesse contexto é que foi criada uma comissão independente, autodenominada “Global Governance Commision”12, que institucionalizou o uso atual do termo governança global. Os autores concordam que, embora a partir de então o termo tenha proliferado na literatura, os problemas sobre sua utilização, assim como sua elaboração teórica e analítica, persistem.
Críticas sugerem que se trata apenas de mais um enfoque genérico e vago sobre como o mundo funciona. Esta desqualificação negaria a necessidade de entender e explicar a questão em toda a sua complexidade. Embora a ideia central permaneça (estrutura e ordem das coisas), não é apenas a escala e a abrangência que são diferentes na governança global contemporânea, mas a maneira como engloba todas as interações da vida no mundo. Murphy (2014) argumenta que o termo é utilizado de diversas maneiras e, no contexto contemporâneo, seria mais razoável pensá-lo como o tipo de governança necessária em determinado nível ou issue de interesse coletivo, evitando-se as definições amplas e inefetivas.
Dubrow (2013) se refere a uma revisão analítica de vinte anos de literatura sobre governança em diferentes níveis (nacional, regional e global), elaborada por Elke Krahmann, para desvendar as definições do termo, chegando a uma síntese das diferentes perspectivas. A governança se referiria às “estruturas e processos que permitem a atores governamentais e não governamentais coordenar suas necessidades e interesses interdependentes através da criação e implementação de políticas na ausência de uma autoridade política unificadora” (Elke Krahmann, 2003: 331; citado por Dubrow, 2013: 102).
Portanto, a ausência de uma autoridade central seria o elemento diferenciador entre governança e governo, o último sendo caracterizado pela autoridade política centralizada no Estado. A governança global competiria, portanto, com a soberania nacional, o que estimularia a reação dos estados-nacionais. Apesar desse antagonismo a institucionalização da governança global tem se acelerado e a globalização contemporânea forçou a colaboração além das fronteiras nacionais, até mesmo entre os países mais poderosos (ou nacionalistas), desde que não afete diretamente seus interesses político-ideológicos. De qualquer forma, há consenso de que algum tipo de governança global é inevitável, uma vez que “a globalização torna indispensável um certo grau de regulamentação em nível global” (Keohane, 1984: 2), seja para a sobrevivência do capitalismo mundial, seja pela interconexão de uma rede cada vez mais densa e profunda de nações, sociedades e culturas (Dubrow, 2013).
Porém, mesmo sem um organismo político formal centralizado, o sistema de governança global, em sua presente forma, opera de maneira que alguns poucos países atuam em conjunto (ou em contraposição) para dominar os demais, o que remete à noção de desigualdade política. Esta desigualdade é incorporada pelas instituições de governança global (incluídas as organizações multilaterais) o que questiona a sua legitimidade (Dubrow, 2013: 105-106). Além disso, “a desigualdade política doméstica se traduz em desigualdade política em âmbito global” (Dubrow, 2013: 107).
No campo das RI a origem teórica do termo está relacionada ao institucionalismo liberal (Milani e Pinheiros, 2013; Gonçalves e Inoue, 2014). Faz-se necessário, contudo, diferenciar governança global de regimes internacionais: regime é definido como princípios, normas, regras e processos de tomada de decisão, em torno dos quais a expectativas dos atores convergem em determinada questão ou área (Gonçalves e Inoue, 2014: 31). Os regimes internacionais estariam contemplados no conceito de governança, mas teriam maior grau de institucionalização, contrariamente ao que acontece com a governança global, uma vez que estão centrados em arranjos formais e específicos. Em outras palavras, “a definição de regime está relacionada à sua delimitação temática, enquanto a noção de governança global abarca as intersecções, interações, sobreposições e conflitos entre regimes, bem como outras relações”, ou seja, “trata-se de um processo de acomodação de consensos [sempre provisórios], mas também de [resolução] de conflitos e divergências”, especificas no tempo e no espaço e que inter-relacionam distintas áreas (Gonçalves e Inoue, 2014: 32). Nas palavras destas autoras
“A governança global tem alcance ampliado em relação às áreas delimitadas dos regimes, incluindo temas não abarcados e as «zonas cinzentas» entre os regimes, por exemplo, o problema da climática global abrange questões na área de energia, segurança, migrações, processos industriais, padrões de consumo, entre outras, que vão além do regime internacional, centrado na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima e seus desdobramentos (Protocolo de Kyoto, Acordo de Paris)”. (Gonçalves e Inoue, 2014: 32)
No início do novo século (XXI), com a maior densidade de organizações e instituições que atuam nas arenas internacionais elaborou-se o conceito de complexo de regimes. Segundo Raustiala e Victor (2004):
“[...] os complexos de regimes são marcados pela existência de vários acordos legais que são criados e mantidos em fóruns distintos com a participação de diferentes conjuntos de atores. As regras nesses regimes elementares funcionalmente se sobrepõem, mas não há uma hierarquia acordada para resolver conflitos entre regras. A tomada de decisões desagregadas no sistema jurídico internacional significa que os acordos alcançados em um fórum não se estendem automaticamente aos acordos desenvolvidos em outros fóruns”. (Raustiala e Victor, 2004: 279, citação traduzida por Gonçalves e Inoue, 2014: 33).
Na mesma linha de discussão, Held (2014) defende que o elenco de mecanismos pelos quais a governança global é exercida supera as relações formais interestatais: não se trata mais de relações apenas entre Estados nacionais -embora continuem sendo peça crucial nessa dinâmica-, mas sobretudo das relação entre os processos de decisão em nível global e sua implementação nacional ou local e vice-versa (os efeitos de ações locais em âmbito global) e as inter-relações que existem entre distintos atores e os mecanismos que utilizam em todos os níveis na ordem mundial contemporânea. Agregam-se ainda a esse panorama novas formas de arranjos institucionais e redes transgovernamentais, que atuam paralelamente aos órgãos multilaterais, e atores puramente privados que criam suas próprias instituições para sua governança, abrangendo desde regulações voluntárias até tribunais arbitrais.
Alguns desses mecanismos têm mais influência que os Estados: por ex. os mercados financeiros; o crescente uso de padrões do setor privado como princípios para várias áreas, com coalizões ou parcerias público privada (PPP) que articulam empresas, ONGs e Estado (Ruckert e Labonté, 2014; Almeida, 2017); e os lobbies, menos visíveis, em torno de interesses comerciais, como as redes sociais e as grandes mídias (Weiss e Wilkinson, 2014). Há consenso, porém, na constatação de que a forma de expansão capitalista global (a globalização econômica contemporânea) criou problemas para os quais a estrutura de governança vigente parece inefetiva. Entre esses problemas incluem-se também as epidemias ou pandemias e outros riscos transfronteiriços.
