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Revista del Museo de Antropología

Print version ISSN 1852-060XOn-line version ISSN 1852-4826

Rev. Mus. Antropol. vol.12 no.2 Córdoba Aug. 2019

http://dx.doi.org/10.31048/1852.4826.v12.n2.21000 

DOSSIER

http://dx.doi.org/10.31048/1852.4826.v12.n2.21000

Decisão, ruptura, opção: uma experiência sobre o papel social do Museu em prol da equidade de gênero

Decision, rupture, option: an experience of the Museum’s social role in favor of gender equity

Maria Clara Martins Cavalcanti*

*Museu do Amanhã, Gerência de Museus da Prefeitura do Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: mamartinscavalcanti@gmail.com

 

Recibido 22-08-2018.

Recibido con correcciones 03-12-2018.

Aceptado 21-08-2019

 

Resumo

Este artigo é a reunião de reflexões e arcabouços teóricos que resultaram do Projeto 10 Meninas da Construção dos Amanhãs; uma parceria do Fundo de Populações da Organização das Nações Unidas com o Museu do Amanhã, localizado na cidade do Rio de Janeiro - Brasil. O projeto consistiu em ações educativas realizadas com 10 meninas de 10 anos moradoras de locais distintos da cidade para debatermos fundamentalmente suas condições como meninas. Por isso, durante os encontros, foram propostas ações que pretendiam discutir os estereótipos relacionados a imagem da mulher, as diferenças salariais entre os gêneros, apresentar a trajetória de mulheres importantes na história, além de construir com estas meninas perspectivas de seus desejos para quando forem mulheres adultas. Nesse projeto realizamos também o Seminário 10 - Meninas na Construção dos Amanhãs, que contou com a participação de especialistas sobre o tema e representantes do Fundo de Populações da ONU. Se o Museu se apresenta como corpo político em prol da equidade, os eventos acontecidos aqui buscaram deslocar zonas de conforto. Nesse sentido, estes eventos constituíram-se como ações que pretendem avançar na direção de uma sociedade mais justa por acreditar na equidade de gênero e na inclusão social como premissas e constructo ideológico.

Palavras- chave: Educação Museal; Gênero; Equidade; Amanhãs.

Abstract

This article is the collection of theoretical reflections that resulted from the Project “10 Meninas na Construção dos Amanhãs”, a partnership of the Population Fund of the United Nations with the Museum of Tomorrow, located in the city of Rio de Janeiro - Brazil. The Project consisted of educational actions carried out with 10-year-old girls living in different places of the city to discuss fundamentally their conditions. Therefore, during the meetings, actions were proposed that aimed to discuss the stereotypes related to the image of women, the wage differences between genders and present the trajectory of important women in history. In this Project we also held the Seminar “10 - Meninas na Construção dos Amanhãs”, which was attended by experts and representatives of the Population Fund of the United Nations. If the Museum presents itself as a body politic in favour of equity, the events that took place here sought to move comfort zones. In this sense, these events were constituted as actions that intend to advance in the direction of a more just society for believing in gender equity and social inclusion as premises and ideological construct.

Keywords: Museum Education; Gender; Equity; Tomorrows.

Museus são processos a serviço da sociedade

“A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura.” (ADICHIE, p.40, 2014)
Não há museu desprovido ou descolado dos discursos e das relações que se produziram e produzem no âmbito social, político e econômico. As instituições respondem às demandas externas assim como as produzem. É nesse complexo que um emaranhado de posicionamentos e ações constroem a forma com que se opta estabelecer as relações entre público, conteúdo e instituição. A problemática do discurso atravessa os projetos de educação e mediação em museus de forma potente e complexa, resultando assim em um conjunto de intenções e realizações que falam sobre o que o museu é e também sobre o que quer ser.

