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Revista latinoamericana de filosofía

On-line version ISSN 1852-7353

Rev. latinoam. filos. vol.49 no.1 Ciudad Autónoma de Buenos Aires June 2023

http://dx.doi.org/10.36446/rlf2023313 

Artículos

Cultura e Filosofia Latino-Americana no Século XXI

Latin American Culture and Philosophy in the 21st Century

RONIE ALEXSANDRO TELES DA SILVEIRA1 

1 Universidade Federal do Sul da Bahia

Resumo

O problema da especificidade do trabalho filosófico na América Latina é discutido em termos do ambiente cultural do Século XXI. Assim, não se reivindica nesse artigo nenhum gesto de independência com relação à filosofia de matriz europeia. Embora isso seja legítimo, trata-se sempre de um tipo frágil de argumentação, uma crítica externa de pouca capacidade de convencimento. Aqui preferimos defender a necessidade de um ajuste do trabalho filosófico em função da falência dos procedimentos filosóficos tradicionais pela pós-modernidade. Essa nova situação nos impulsiona a tematizar o ambiente cultural imediatamente disponível: a América Latina.

Palavras chave: filosofia; América Latina; pósmodernidade

Abstract

The problem of the specificity of philosophical work in Latin America is discussed in terms of the cultural environment of the 21st century. Thus, no gesture of independence is claimed in this article in relation to the philosophy of European matrix. Although this is legitimate, it is always a fragile type of argumentation, an external criticism of little convincing capacity. Here we prefer to defend the need for an adjustment of philosophical work due to the failure of traditional philosophical procedures by postmodernity. This new situation drives us to themeize the cultural environment immediately available: Latin America.

Key words: philosophy; Latin America; postmodernity

1. Introdução

De um ponto de vista genérico, que adoto nesse texto, parece haver atualmente duas possibilidades de orientação para o exercício de uma filosofia latino-americana. O mais óbvio e, por isso mesmo mais acessível, é compreender o trabalho de um filósofo latino-americano como uma atividade filosófica qualquer, sem que a questão local interfira nela de maneira significativa.

Nesse sentido, não haveria nada de particular no exercício da filosofia na América Latina que pudesse exercer alguma influência, seja no seu conteúdo, seja na sua forma. Está subentendido nessa ideia que o ambiente cultural em que nos encontramos não oferece nenhuma dificuldade adicional, tendo por referência aquele modo tradicional de operar da filosofia de matriz europeia. Modo esse que nos é familiar em função de nossa exposição a ele durante os anos de formação. Em outras palavras, dedicar-se à filosofia latino-americana consistiria no mesmo tipo de exercício intelectual realizado na tradição da velha Europa, da qual seríamos um capítulo ou uma extensão natural.

Esse ponto de vista é defendido abertamente ou é adotado implicitamente pela grande maioria dos filósofos latino-americanos. Nesse texto me interesso mais pelo aspecto implícito dessa crença do que por aquelas modalidades de defesa explícita de que a prática da filosofia latino-americana consiste simplesmente em uma filosofia sem mais (Zea 1989). O aspecto implícito me interessa de maneira especial aqui justamente porque entendo que é ele que tem caracterizado a prática filosófica predominante entre nós.

Assim, o fato de não nos ocuparmos, na grande maioria das vezes, com a necessidade de uma discussão acerca da especificidade da prática filosófica latino-americana já é a expressão daquela crença implícita de que o que fazemos consiste na continuação de uma longa tradição ocidental. Continuação que não exige nenhum tipo de reparo ou adequação de nossa parte. Com efeito, a dedicação a qualquer ramo da atividade filosófica entre nós, sem a discussão prévia acerca da eventual necessidade de ajustes formais ou de conteúdo ao ambiente latino-americano, reafirma a noção de que estamos diante de um ramo daquela atividade tradicional europeia, nesse caso realizada na América Latina. Com isso, se afirma indiretamente que essa última é uma manifestação americana daquela tradição filosófica, uma versão particular da filosofia sem mais.

Essa crença implícita supõe algo mais genérico: que a relação da filosofia latino-americana com a filosofia ocidental seria análoga à relação da cultura latino-americana com a cultura ocidental. Em certo sentido, estaríamos encampando alguma versão da tese hegeliana (Hegel 1989; 1990) acerca da participação das figuras particulares em uma história de escopo mais abrangente. Essas versões afirmam que o sentido verdadeiro de qualquer uma das figuras particulares só pode ser apreendido na medida em que ela é compreendida como expressão de um momento daquela história universal. Assim, a filosofia latino-americana, para se tornar efetivamente significativa, deveria forjar uma figura própria que contribuísse para o sentido geral da filosofia de matriz europeia. Isso, evidentemente, apenas no caso de tentar promover sua própria originalidade. Nesse caso, ela deveria se esforçar por tornar-se uma das figuras que participam daquela linha filosófica universal elaborada pela velha Europa. Nesse caso, ter um significado relevante e original implica em posicionar-se no interior de uma história filosófica já consolidada pelo ambiente europeu. Ou seja, tornar o nosso exercício profissional significativo envolve torna-lo significativo para a filosofia de matriz europeia.