Portanto, a governança global contemporânea não seria mais um rótulo ou termo inconsequente, mas traduziria mudanças profundas que têm sido empiricamente pouco estudadas (Weiss and Wilkinson, 2014; Murphy, 2014; Held, 2014).
A emergência, visibilidade e acolhimento de novos atores (principalmente não-governamentais) nas arenas internacionais são dinâmicas cruciais para o aparecimento do termo. Da mesma forma, a percepção generalizada de questões transnacionais que delimitam a capacidade estatal (ou evidenciam suas “deficiências”), juntamente com o suposto (ou percebido) declínio do multilateralismo, estimulam a ação dessa miríade de atores e exigem novas reflexões, capazes de resgatar a crescente complexidade implícita no termo. Weiss e Wilkinson (2014: X; tradução nossa) alertam “que é importante explorar as manifestações diferenciadas da governança global em distintas áreas, mas sem perder de vista toda a paisagem”.
Em síntese, a governança global é hierárquica, mas também horizontal em todos os níveis, o que envolve um processo de cooperação política e coordenação entre vários atores, a partir da construção de coalizões, consensos provisórios, compromissos ou barganhas, e variam de um setor/área/tema a outro (Held, 2014; Murphy, 2014). As configurações de poder e as políticas mudam em cada caso e não são controláveis por um único ator. Portanto a governança é setorial e segmentada. Isso não significa, porém, que todos os atores tenham igual poder de voz e voto, ou a mesma influencia na formulação da agenda ou das políticas, pois o bias está sempre a favor das grandes potencias e seus próprios interesses. Nessa complexa interdependência a noção de “problemas globais compartilhados” assegura que o multilateralismo pode moderar (mas não eliminar) as assimetrias de poder: os mais poderosos precisam, no mínimo, da participação formal dos mais fracos ou marginalizados, especialmente para legitimar determinadas soluções a problemas globais (Held, 2014).
Em relação à soberania e autoridade política dos Estados nacionais, é preciso desvendar em que medida o intergovernamentalismo remodela a governança transnacional ou vice-versa. Na realidade, quando agencias internacionais e transnacionais propõem agendas políticas congruentes com os interesses dos Estados é mais provável que estes consintam com políticas e regulações padronizadas; em caso contrário os princípios da soberania são evocados, para bloquear a agenda global de colaboração e coordenação. Um bom exemplo atual (de 2019) é a atitude do governo brasileiro (conduzido por Bolsonaro) na questão da exploração desordenada e intensiva da Amazônia no Brasil, desconsiderando acintosamente as questões climáticas e de preservação da biodiversidade.
Governança global no setor saúde13 e saúde na política externa
A governança global no âmbito da saúde também se ressente de um trabalho mais acurado em termos teóricos e conceituais, o que se reflete também nas análises sobre os fatores impulsionadores da entrada da saúde na agenda da política externa, evidenciada nas primeiras décadas do século XXI. Da mesma forma, constatam-se importantes mudanças na governança setorial a partir da década de 1990.
A revisão da literatura evidencia que a governança global no setor saúde é vista como um conjunto de mecanismos voltado para responder a novos problemas de saúde, especificamente doenças infecciosas, com destaque para algumas doenças (HIV/Aids, tuberculose e malária), epidemias e potenciais pandemias (Fidler, 2004; Vieira, 2007; Ingram, 2005; Paxton, 2015); e também como uma área especializada, informada sobretudo pela perspectiva biomédica (Kay & Williams, 2009; Lee, 2009) e separada da governança global (Roemer-Mahler, 2014). Uma tentativa de definição mais ampla encontra-se em Fidler (2010: 3):
“Governança da saúde global se refere ao uso de instituições formais e informais, regras e processos [de tomada de decisão] pelos estados, organizações intergovernamentais e atores não-estatais para lidar com desafios [que ameaçam a saúde] e que requerem ações coletivas transfronteiriças”. (tradução livre)
Em uma breve revisão histórica, pode-se afirmar, sinteticamente, que até o século XIX a frágil e pontual articulação entre os âmbitos saúde e política externa ocorria para minimizar os impedimentos que as medidas sanitárias -quarentenas ou padrões de segurança no trabalho- impunham às economias nacionais, à expansão econômica e ao comércio internacional; ou para controlar doenças e epidemias -como malária e febre amarela- que dificultavam investimentos econômicos (por ex., na construção do Canal do Panamá) (Fidler, 2009; Feldbaum, Lee & Michaud, 2010; Cueto, 1996 e 2008). Fidler (2010) refere que ações coletivas em torno de ameaças sanitárias de diversas ordens começaram nos meados do século XIX, mesmo antes da criação dos organismos multilaterais do setor. Essas ameaças se articulavam com fatores políticos, econômicos, sociais e ambientais, que impulsionavam tanto a sua emergência como a sua difusão. Embora refletissem a interdependência entre os Estados e exigissem cooperação, não eram consideradas proeminentes na política externa, “porque não tinham impacto [direto] nas preocupações fundamentais dos estados: poder, influência, segurança e sobrevivência” (Fidler, 2010: 4; tradução livre).
No século XX, no pós-Segunda Guerra, com a melhora das condições de vida e saúde dos países desenvolvidos (e a suposta resolução dos problemas de doenças infecciosas), as ações em saúde em nível internacional e de cooperação entre países passaram a ser dirigidas para os problemas de saúde nos países em desenvolvimento, numa perspectiva “humanista e cientificamente orientada”, a ser conduzida por “técnicos e especialistas e não por políticos ou diplomatas” (Fidler, 2009: 12-13).
Tradicionalmente, os problemas de segurança que ameaçavam a soberania dos Estados nacionais eram resultantes, basicamente, de guerras, invasões ou ocupações, ainda que potenciais. Durante a Guerra Fria, as questões de saúde foram subsumidas pela polarização geopolítica: o foco estava na área militar, com os novos armamentos nucleares, questões cruciais de segurança nacional naquele período. Com a queda do muro de Berlim, no pós-Guerra Fria (anos 1990), a agenda da segurança nacional foi reformulada: a percepção essencialmente bélica mudou para um discurso de ameaças que se originam em outras áreas -saúde, comércio, trabalho, ações humanitárias, direitos humanos e meio ambiente (Davies, 2008; Fidler, 2009; Almeida, 2013). E a governança global no setor saúde foi alavancada a partir do aumento importante de regimes e normas internacionais em diversas áreas.