“(...) o museu é uma instituição ao serviço da sociedade da qual é parte integrante e que possui em si os elementos que lhe permitirem participar na formação da consciência das comunidades que serve; que o museu pode contribuir para levar essas comunidades a agir, situando a sua actividade no quadro histórico que permite esclarecer os problemas actuais (...)” (1972, UNESCO/ICOM)

De acordo com a PNM, a Política Nacional de Museus, os museus vão além de meras instituições estáticas ou engessadas, mas são “processos a serviço da sociedade” (2003). Os setores de educação em museus, portanto, fazem parte de uma complexa rede que atua na educação geral dos indivíduos. Ou seja, a Educação Museal atravessa acervos para provocar a interação, diálogo e reflexões na mediação entre público, prédio, objetos, instituição, etc. Segundo o Caderno da Política Nacional de Educação Museal (2018), “a Educação Museal atua para uma formação crítica e integral dos indivíduos, sua emancipação e atuação consciente na sociedade com o fim de transformá-la”. Dessa forma, as questões e estruturas que perpassam a sociedade em geral, são também de interesse das áreas de educação em museus.

O Museu do Amanhã, inaugurado nos meses finais de 2015 no Rio de Janeiro-BR, se configura como um equipamento que assume seu papel social e político na sociedade contemporânea e possui uma dimensão de intervenção que pretende, em muitos contextos e dentre muitos objetivos, promover a equidade social e a ruptura de estereótipos. Entender os museus a partir do discurso “transformador” descrito por Carmen Morshem seu “At a Crossroads of Four Discourses – documenta 12 Gallery Education in betweenAffirmation, Reproduction, Deconstruction, andTransformation” significa entender estas instituições como organizações não só modificáveis como também pretende introduzi-las na esfera do local, do seu redor - em um âmbito social. Entendendo esse discurso como um norteador dentre tantos outros norteadores, a equipe que compõe a gerência de Educação do Museu, concorda que “ a mediação e a educação em museus assumem a tarefa de expandir a instituição expositiva e constituí-la politicamente como um agente de mudança social” (MORSH, p.9, 2011). Sendo assim, o Museu do Amanhã assume como um de seus pilares fundamentais o princípio da convivência, e opta por propor uma reflexão acerca da diversidade e da construção de outros paradigmas identitários que estejam a favor da transformação para uma sociedade mais justa. Essa perspectiva se faz presente tanto na narrativa expográfica como nas diretrizes das ações educativas, uma vez que:

“Para legitimar a importância de um museu em meio a tantas outras instituições de caráter divergente, este precisa estar em sincronia com as necessidades sociais, abarcando como meta critérios intrínsecos às necessidades de cada cultura, ou melhor, um museu precisa dedicar-se à preservação, pesquisa e comunicação e ainda, interagir com os diferentes grupos sociais a partir de projetos de inclusão. Isso o torna objeto preeminente em qualquer comunidade e facilitador do meio cultural.” (SANDY, p. 32, 2011)

Nesse sentido, a instituição museal não só existe na sociedade, como também assume compromissos éticos e se vincula a eles através de posturas e ações. Entendendo assim a museologia social como conceito e viés de existência:

“A museologia social, na perspectiva aqui apresentada, está comprometida com a redução das injustiças e desigualdades sociais; com o combate aos preconceitos; com a melhoria da qualidade de vida coletiva; com o fortalecimento da dignidade e da coesão social; com a utilização do poder da memória, do patrimônio e do museu a favor das comunidades populares, dos povos indígenas e quilombolas, dos movimentos sociais, incluindo aí, o movimento LGBT, o MST e outros. (CHAGAS; GOUVÊIA, p. 11

Refletir sobre o papel social da instituição museu, atrelada aos processos de educação empreendidos, significa direcionar o olhar para as práticas e estruturas nas quais estamos inseridos. Ou seja, nesse processo, tanto a mediação quanto os projetos realizados passam a ser eles próprios objetos de reflexão, promovendo assim o debate acerca da forma como se relacionam com a sociedade:

“Os discursos desconstrutivo e transformador incorporam um entendimento auto-crítico de educação. Isto significa que a educação ela mesma se torna sujeito de desconstrução e transformação. As relações de poder inscritas em seus conteúdos, endereçamentos e métodos são analisadas criticamente, e esta crítica é incorporada de volta no trabalho educativo com o público. (...) por outra parte, o discurso transformador vê a mudança institucional como um objetivo indissociável do fomento à consciência crítica e ao autoempoderamento. Assim, para além das estratégias já mencionadas, as metodologias incorporam aspectos de ativismo. ” (MORSCH, p.7, 2009)

É na relação do espaço museal com as demandas sociais que identificamos a necessidade de discussão acerca dos papéis de gênero na sociedade, em um cenário onde a desigualdade e a violência resultante dela são assuntos comumente pouco explorados dentro das narrativas museais, como reflexo da sociedade. É de fundamental importância pontuar aqui a opção epistemológica do conceito Gênero trabalhado pelo projeto e abordado também neste artigo, e inserido em um contexto de constante disputa e tensão. O conceito começou a ser desenvolvido como alternativa na busca das origens da opressão baseada no sexismo, para além do patriarcado – ele resultou, portanto, da antiga inquietação feminista (PISCITELLI, 2002). A elaboração desse conceito parte da tentativa de aproximar a preocupação política de uma melhor compreensão das formas como o gênero opera em todas as sociedades, o que exige pensar o poder de maneira mais complexa. Nesse momento inicial do trabalho com gênero, então, as perspectivas feministas sustentaram um interesse prioritário na condição da mulher. Entretanto, outras duas ondas do feminismo transformaram esse uso da categoria inicialmente. Joana Maria Pedro traça a trajetória das discussões acerca do gênero, discutindo outras opções epistemológicas como o uso das categorias “mulher” e “mulheres”, circunscrevendo o desenvolvimento destas chaves de análise em seus momentos históricos, chamados de “ondas do feminismo”, empreendidas principalmente pelos movimentos no Hemisfério Norte.

“Assim, nos anos 1970, a categoria seria a de “mulher”, pensada como a que identificaria a unidade, a irmandade, e ligada ao feminismo radical. Os anos 1980 seriam aqueles identificados com a emergência da categoria “mulheres”, resultado da crítica das feministas negras e do Terceiro Mundo. O feminismo dos 1990 seria o da categoria “relações de gênero”, resultado da virada linguística e, portanto, ligada ao pós-estruturalismo e, por fim, a própria crítica a essa categoria, encabeçada por Judith Butler.” (PEDRO, p.2, 2010)

É bem verdade que o uso da categoria gênero tem gerado impasses teóricos movimentados pelas teorias desconstrucionistas e pós-estruturalistas de autoras como Judith Butler e Donna Haraway, que defendem a extinção do constructo de identidades definidas e criticam o uso de gênero por conta de uma suposta essencialização da ideia de “diferença sexual”. Butler por exemplo, afirma que:

“(...) embora os cientistas sociais se refiram ao gênero como um “fator” ou “dimensão” da análise, ele também é aplicado a pessoas reais como uma “marca” de diferença biológica, linguística e/ou cultural. Nestes últimos casos, o gênero pode ser compreendido como um significado assumido por um corpo (já) diferenciado sexualmente; contudo, mesmo assim esse significado só existe em relação a outro significado oposto.” (BUTLER, 2017, p. 31)

As importantes contribuições dessas autoras surgem no sentido de desessencializar o conceito e apontar para a complexidade das relações entre sexualidade e identidade de gênero, analisando as estruturas biologizantes e sociais. Entretanto, mediante essa crítica, optar pelo uso de gênero ainda pode acontecer:

“se associarmos o conceito de política da identidade com um conceito de sujeito como posicionalidade, podemos conceber o sujeito como não-essencializado, resultado de uma experiência histórica, e ainda assim manter nossa capacidade política no sentido de tomar o gênero como um importante ponto de partida. Dessa forma, podemos dizer que o gênero não é natural, biológico, universal, a-histórico ou essencial e ainda assim defender que ele é relevante, já que o estamos assumindo como uma posição a partir da qual podemos agir politicamente.” (ALCOFF, 1988, p.420)