Mesmo assim, a saúde foi negligenciada como objeto de reflexão nas áreas de política internacional, política externa e diplomacia. Para Fidler (2013) esse descuido teve consequências: a falta de articulação e diálogo entre as comunidades de políticas de saúde e de política exterior, levou à produção de novos termos e definições -como diplomacia em saúde ou diplomacia da saúde global-, que não produzem consenso sobre o que significa a relação entre política externa e saúde, assim como obscurecem a compreensão das mudanças subjacentes a esse contexto.
Ng e Ruger (2011) acrescentam que até a década de 1990 os principais atores na governança (mundial e da saúde) eram claramente definidos -Estados nacionais e organizações multilaterais (setoriais, econômico-financeiras e de comércio); a liderança da Organização Mundial da Saúde (OMS) no setor não era questionada; os financiamentos (ajudas externas e cooperações) eram principalmente bilaterais e fluíam diretamente dos doadores para os países receptores.
Na primeira década do século XXI, o crescente interesse na saúde é demonstrado pelo aumento exponencial de recursos para o setor, no plano internacional, e pela inclusão de temas correlacionados na agenda da política externa de vários países. Essa dinâmica se traduziu em maior ativismo diplomático em torno de ameaças sanitárias, levando, inclusive, à Iniciativa sobre Política Exterior e Saúde Global (Foreign Policy and Global Health Initiative), em 200714.
Contudo, Fidler (2013) alerta que a complexidade dessa mudança -saúde como questão de política externa, da diplomacia e de governança global- não pode ser desconsiderada.
De fato, um ponto fundamental no debate sobre a inclusão da saúde na agenda da política externa é como uma questão de saúde é classificada como um problema global que requer ação coletiva (Lee, 2009; Lee e Kamradt-Scott, 2014). Por outro lado, esse debate remete à mudança do termo saúde internacional para saúde global, que ocorre também no mesmo período (anos 1990), coincidindo com o fortalecimento das políticas neoliberais, que se consolidam e radicalizam no século XXI, sobretudo a partir da segunda década.
Alguns autores (principalmente na região sul-americana) não aceitam o termo saúde global, por considerá-lo uma criação neoliberal, e defendem que a expressão saúde internacional definiria melhor o tema, pois se trataria de relações entre nações. É fato que a emergência do termo coincide com o período de implementação e consolidação das políticas neoliberais, sobretudo na área econômica, mas condicionando-as a importantes restrições às políticas sociais e reformas no setor saúde (Almeida, 2002 e 2016). Porém, para entender o seu significado não se pode desconsiderar o contexto de seu surgimento, concomitante às mudanças globais dos anos 1990, discutidas neste trabalho.
Ainda que historicamente a saúde tenha sido objeto de política externa e da diplomacia, esta relação mudou ao longo do tempo, diferenciando não apenas os dois termos -saúde internacional e saúde global-, mas reestruturando as complexas e diversas relações no sistema mundial entre os estados nacionais e os distintos atores que atuam em âmbito nacional e internacional.
A partir de uma revisão da literatura, Ng e Ruger (2011), entre outros autores15, referem as diferentes características de ambos os períodos, assim como as suas distintas governanças -governança da saúde internacional e governança da saúde global- a transição de uma para a outra e os atores mais relevantes em cada tipo de governança (Quadro 3).
Governança da saúde internacional (GSI) | Governança da Saúde Global (GSG) |
---|---|
Pequeno número de atores, com papéis e responsabilidades claramente definidas: Estados (Ministérios da Saúde), OMS, outras organizações especificas da ONU, existência de pelo menos um regime multilateral (Regulamento Internacional da Saúde) respeitado e relativamente efetivo na sua aplicação. Necessidade de coordenação relativamente baixa, embora houvessem críticas sobre a dominância das grandes potências na GSI. Epidemias de doenças infecciosas, com evolução rápida, não eram tão frequentes e danosas como passam a ser nas últimas décadas do sec. XX, apesar de que importantes doenças foram eliminadas (ex. varíola) | Aumento acelerado da interdependência econômica (paralelamente ao aumento de novos estados-nacionais), com intensificação dos fluxos interfronteiriços (pessoas, produtos, doenças). Percepção do sentido de urgência, a partir do reconhecimento de que as doenças emergentes e re-emergentes se expandem com enorme rapidez, em escala global. Pletora de novos atores (não-estatais) atuando de forma paralela, descoordenada e não-hierárquica, sem definição clara de papéis e responsabilidades. Superposição de atividades, fragmentação de ações levando via de regra a certo caos operacional (nos níveis global e local). |
Fonte: Elaboração própria a partir de Ng e Ruger (2011).
Em síntese, as mudanças geopolíticas na década de 1990 se refletiram também na forma como a saúde se situa nas agendas de política externa dos países, que se inicia atribuindo-se especial importância às suas conexões com a segurança nacional (Ingram, 2005; Labonté & Gagnon, 2010; Almeida, 2011 e 2013), cujo significado também mudou com a dissolução do mundo bipolar (Ingram, 2005; Vieira, 2007).
É certo que o mundo vivenciou a proliferação e disseminação de diversos riscos, que se expressam em problemas relacionados à saúde (Fidler, 2013):
1) Emergência e reemergência de doenças transmissíveis (ex., HIV/AIDS, SARS, gripe aviária e outras);
2) Patógenos resistentes à vários medicamentos (ex., tuberculose multiresistente);
3) Aumento de doenças crônicas não-transmissíveis, relacionado a produtos danosos à saúde (tabaco, álcool, drogas ilícitas, alimentos industriais processados e ultraprocessados, agrotóxicos);
4) Efeitos da poluição e mudanças ambientais;
5) Aumento exponencial da violência em todos os níveis.
A forma como esses eventos se concentraram e convergiram em curto espaço de tempo (dos anos 1990s em diante) não tem precedentes na história da humanidade (Fidler, 2005 e 2009). Entretanto, foi a conexão com interesses geopolíticos específicos que lhes atribuiu significado estratégico, particularmente na virada do século. E, nessa perspectiva, o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, contribuiu muito para essa mudança (Almeida, 2011).