O conceito de posicionalidade de Alcoff é extremamente relevante uma vez que defende o uso possível da categoria de gênero de forma a não necessariamente se essencializar as diferenças sexuais, torná-lo biológico ou reduzi-lo ao estudo das mulheres. Dessa forma, entendese gênero aqui como “ um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1990, p.14); utilizado neste projeto como uma questão transversal, que possui um recorte específico por buscar explorar especificamente o lugar das mulheres cisgênero na sociedade. Enquanto “mulher” e “mulheres” parecem limitar a análise à existência descolada desses indivíduos, gênero se constitui como uma categoria baseada nas relações estabelecidas entre homens e mulheres, relações essas constituídas socialmente. Dessa forma, a utilização do conceito gênero permite focar as relações entre homens e entre mulheres além das relações entre homens e mulheres, observando a forma com que os momentos históricos e as construções sociais cotidianas produziram o gênero. Se o sistema das relações de gênero se relaciona com as atribuições de papéis sociais e poder, este parece estar sustentado por uma ampla rede de práticas culturais, metáforas e representações que estão associadas ao masculino ou ao feminino e que estão presentes nos museus assim como são produzidas por eles.

Museus, educação e gênero

Historicamente é a partir da década de 90 que as discussões acerca do papel social das mulheres se desdobram em debates sobre a museologia de gênero e museus do feminino, motivadas pelo movimento feminista e pelos deslocamentos sofridos pela pesquisa histórica em direção às construções da vida quotidiana, possuindo também profunda relação com as reflexões acerca do papel social das instituições museais. “Pode-se evocar a este propósito (...) a emergência da nova museologia, a qual apela ao papel social e inclusivo dos museus, valências que vêm na sequência de decisões expressas na Carta de Santiago do Chile de 1972 e na Declaração de Quebeque de 1984. Tratase de textos fundadores que, por um lado, instituem o museu integral, «ao serviço da sociedade», e, por outro, vinculam os museus a novas funções sociais, como agentes de comunicação e de intervenção social, tendo como epicentro o indivíduo e a comunidade, deixando o museu de ser encarado como mero local de armazenamento de coleções ou de memórias.” (VAQUINHAS, p.2, 2014)

As discussões efervescentes sobre as questões relacionadas ao gênero e à mulher não poderiam ficar de fora das temáticas de um Museu que se propõe a também pensar as relações sociais. Os projetos empreendidos nesse sentido aconteceram conscientes dos entraves comuns às abordagens do assunto, uma vez que:
“Não é fácil conversar sobre a questão de gênero. As pessoas se sentem desconfortáveis, às vezes até irritadas. Tanto os homens como as mulheres não gostam de falar sobre o assunto, contornam rapidamente o problema. Porque a ideia de mudar o status quo é sempre penosa.” (ADICHIE, p. 23, 214).

Nesse sentido, identificar uma estrutura onde, em geral, homens e mulheres ainda não são educados da mesma forma nos pareceu ser o primeiro passo para promover um projeto que pretende entender quais os caminhos a serem traçados até alcançarmos a equidade de gênero em algum momento. Afinal, onde começamos a delimitar os papéis que homens e mulheres desempenham na sociedade se não em todos os espaços onde as práticas educativas ocorrem, inclusive em um Museu?

“A questão de gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens mais felizes e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de uma maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente” (ADICHIE, p.30, 2014). Projeto Terrenos Férteis: O Museu do Amanhã atua em torno dos temas de educação e gênero.

O Museu do Amanhã se insere neste contexto do debate e reflexão sobre igualdade de gênero ao construir como uma de suas linhas de ação, o projeto Terrenos Férteis: Diálogos com o Feminino, que abarca uma gama de ações que envolvem as temáticas acerca da mulher, do feminino e do feminismo. Esta linha de açãotrouxe o espetáculo “Primavera das Mulheres” para ser apresentado no Museu e realizou o evento “Comida e o Feminino”, que se consistiu em um conjunto de ações onde a comida foi apresentada como uma ferramenta de transformação do mundo, das relações humanas e ainda do empoderamento feminino.A instituição tem buscado trazer a equidade não só como temática, mas como gesto dentro das ações do educativo, o que incluiu a movimentação das colaboradoras no dia 08 de Maio, dispensadas dos seus postos de trabalho, participando juntas da manifestação da Greve das Mulheres no Rio em 2017. Os gestos em prol da equidade se intensificaram de maneira mais explícita ao assinarmos o acordo #ElesporElas: Por um mundo 50/50, da agência da ONU para Mulheres, em outubro de 2016. Em seguida, no contexto de parceria com o Fundo de Populações, também da ONU, fomos convidados a participar do lançamento do relatório sobre meninas de dez anos. O Relatório ‘Situação da População Mundial 2016’, lançado em Brasília em Outubro de 2016 pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), mostra que o alcance das metas para o desenvolvimento sustentável depende de como apoiamos cerca de 60 milhões de meninas que estão na faixa etária dos 10 anos de idade e que estão iniciando sua passagem da adolescência para a idade adulta. O relatório defende que as práticas que violam os direitos humanos dessas meninas as impedem de alcançar seu pleno potencial para atingir a idade adulta de forma saudável e contribuir para o progresso econômico e social das suas comunidades e nações. O relatório analisa fatores cruciais como serviços, leis, investimentos, dados, políticas, e padrões e espera garantir os direitos das meninas com idades entre 10 anos ou mais, podendo assim determinar o cumprimento da Agenda 2030 e seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A partir do momento em que as questões de gênero passaram a estar inclusas nas discussões acerca dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas ampliou-se também o debate acerca das diferenças e desigualdades de gênero:

“Inspiradas pela vontade de discutir a desigualdade que atinge mulheres em todo o mundo, as ativistas dos direitos humanos vêm realizando significativos ganhos nas últimas décadas, assegurando a maior inclusão do tema do abuso dos direitos relativos as mulheres e ao gênero nos discursos dos direitos humanos. Em nível formal, o princípio da igualdade de gênero, no que se refere a fruição dos direitos humanos, baseia-se na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, sendo depois explicitado na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres (Convention for theElimination of AllForms of DiscriminantionAgainstWomen/CEDAW). Essas garantias foram detalhadas através de uma série de conferências mundiais, incluindo as do Cairo, de Viena e de Beijing. Tais detalhamentos realmente constituíram avanços conceituais, pois expandiram os direitos humanos para além dos seus parâmetros iniciais, que marginalizavam os abusos de direitos relacionados ao gênero que atingissem especificamente as mulheres. O relativo sucesso de tais esforços baseou-se em uma mudança significativa de perspectivas quanto a relevância da diferença de gênero no projeto de ampliação do escopo dos direitos humanos das mulheres.” (CRENSHAW, 2002, p.172)

O convite para participar do lançamento do Relatório nos abriu a oportunidade de debater os parâmetros acerca das diferenças e das desigualdades de gênero sob uma perspectiva política que entende o trabalho de educação em um Museu como um projeto sobre a forma com que a instituição se relaciona com a sociedade, e nesse caso, com as relações de gênero que nela estão inscritas. Dessa forma, foi empreendido um diálogo com um grupo de meninas, que resultou no seminário 10 - Meninas na Construção dos Amanhãs e, no Encontro entre Educadores: Educar para equidade, educar para autonomia, que serão apresentados neste texto.

O Seminário realizado no Museu do Amanhã em parceria com o Fundo de Populações da ONU (UNFPA) convidou 10 meninas de lugares distintos da cidade a fim de debatermos temas relativos às questões de gênero. Durante três encontros, mediados pelo Grupo de Trabalho Cidades da equipe de educação do Museu do Amanhã, foram propostas ações que pretendiam discutir os estereótipos relacionados a imagem da mulher, as diferenças salariais entre os gêneros, apresentar a trajetória de mulheres importantes na história e afins, além de construir com estas meninas perspectivas de seus desejos para quando forem mulheres adultas. Esse processo se estabeleceu como a procura pela elucidação de um cenário ao mesmo tempo em que procuramos estimular o debate no sentido das possíveis ações de transformação.