De fato, a atenção, sem precedentes, das questões de saúde na agenda das políticas externas nacionais e a rápida expansão da agenda da saúde global ocorrem pari passu à crescente atuação de doadores na área de saúde no Sul geopolítico, vinculando saúde e desenvolvimento, denominada assistência para o desenvolvimento em saúde (development assistance for health), conduzida por número reduzido de poderosos atores globais (Roemer-Mahler, 2014). Nessa perspectiva, pareceria que a governança global em saúde seria apenas para os países em desenvolvimento, cuja dinâmica cria tensão entre a retórica e a realidade, além de colocar questões de sustentabilidade, seja pelas políticas globais disseminadas, seja pela centralização do processo decisório nas mãos de poucos e poderosos atores (Roemer-Mahler, 2014). É grande, portanto, a insatisfação com os arranjos institucionais existentes que deveriam sustentar a ação coletiva para enfrentar os desafios à saúde em nível global (Fidler, 2010; Lee, 2009).
Kay & Williams (2009) constatam que, em geral, estrutura-se a saúde global como uma categoria mensurável, a partir do status de saúde das populações, vinculando-a a fatores de risco que são transfronteriços, transnacionais e globais, impulsionados pela globalização econômica, mas situados fora deste processo. Esta concepção refletiria os enfoques positivista e problem-solving descontextualizados, cujas soluções seriam válidas para o mundo todo. Nessa perspectiva a governança global em saúde é vista como uma esfera política própria, onde as respostas aos riscos e padrões de doença associados à globalização são desenvolvidos como resultado de diagnósticos de sucesso ou de fracassos (Birn et al., 2017).
Em uma perspectiva diferente, os autores veem a governança global no setor saúde como um espaço político amplo, complexo e imanente aos processos contemporâneos de globalização, marcado por inflexões históricas, agudas divisões políticas, ideacionais e interesses conflitantes, construindo-se discursos sobre a saúde global que competem entre si e se materializam em políticas globais promovidas e defendidas por diferentes organizações, instituições, agências e coalisões, permeadas por interesses diversificados e poderosos (Kay e Williams, 2009; Lee, 2009; Fidler, 2010). Por outro lado, o reconhecimento de que saúde é uma questão multidimensional requereria, automaticamente, uma governança multisetorial (Youde, 2012). Porém, como afirma Roemer-Mahler (2014), essa perspectiva não se confirma empiricamente e, sendo assim, e a governança em saúde é afetada por políticas e ações de outras áreas, organizações e instituições internacionais, “de fora do campo da saúde”, ou seja, está submetida (e modelada) por regulamentações, tendências e desenvolvimentos estabelecidos em outras áreas da governança global.
Essa governança setorial tem sido alvo de intenso escrutínio tanto por parte dos diferentes atores que atuam na área -doadores, organizações multilaterais variadas, inclusive financeiras, governos dos países em desenvolvimento (receptores de ajuda externa em saúde), empresas privadas e outros atores da sociedade civil. O elenco de críticas é extenso e abarca tanto as políticas implementadas quanto a interferência política de atores globais poderosos em nível nacional (Lee & Fidler, 2007; Sachy et al., 2018). A sensação geral é que a governança setorial é, no melhor dos casos, inadequada e, na pior hipótese, “disfuncional” (Lee, 2009), ou mesmo “falida” (Kay & Williams, 2009).
Lee (2009) argumenta a necessidade de melhor entender esse cenário de contestação. A autora sustenta que qualquer debate nessa área deve começar com uma análise crítica das bases normativas que orientam os estudos e práticas da governança global no setor saúde. Kay e Williams, por sua vez, enfatizam que o discurso primordial e ascendente nesse processo é o da hegemonia política neoliberal, uma ideologia “estruturante poderosa”, capaz de colonizar diferentes temas da saúde global, de distintas formas, refletindo “seu polimorfismo e sua natureza pervasiva na economia política global e na governança global” (Kay e Williams, 2009: 4).
Competição entre atores (públicos e privados) é a regra, seja no financiamento, seja no tipo de iniciativa, política ou definição de prioridades. Nessa perspectiva, um breve repasse dos principais atores que atuam nas arenas internacionais da saúde e alguns exemplos das políticas que os articulam (ou superpõem), ajuda a compreensão dessa dinâmica (Quadro 5).
Atores | Papel que desempenham | Definição de políticas e atuação operacional |
Estados nacionais | Continuam a ser os principais atores, ainda que tenham que dialogar e hegociar com diferentes atores não-estatais e varie bastante entre eles, mesmo nos fóruns decisórios das organizações multilaterais que financiam (como a OMS). Financiamentos bilaterais continuam a ser a principal fonte de recursos para o setor saúde. | Embora todos os Estados tenham direito a voz e voto nas negociações e aprovação das políticas internacionais para o setor, os países mais ricos e poderosos usam medidas extra-setoriais para boicotar ou impedir a efetividade de políticas danosas à saúde e proteger suas indústrias transnacionais (ex. tabaco, alimentos, medicamentos etc.). Da mesma forma, têm maior peso na definição das prioridades na agenda da OMS e suspendem suas contribuições quando as decisões ou estratégias da organização não lhe agradam (ex. Estados Unidos). Coalizões de países em desenvolvimento (ex., UNASUR, já inviabilizada, BRICS, entre outras) e negociações paralelas são a norma, na tentativa de enfrentar essa concentração de poder, com alguns sucessos históricos (exs. tabaco, direitos de propriedade e produção de genéricos). |
OMS | Criada no pós-guerra, em tese é a organização pública multilateral responsável pela governança do setor saúde. Entretanto, desde os anos 1980 seu poder tem sido desafiado e sua importância e capacidade de liderança setorial bastante questionada, resultado da competição pela com outras agências, dentro da própria ONU, ou com agências financeiras (como o BM). Parte deste processo se deve tanto a mudanças na direção da organização, quanto no seu financiamento. A adoção explicita da agenda neoliberal no final dos anos 1990, talvez como tentativa de recuperar seu status, produziu seu alinhamento internacional aos atores promotores de nova ordem mundial. | O orçamento da OMS é composto pela contribuição dos países-membro (parte regular), por recursos extra orçamentários (voluntários e discricionárias) e outras fontes (doações e incentivos). O maior aumento de novos financiamentos para o setor saúde são as contribuições discricionárias, i.e., destinadas a financiar prioridades especificas (ou programas verticais centrados em uma ou poucas doenças). Esses financiamentos não são submetidos à discussão da Assembleia Mundial da Saúde (AMS), i.e., aos Estados membros, portanto, não reforçam os programas da OMS. Essa inflexão se intensifica na década de 1990, mais especificamente quando Gro Brundland assume a direção da OMS (1998-2002) e com um discurso de restaurar a credibilidade e legitimidade da liderança setorial da OMS, assume a agenda neoliberal hegemônica. Anuncia a importância de contar com a colaboração do setor privado no financiamento da organização, criando a Comissão de Macroeconomia e Saúde, que recomenda o foco em poucas e especificas doenças e a adoção das PPPs, que resultou no aumento exponencial dos recursos extra orçamentários da OMS. Paralelamente, institucionalizou a participação de atores não-estatais (ONGs e representações do setor privado) nas suas discussões e fóruns internacionais. Apesar das mudanças posteriores na direção da OMS essa perspectiva se manteve (exemplo expressivo e a estratégia recente da Cobertura Universal da Saúde, cuja indefinição conceitual abriga qualquer tipo de articulação para a provisão de serviços à população. |
Parcerias Público Privada (PPP) | Constituem articulações entre organizações/instituições públicas e privadas para solução de problemas globais. O termo teria sido cunhado em 1969, no relatório da Comissão Pearson (Partners in Development: Report of the Commission on International Development), coordenada por Lester B. Pearson, ex-Primeiro Ministro do Canadá. Até os anos 1970 essas colaborações nas organizações multilaterais não existiam, sendo que algumas, raras, se estabeleciam diretamente entre doadores e governos nacionais. Com a crise econômica dos meados dos 1970 e a ascensão mundial da perspectiva político-ideológica neoliberal, esse panorama começou a mudar | As parcerias para o desenvolvimento não são novas, porém, as mudanças e reformas dos anos 1980, capitaneadas pelo BM, abriram espaço para o setor privado nas políticas públicas, com ênfase nas políticas sociais. A difusão da ideia que a complexidade dos problemas globais a serem enfrentados exigiria a participação de todos os atores, públicos e privados fortalece a perspectiva neoliberal. As PPPs promoveriam a necessária ação conjunta, considerada positiva a priori. O termo PPP é utilizado de forma ampla, como um “guarda-chuva” que abriga diferentes relações de colaboração entre atores públicos e privados para o alcance de objetivos (supostamente) comuns. Não existe na literatura uma definição consensual. Constituem um determinado tipo de interação público-privada que implementam políticas em nível global, em determinadas áreas, fortalecendo a perspectiva dos programas verticais. Em nível nacional têm sido valorizadas na provisão de serviços de saúde, em vários países. Alguns exemplos globais significativos são: o Global Fund to Fight AIDS, Tuberculosis and Malaria-GFTM (conhecido como Fundo Global-FG); a Global Alliances for Vaccines and Immunizations (GAVI); a Global Alliance for Improved Nutrition (GAIN), entre outras. |
Iniciativas Globais em Saúde (Global Health Initiatives-GHI) | As GHI confundem-se com as PPP, pois muitas delas têm parceiros privados. Proliferaram de forma importante desde o final dos anos 1990. Em geral têm articulações com o setor privado, entretanto, não se configuram como as PPPs propriamente ditas. Podem ser vinculadas à OMS ou outras agências da ONU, ou serem inciativas de um país, como é o caso do Plano Emergencial do Governo Bush (US President’s Emergency Plan for AIDS Relief−PEPFAR, 2003). Sua criação estrategicamente integrou a “ameaça do HIV/AIDS” nos objetivos de segurança nacional e de política externa norte-americana (pós-11/09/2001), enfatizando os acordos bilaterais e concentrando, de forma importante, a ajuda internacional nessa área, além de mobilizar ativamente a indústria farmacêutica transnacional norte-americana. | O PEPFAR se destina à distribuição de medicamentos para HIV/Aids aos países em desenvolvimento ou muito pobres, sobretudo na África. Entretanto, nem sempre os que recebem mais recursos são aqueles mais necessitados, configurando-se mais como uma estratégia geopolítica. Sua implementação negligencia o apoio à infraestrutura, à provisão de serviços e ao fortalecimento dos sistemas de saúde como um determinante social da saúde; impõe o uso de determinados medicamentos, diferente dos protocolos da própria OMS e dos países receptores da ajuda; pressupõe alto custo de transação para esses (projeto, relatórios, indicadores de monitoramento e avaliação etc.) e contrata ONGs em nível nacional para sua implementação. Sua operacionalização conduz a uma concentração dos processos gerenciais que suplanta as regulamentações nacionais existentes, nem sempre respeitando as necessidades da população, nem diminuindo a fragmentação das ações no sistema de saúde ou melhorando o processo de coordenação entre doadores. Outras iniciativas também relevantes são a Roll Back Malaria (RBM); a STOP TB, entre outras. |
ONGs | As ONGs constituem um amplo universo, são consideradas importantes agentes do “terceiro setor”, denominação usada como sinônimo de organizações voluntárias, formais, privadas não-lucrativas e autônomas, sendo parte da sociedade civil. A sigla ONG é relacionada à questão do desenvolvimento internacional desde sua origem, que remonta à criação das Nações Unidas em 1945, tendo sido formalizadas na Carta das Nações (Art. 71) e algumas ONGs contribuíram com essa elaboração, assim como a criação da UNESCO e da OMS. A história dessas organizações é muito mais antiga e algumas delas são anteriores a esse contexto: Save the Children Fund foi fundada em 1919, depois da Primeira Guerra Mundial; Oxfam (inicialmente chamada Oxford Committee against Famine) data de 1942; e CARE existe desde 1946. Desde os anos 1990 seu número aumentou consideravelmente e foi formalizada a participação dessas organizações nos fóruns multilaterais, incluídos os da saúde, com direito a voz, em alguns casos, mas não a voto. Na esteira dessa decisão, representações de corporações privadas reivindicaram o mesmo direito e, para tal, transformaram o status jurídico de suas ou associações em ONGs. | Estas organizações desenvolvem ações em diversas áreas, com limites pouco definidos, diferentes modelos de atuação e flexibilidade operacional; podem ser nacionais ou internacionais, com atuação e sedes em diferentes países. São organizações que acompanharam no tempo as diferentes etapas, percepções e estratégias do desenvolvimento mundial, com momentos de realce e outros de esvanecimento. Celebradas pelos grandes doadores internacionais, as ONGs passaram também a ser vistas como uma das alternativas custo-efetivas à provisão de serviços públicos pelo Estado, junto com o setor privado, justificada pela inerente ineficiência estatal. No final dos anos 1990 as ONGs foram muito criticadas, tanto pelo não alcance dos resultados esperados, quanto pelo aumento da fragmentação dos sistemas de saúde alavancada pela proliferação desses atores. Novos mecanismos foram formulados pela OMS e BM, para melhorar a coordenação de parceiros ou doadores (sector wide approaches-SAP; budget support; regulamentações explicitas oriundas das reuniões de alto nível dos doadores - Paris, Accra, Buzan etc.). Mesmo assim, a atuação das ONGs internacionais nos processos de operacionalização da ajuda externa continua forte, por ex. nos países africanos. |