As 10 meninas possuíam uma faixa etária específica: todas possuíam em torno de 10 anos. Após analisar os dados presentes no relatório da UNFPA - 10 – Como nosso futuro depende de meninas nessa idade decisiva - esem a pretensão de apontar caminhos ideais para a vida delas, procuramos produzir processos de construção de autonomia dentro de suas redes individuais, discutindo categorias feministas como sororidade e apresentando a trajetória de mulheres na História para a construção de referenciais positivos e empoderadores.

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Figura 1. Foto do Seminário 10 – Meninas na Construção dos Amanhãs. Fonte: Acervo Fotográfico do Museu do Amanhã
Figure 1. Photo from Seminar 10 - Girls in Tomorrow’s Construction. Source: Museum of Tomorrow Photographic Collection

Dentre os materiais produzidos para servirem como disparadores de reflexões possíveis estava o Jogo das Profissões, semelhante ao conhecido Jogo do Mico, onde o par encontrado (um homem e uma mulher) vinham acompanhados da média salarial por área de profissão para cada um dos gêneros. Os dados retirados de uma pesquisa de 2016 da Catho - Brasil revelou que na maior parte das áreas profissionais registradas, as mulheres recebem um salário menor que os homens. E esse não é um cenário exclusivo deste país. Com este jogo pudemos comparar as áreas profissionais e discutir a formação dos papéis sociais de homens e mulheres em âmbito também mundial:

“Na última eleição dos Estados Unidos, ouvimos, com frequência, falar da lei Lilly Ledbetter, que visa à equiparação salarial das mulheres. Se formos além do nome bonito e aliterativo, o significado é o seguinte: nos EUA, quando um homem e uma mulher têm o mesmo emprego, com as mesmas qualificações, se o homem ganha mais é porque ele é homem.” (ADICHIE, pg. 32, 2014)

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Figura 2. Foto da realização do “Jogo do Mico” durante um dos encontros com as meninas. Fonte: Acervo do Museu do Amanhã.
Figure 2. Photo of the “Mico Game” during one of the meetings with the girls. Source: Museum of Tomorrow Collection.

Quando questionadas sobre o motivo de tal disparidade, recebemos como resposta: “Não têm porquê. Não têm razão para isso acontecer. Se isso acontece é porque vivemos em um mundo machista, que os homens acham que são melhores que as mulheres e por isso, receber mais. ” (Juliana Janot, 12 anos, moradora de Botafogo – RJ). A partir dessa fala pudemos trabalhar as construções históricas que resultam da diferença salarial que perdura entre homens e mulheres, relembrando épocas onde as mulheres eram institucionalmente proibidas de votar, estudar ou trabalhar e analisando as permanências e rupturas na comparação com este tempo.

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Figura 3. Meninas montando o Quebracabeça Feminista. Fonte: Acervo do Museu do Amanhã.
Figure 3. Girls assembling the Feminist Puzzle. Source: Museum of Tomorrow Collection.

Essa discussão foi acalorada com a apresentação do vídeo de uma campanha da revista Elle, onde os líderes homens são apagados das fotografias por uma ferramenta de edição, restando um número extremamente reduzido de mulheres nas instituições de poder se comparado à quantidade de homens. Outra ferramenta produzida e utilizada foi um quebra-cabeça que possuía de um lado, imagens de mulheres reconhecidas por sua importância histórica na política, na literatura, ciência e na sociedade em geral. E no outro lado, palavras como sororidade, confiança e união. As palavras serviram para gerar uma conversa sobre relações entre as mulheres e as imagens, para criarmos referenciais positivos através da trajetória dessas personalidades.

Em outra ferramenta, o Jogo das Frases, apresentamos trechos de músicas e discursos veiculados na mídia que refletem opiniões diversas sobre o papel que as mulheres ocupam no mundo. Nessa atividade as participantes expressaram suas opiniões sobre essas frases e as que foram consideradas inapropriadas puderam ser reescritas e sofreram intervenções em seu sentido. As frases apresentadas foram ditas por personalidades do mundo contemporâneo, incluindo chefes políticos e compositores musicais.