Fundações filantrópicas e corporações privadas Ex. Fundação Bill e Melinda Gates (Bill and Melinda Gates Foundation - BMGF) | A atuação de fundações filantrópicas nos serviços de saúde em âmbito nacional, assim como na cooperação internacional ou na ajuda externa, não é nova na história da saúde. Entretanto, há importantes mudanças na atuação dessas organizações no mundo contemporâneo. Outros atores importantes, são as fundações beneficentes das corporações multinacionais. Por exemplo, desde a primeira década dos anos 2000 a BMGF ocupa lugar de destaque no financiamento da saúde em nível global, tornando-se um dos maiores global players nessa área, não apenas pela quantidade de recursos que tem investido em projetos específicos (restaurando a perspectiva biomédica; foco em poucas doenças; atuação vertical); e em financiamentos para as organizações multilaterais, inclusive para a OMS e o BM, assim como estreitou sua vinculação com as empresas farmacêuticas transnacionais. | O empreendedorismo social alavanca os mecanismos de mercado para os bens privados, explorando as deficiências da oferta de bens públicos, como por ex. os medicamentos, que incorporam as duas definições (bens públicos para o consumo da população; e bens privados majoritariamente na sua produção). Um dos mais famosos projetos da BMGF, de 2003 (BMGF’s Grand Challenges in Global Health - GCGH), voltado para as doenças negligenciadas ou “questões que possuem baixo apelo mercadológico” tornou a BMGF no maior “doador” de financiamento para pesquisas nos países em desenvolvimento. Nesse processo as empresas farmacêuticas transnacionais tornaram-se atores-chave (key players) na governança global do setor, uma vez que se promoveu o aumento da disponibilidade de medicamentos e vacinas, a partir de programas específicos (HIV/Aids como disparador) em ampla gama de áreas de políticas - saúde, desenvolvimento e segurança. Mas não apenas: tornaram-se parceiras das PPP e da GHI, ao figurarem como membros dos boards dessas organizações. Bill Gates, por exemplo, participa de boards de várias agências da ONU e não raro é convidado a participar de fóruns como a Assembleia Nacional de Saúde (AMS), entre outros. |
Redes, comunidades de políticas e empresas transnacionais de consultoria | Os conceitos de comunidades de políticas (policy community) e de redes temáticas (issue network), ou redes de políticas (policy networks), para alguns autores, apareceram no final dos anos 1970 e início dos 1980, no âmbito das discussões sobre as relações entre o Estado e os atores não estatais no processo de decisão, a partir da premissa que o foco nas instituições formais do Estado não teria logrado capturar as mudanças concretas (dos anos 1990) na estrutura política de decisão. Argumentava-se que a complexificação dos processos decisórios, sobretudo no pós-guerra, e as mudanças mundiais exigiam a análise dos modelos de relação e intermediação entre os diferentes grupos de interesse e o Estado, uma vez que a governabilidade das sociedades modernas dependeria dessa articulação nas diferentes etapas do processo de decisão sobre as políticas públicas. A dimensão cognitiva de redes e comunidades de políticas foi trabalhada em pelo menos duas perspectivas. Uma primeira elabora o conceito de comunidades epistêmicas, existem várias em competição para que suas ideias sejam incorporadas ao processo político; outra trabalha na perspectiva do conceito de coalizões de advocacia, estes evidenciando o forte componente ideacional das redes de políticas. | As comunidades e redes de políticas se estruturam em âmbito nacional, internacional e transnacional. As profundas mudanças contemporâneas nas conjunturas em nível global, e o contexto -macropolítico, ideológico e econômico- evidenciam dinâmicas muito mais complexas nos processos decisórios e definem a atuação das comunidades e redes, nacionais e internacionais. Nesta dinâmica é que surgem as comunidades transnacionais. Os autores argumentam que, em geral, estas comunidades transnacionais de políticas estão associadas às instituições supranacionais, que são altamente dependentes de recursos e de apoio de outros atores e especialistas para, inclusive, implementar políticas e até legitimar-se. Emergem para estabelecer vínculos entre atores das arenas nacionais e internacionais, sem necessariamente deslocar as comunidades políticas nacionais, mas injetando novas ideias e interesses e, de alguma forma, cooptando estas comunidades para a defesa de seus objetivos transnacionais ou garantindo seu apoio para as políticas que preconizam, mediando a influência que os atores transnacionais podem exercer no desenvolvimento das políticas domésticas. Existem ainda os serviços transnacionais de consultorias na área de organização e gestão dos sistemas e serviços de saúde, que cresceram de forma importante nas últimas décadas, estimulados pelo princípio neoliberal da ineficiência do setor público, que seria solucionada com a adoção de mecanismos empresariais de gerenciamento. Esses consultores, independentes ou vinculados a empresas especializadas, integram redes e comunidades de políticas que promovem e difundem ideias e propostas, no nosso caso em saúde, efetivamente participando da formulação e implementação de políticas, introduzindo a privatização não raro sem explicitá-la claramente. Algumas dessas empresas são bastante famosas, como a McKinsey & Co no Reino Unido. |
Fonte: Elaboração própria, partir de vários autores analisados em trabalhos anteriores.
Kay e Williams (2009) afirmam a importância de analisar as tensões-chave, visões de mundo competitivas e fissuras envolvidas na governança global em geral e setorial. As fissuras seriam evidenciadas quando o projeto econômico-político neoliberal confronta, atua e é confrontado por outros projetos sócio-político-econômicos, tais como segurança e políticas sociais, incluindo a saúde. A construção de identidades, interesses e relações de poder que levam em consideração essa hegemonia sócio-política-cultural, também na saúde, são cruciais para este debate.
Para Kamat (2004) vivemos uma era de reavaliação e ampla reestruturação dos bens públicos e dos interesses privados, com esforços consideráveis dos grandes atores políticos globais (ONU, OMC, BM, entre outros) para consolidar a ordem econômica internacional neoliberal. Estratégias especificas têm sido formuladas para tal, que vão além das reformas econômicas, almejando impulsionar profundas mudanças -políticas, operacionais e culturais- nos níveis global e local, segundo parâmetros da perspectiva neoconservadora de democracia. Duas dessas estratégias são particularmente importantes nesse processo: a pluralização da esfera pública, operando em nível global; e a despolitização da esfera privada, atuando em nível local (ou da sociedade civil), ambas consolidando a tendência de privatização da esfera pública. Em síntese, a fortaleza e consolidação da ideologia política neoliberal vem sendo ativamente construída (Almeida, 2017).
A preferência pela agenda política pós-Welfare da saúde (Almeida, 2002 e 2016), centrada nos mecanismos de mercado e empresariais para o alcance de melhores níveis de acesso e equidade no setor saúde, domina e modela as políticas formuladas e implementadas mundialmente há mais de três décadas, assim como as ações dos principais players na governança global em saúde, o que Lieberman (2009) denominou o Geneva Consensus (Box 2).
Box 2. Significado do Consenso de Genebra
O Geneva Consensus se refere a mecanismos elaborados por organizações internacionais (como o UNAIDS), colocados como condição para os países obterem financiamento internacional para o combate à epidemia de HIV/Aids. Esses mecanismos tornaram-se poderosos instrumentos de indução. Best practices foram desenvolvidas, após várias reuniões e consultas com policy makers de distintos países, voltadas sobretudo para o convencimento e adesão e não para críticas ou opiniões divergentes. Por exemplo, o projeto de aplicação para receber recursos do Fundo Global para Aids, Tuberculose e Malária (GFAMT), que deve ser elaborado pelo país pretendente, é extremamente detalhado e requer, entre outras coisas, que o país desenvolva a “Country Coordination Mecanism”, com ampla descrição de todos os stakeholders e atores envolvidos, induzindo assim, a conformidade com as best practices mencionadas. Essas aplicações são analisadas e revisadas em Genebra, lideradas pela WHO e Unaids. A essa dinâmica Evans S. Lieberman denominou Geneva Consensus (Lieberman, 2009, p. 86).
Fonte: Elaboração própria a partir de Lieberman (2009)
O uso do instrumental teórico da economia política, da economia política internacional (Kay & Williams, 2009; Labonté & Gagnon, 2010; Birn, Pillay e Holtz, 2009) ou da economia política critica (Birn et al., 2017) nas análises sobre a saúde global e seus desdobramentos representa um esforço importante para superação dos gaps teóricos e conceituais. Entretanto, a importância da governança global em saúde em si, nas dinâmicas nacionais e internacionais, não tem sido considerada nessas análises. Textos sobre esse tema têm proliferado nas últimas décadas. Alguns autores com background em relações internacionais e ciência política têm se dedicado à essa discussão, entretanto o foco substantivo em muitos estudos continua a ser nas doenças (transmissíveis, epidêmicas e possíveis pandemias, inicialmente centradas na Aids; enfermidades re-emergentes ou negligenciadas; e, mais recentemente, doenças crônicas não transmissíveis).
Para Fidler (2013), as mudanças observadas e em curso, devem ser analisadas segundo os problemas, atores, processos e princípios que cada ameaça exige em termos de ação diplomática, e esta dinâmica tem sido denominada diplomacia em saúde ou diplomacia em saúde global (global health diplomacy). O elenco de problemas na área de saúde que devem ser tratados diplomaticamente se expandiu vertical e horizontalmente. No primeiro caso, a expansão se deu em áreas já bem estabelecidas na diplomacia, como por ex., em torno de pandemias, comércio, poluição, leis trabalhistas e guerras. A expansão horizontal ocorreu quando diferentes atores atuam em problemas que, anteriormente, não chamavam a atenção da diplomacia, por ex., doenças não-transmissíveis e impactos sobre a saúde do desenvolvimento recente do capitalismo, com especificidades que não podem ser ignoradas. Porém, o interesse e a atuação diplomática, por sua própria natureza, variam segundo o tema/problema a ser enfrentado, sendo mais pontual e de curto prazo nas pandemias, por ex., mais efetivas nas questões que envolvem comércio ou produção de bens públicos e privados (ex. direitos propriedade intelectual e medicamentos genéricos) e praticamente nula nos assuntos que envolvem o fortalecimento dos sistemas de saúde.
Para concluir
A posição estrutural dos países no sistema mundial se insere em uma hierarquia global complexa e multidimensional, que é, simultaneamente, econômica, política-militar e cultural, regida por distintas formas de relações de poder (assimétricas e heterogêneas) e de interdependência e interconectividade.
Há mais de duas década se observa uma mudança importante no sistema mundial e na arena internacional, com o aumento e diversificação de novos atores (a maioria privados -filantrópicos, voluntários ou corporativos) que atuam nesse âmbito, além dos Estados nacionais, seja nos fóruns ou nas agências multilaterais, como a OMS. Esses novos atores são legitimados pelas próprias agências, atuam vinculados a elas ou de forma aparentemente autônoma, articulados a iniciativas globais e parcerias. A necessidade de algum tipo de coordenação supranacional dessa complexa dinâmica é que se denominou governança global.
Existe já uma vasta literatura discutindo a governança global (em geral e no setor saúde) e, por extensão, o lugar da saúde na política externa. Variam desde a descrição e análise do contexto que levou à inclusão da saúde na agenda da política externa, vis-a-vis outras questões que não mereceram a mesma atenção, e o respectivo background histórico, até a explicações porque essa dinâmica ocorreu e o papel dos diferentes fatores que nela interferiram. Em geral, esses estudos são baseados na experiência de determinados países ou em temas específicos. Pesquisas analíticas e conceituais são muito menos frequentes e estudos empíricos são praticamente ausentes. Por outro lado, “as bases normativas sobre o que constitui a boa governança tem sido objeto de muitos debates acadêmicos e políticos” (Lee & Kamradt-Scott, 2014: 3; tradução livre). Geralmente se referem ao setor público nos países em desenvolvimento e adquirem diferentes significados, dependendo de quem define.
A influência do setor privado (lucrativo e não-lucrativo) no processo decisório setorial (nacional e internacional), e na governança global do setor saúde, cresceu exponencialmente nas últimas décadas, sobretudo a partir do final da década de 1990. E segue crescendo nos anos 2000, com o aumento da importância e do poder político dos novos atores, pari passu o crescimento significativo dos recursos para a saúde na primeira década do novo século (XXI) -seja para a cooperação internacional ou para algum tipo de ajuda externa, frequentemente articuladas.
O particularismo que domina a definição do que seria um problema global em saúde é bastante questionado, pois obedece menos a efetivas necessidades populacionais e mais aos interesses específicos dos doadores (muitas vezes geopolíticos), ainda que existam resultados positivos em vários desses programas verticais implementados (sobretudo pela indigência e real dependência de muitos países dessas ajudas externas). E o monitoramento direto desses programas pelos doadores, priorizando resultados de curto prazo, em detrimento das metas de médio e longo prazo definidas numa perspectiva de consolidação e fortalecimentos dos sistemas de saúde, evidencia que não são sustentáveis uma vez terminada a intervenção, uma vez que não formam quadros nacionais e atuam paralelamente ao funcionamento do sistema de saúde como um todo.