Uma das últimas atividades propostas foi a construção de Linhas do Tempo que dimensionaram individualmente os desejos dessas meninas para sua formação nos próximos anos (até 2030): “Com 25 anos, eu quero estar formada em cinema, ter a minha casa e morar em outro país. Eu acho que, o que pode melhorar, é a educação; e o salário dos homens e das mulheres, que são diferentes, poderia ser igual, se eles fazem o mesmo trabalho” (Maria Clara, 10 anos, moradora do Complexo da Maré). As construções dessas linhas do tempo elucidaram não somente os desejos dessas meninas de chegarem saudáveis aos 25 anos, mas também o quanto temos que nos comprometer como sociedade e instituições no sentido de promover ações que possam garantir isso.

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Figura 4. Foto de frase alterada durante a ação. Fonte: Acervo do Museu do Amanhã.
Figure 4. Photo of phrase changed during the action. Source: Museum of Tomorrow Collection.

No decorrer do processo, foram profundas as relações que essas meninas estabeleceram entre elas e o fortalecimento mútuo que esse contato provocou. O delas e o da equipe de educação envolvida no projeto. Ao nos dispormos a ouvi-las, percebemos que comumente a sociedade negligencia as falas das crianças sobre assuntos que atingem diretamente suas vidas. Esse processo de escuta ativa gerou um sentimento de autonomia assegurado por uma zona de identificação mútua de extremo valor, por priorizar o afeto. Ao final dos encontros tínhamos música, poesias e outras formas de expressão das suas inquietações e desejos enquanto mulheres. Essas meninas chamaram a nossa atenção todo o tempo para a responsabilidade de homens e mulheres de todas as idades para a construção de um cenário favorável a seu envolvimento e desenvolvimento na sociedade.

O projeto que se desenvolveu junto a essas meninas foi tão instigante que apontou para a necessidade de discutirmos nosso papel como educadores em museu e o papel de educadores em geral na construção de um amanhã com equidade. Foi com o interesse de buscar a relação entre gênero, autonomia e educação que decidimos desdobrar as temáticas desenvolvidas, tratando sobre elas na programação do “Encontro entre educadores”, uma das plataformas da gerência de educação do Museu do Amanhã. Mais do que professores, a plataforma busca atrair todas as pessoas que se interessam com a temática da educação, independentemente de suas profissões. Para darmos espaço ao assunto que tanto mobilizou e instigou nossas ações no contato com as meninas - a equidade de gênero - entre junho e julho, utilizamos com o público os mesmos materiais dos encontros realizados com elas, visando aprofundar as questões, e sobretudo questionar o que poderia ser feito a partir da atuação de cada um dos participantes em sua condição comum de educadores. Paulo Freire propõe que a educação seja um processo que possibilite nos assumir como “sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores (...)” quando defende a pedagogia da autonomia. E ainda acrescenta que “por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar”. No encontro entre educadores buscamos investigar as formas com que a educação pode promover a emancipação e a autonomia na construção e formação de indivíduos que também se movimentem em prol da equidade de gênero. Isso significou investigar os desafios e as possibilidades do trabalho com categorias como gênero, família, tradição e corpo.

A nossa trajetória com esses projetos que tiveram a equidade de gênero como tema, a relação com meninas de tão pouca idade, as conversas no interior da equipe e as discussões com educadores de vários locais sociais indicaram a importância da já existência dessa temática como plataforma permanente no projeto de educação do Museu. Se este se apresenta como corpo político em prol da equidade, os eventos acontecidos aqui buscaram deslocar zonas de conforto e apontar para a urgente necessidade de se falar sobre o assunto. Nesse sentido, constituíram-se como ações que pretendem avançar na direção de uma sociedade mais justa por acreditar na equidade de gênero e na inclusão social como premissas e constructo ideológico.

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