Por outro lado, a explícita crença no desenvolvimento tecnológico (que produzem os insumos para os serviços de saúde -por ex. medicamentos, vacinas-) como um dos mais importantes mecanismos para resolver os problemas de saúde das populações nos países em desenvolvimento e mais pobres, reforça o paradigma biomédico e a agenda neoconservadora que desqualifica o setor público (o Estado) e a proteção social, advogando em prol do mercado e dos agentes/atores privados como mais eficientes e propulsores do desenvolvimento. Essa perspectiva na governança global do setor saúde se deve, em parte, a mudanças (retrógradas) na percepção de como deve-se entender as questões de saúde e, consequentemente, quais as soluções para enfrentá-las. Além disso, essa dinâmica coloca a saúde refém de outras organizações externas ao setor, como por exemplo a OMC no que se refere às questões dos direitos de propriedade intelectual e da produção de genéricos.
O foco nos países em desenvolvimento, por outro lado, é parcialmente resultado de uma estruturação que vincula, de maneira particular, saúde e desenvolvimento. Contudo, um sistema de governança global no setor saúde que se baseia na relação doador-receptor é problemática: (1) cria tensões entre a retórica e a realidade -de um lado, as organizações se denominam globais e, de outro, o financiamento e o processo de decisão se dá entre pequenos grupos de países poderosos e organizações filantrópicas localizados no Norte, mas atuando no Sul-; e (2) essa dinâmica está fadada à não-sustentabilidade, pois a fadiga dos doadores (seja por crises econômicas ou questões ideológicas) é inevitável, uma questão de tempo.
Entre os atores mencionados que proliferaram e adquiriram novos papéis, merecem destaque as ONGs, que são antigas no sistema internacional e acompanharam no tempo e no espaço as diferentes etapas da globalização e de governança, assim como as diferentes percepções e estratégias do desenvolvimento mundial, com momentos de realce como atores e outros de esvanecimento. E também se transformaram.
A definição das ONGs como categoria analítica é complexa e pouco clara, mas desempenham papeis agrupados em três principais componentes -implementadoras, catalisadoras (advocacia) e parceiras. Esse último componente é o que interessa discutir para os objetivos deste artigo, pois se refere à tendência crescente, a partir do final dos anos 1990, de trabalho conjunto das ONGs com governos, doadores e o setor privado envolvido nas GHI e PPP. Essa articulação atua em grandes programas multilaterais onde as ONGs assumem responsabilidades sociais em iniciativas públicas e privadas, integrando a retórica das parcerias, supostamente com benefícios mútuos. Integram, assim, o complexo do desenvolvimento, isto é, o mundo da ajuda externa bilateral ou multilateral, que envolve os países doadores, o sistema da ONU e as instituições de Bretton Woods -principalmente BM e FMI.
Essa dinâmica fragmenta e fragiliza os sistemas de saúde nos países receptores, tanto pela dinâmica operacional que desencadeiam (or bypass dos governos nacionais) como pela drenagem de recursos humanos em nível nacional, principalmente os mais bem formados ou com maior capacidade, que são atraídos pelos melhores salários e condições de trabalho, ainda que por tempo determinado. Não raro essa drenagem se internacionaliza quando os programas acabam.
Apesar de vozes que contestam as diferentes perspectivas e significados, a boa governança, se tornou um elemento central do controle dos doadores sobre os países receptores (Lee & Kamradt-Scott, 2014; Sachy et al., 2018), alterando e estabelecendo novas relações de poder na governança setorial.
Dito de outra forma, o poder se acumula a partir de múltiplas e diferentes fontes de autoridade (técnicas, éticas e morais), sendo, portanto, um conceito relacional (Held, Mcgrew, Goldblatt & Perraton, 2003). Expressa a intenção e os objetivos dos atores e os recursos de que dispõem para se impor frente outros parceiros; e, como fenômeno estrutural, modela e é modelado pelos padrões e práticas organizacionais institucionalizadas. As normas e regras que definem o exercício do poder nunca são neutras, pois estabelecem padrões de exercício de autoridade, institucionalizando as relações de poder; é um fenômeno que corta transversalmente os âmbitos público e privado (Held et al., 2003). Essa definição ressalta a natureza do poder, que por sua vez, para existir tem que ser exercido (exercício do poder) e os resultados desse exercício se manifestam na estrutura de poder de uma sociedade ou do sistema mundial e suas instituições.
O problema é a complexidade que emerge desta dinâmica, sobretudo em um mundo com enorme diversidade de autoridades e vozes querendo ser ouvidas (Lee & Kamradt-Scott, 2014), muitas vezes articuladas em redes e comunidades transnacionais de políticas (Skogstad, 2005), constituindo novos atores igualmente relevantes (assim como os serviços transnacionais de consultoria) e com grande participação nos processos de decisão setorial. A distribuição de recursos (organizacionais, técnicos etc.) entre o Estado e os outros atores definem as relações de poder internas à rede e à comunidade e, consequentemente, permitem identificar como as decisões são tomadas e por quem. Sendo assim, situações onde os atores são mutuamente dependentes de recursos para realizar seus objetivos modelam os seus comportamentos, com distintas consequências para o processo decisório. Entre esses recursos são enfatizados os financeiros (que possibilita que exerçam seu papel) e técnicos (conhecimentos, informação), sendo que a produção deste último também deve ser financiada.
Por fim, Kennedy (2008: 832) alerta:
“[...] temos que pensar na governança global [em geral e em saúde] como um processo dinâmico, no qual arranjos legais, políticos e econômicos desatam interesses, mudam o equilíbrio de forças, e lideram a reinvenção future dos próprios esquemas de governança”. (Tradução livre)
Em síntese, a governança global, em geral e no setor saúde em particular, integra o permanente processo de mudanças mundiais, que contemporaneamente se materializa na entrada de determinados problemas de saúde considerados globais nas agendas de política externa, que adquirem diferentes significados, e na sua utilização como instrumento geopolítico exercido a partir de alterações no financiamento da OMS e de novas articulações -iniciativas globais, PPP- institucionalizando a maior participação do setor privado nos processos de decisão e na regulação setorial em todos os níveis, nacionais e internacionais. Essa dinâmica se traduz na privatização da cooperação e da ajuda externa aos países em desenvolvimento, proliferando os programas verticais e o bypass dos governos nacionais, em detrimento do fortalecimento dos sistemas de saúde públicos e universais.