É claro que existe sempre a possibilidade, nunca desejável, de adotarmos uma prática filosófica insignificante, se não conseguirmos formular uma figura original que nos garanta uma participação efetiva naquela história filosófica europeia. Se não conseguirmos ser originais no sentido indicado, se não propusermos um passo adiante com respeito ao que já foi realizado dentro daquele escopo, estaríamos condenados ao exercício de uma prática inessencial, de uma atividade filosófica meramente erudita e improdutiva. Nesse caso, poderíamos tanto estar diante de uma filosofia que repete as verdades já formuladas - uma forma tautológica - como de uma atividade que afirma princípios incompatíveis com aquela história filosófica - uma variante solitária e destituída da capacidade de articulação com a filosofia de matriz europeia. Em ambos os casos se trataria de uma filosofia incapaz de articular-se verdadeiramente com a tradição europeia e, portanto, destituída de um sentido autêntico. O resultado dessa filosofia se limitaria à repetição, ao interesse meramente museológico, às cansativas monografias conceituais ou, por outro lado, diria respeito a proposições incapazes de estabelecer qualquer tipo de diálogo com a tradição europeia. A despeito dessa possibilidade de se tornar insignificante diante da matriz europeia, na grande maioria das vezes a prática da filosofia entre nós adota implicitamente alguma variação daquela tese hegeliana no sentido positivo. Isto é, se atua na expectativa de que possamos efetivamente contribuir com algo significativo dentro do escopo da história da filosofia ocidental já consolidada e que, portanto, somos uma parte natural dela. Essa disposição majoritária não deve nos surpreender, já que a transposição de um tipo de atividade do ambiente europeu para o latino-americano é uma espécie de caminho natural a ser adotado. Isso se considerarmos que o processo de formação dos filósofos latino-americanos ocorre justamente através do estudo da tradição europeia. E nada é mais simples do que estender o exercício intelectual típico do período de formação, para a prática profissional posterior. Exercer a atividade filosófica nos termos europeus seria tão fácil como andar de bicicleta, depois daquele período inicial em que adquirimos essa habilidade. Nesse caso, o período de preparação profissional termina fornecendo não apenas os meios conceituais, mas também os fins de toda a atividade filosófica posterior.

De certa maneira, isso também é induzido pelos processos de trabalho em ensino e investigação no interior das nossas universidades - local de alocação majoritária da mão de obra filosófica na América Latina. Em função de encontrar-se inserida nesse ambiente supõe-se que a atividade filosófica é uma prática científica particular, de tal forma que os dispositivos de trabalho e financiamento operam do mesmo modo em ambos os casos - no filosófico e no científico. Desde a participação da filosofia nos processos universitários de formação das diferentes carreiras, à concessão de bolsas de iniciação científica, passando pela formação de grupos de pesquisa e avaliação da pós-graduação, os parâmetros a que a filosofia acadêmica se submete são exatamente os mesmos das demais ciências particulares.

Nesse ambiente científico parece haver ocorrido uma adaptação do trabalho filosófico latino-americano a uma tradição europeia já consolidada. Do mesmo modo, isso também não soa absurdo, já que se trata de características da instituição universitária transplantada do contexto europeu para a América, no interior da qual se pratica a filosofia.

Assim, a filosofia latino-americana está inserida na tradição europeia de maneira muito natural, seja do ponto de vista da inserção de novos profissionais no exercício profissional, seja da perspectiva da rotina de seu exercício posterior dentro das universidades onde ela é praticada. Pelos vários ângulos que se possa analisar a situação, parece incontornável reconhecermos que estamos diante de uma filosofia latino-americana plenamente adaptada ao ambiente acadêmico do Século XXI e, portanto, à tradição europeia na qual a universidade e a produção do conhecimento adquiriram um sentido no passado e um impulso para o futuro. Isso é verdadeiro mesmo que essa adaptação à matriz europeia esteja sendo realizada de maneira implícita e não esteja sendo tematizada como um problema pelos filósofos latino-americanos.

Assim, podemos notar que não apenas adotamos os ensinamentos do período de formação como determinantes da prática filosófica posterior como nos adaptamos ao ambiente universitário - cujas características atendem às necessidades de especialização e investimento em pesquisa científica de interesse dos Estados nacionais, ambas manifestações orgânicas da matriz cultural europeia.

Em função de se constituir como uma situação hegemônica do nosso exercício profissional, adotarei aqui como ponto de partida essa primeira perspectiva segundo a qual a filosofia latino-americana é um capítulo da filosofia ocidental. Não creio que faça muito sentido estabelecer uma comparação crítica com o ponto de vista contrário, que defenderia a existência de alguma suposta vocação relativa à nossa particular situação latino-americana. A apresentação dessa segunda perspectiva sobre a filosofia latino-americana consistiria não apenas no exercício de uma crítica externa com respeito à visão anterior, mas envolveria também uma pressuposição exagerada acerca do seu poder de convencimento no interior da comunidade filosófica latino- americana. Nesse caso, os efeitos retóricos seriam mínimos.

De fato, como as crenças que prevalecem no interior dessa comunidade sobre o que é a prática filosófica são implícitas, acredito que uma crítica explícita teria pouco valor. Ela não estaria habilitada para alterar um ponto de vista que se consolidou ao longo do tempo em função de haver promovido uma adequação ao ambiente cultural de matriz europeia. Em geral, alterações de crenças consolidadas não ocorrem através de processos de esclarecimento, mesmo no caso da filosofia - uma forma de conhecimento que se supõe requerer uma vontade superior orientada para a exposição de pressupostos de toda ordem.

Me refiro aqui ao peso e à substância dos valores que adotamos em nossa prática cotidiana como filósofos. Trata-se de uma tese polêmica, mas não creio que os filósofos possuam condições de saltar sobre o conjunto de valores que caracteriza a prática filosófica europeia e aterrissar em um outro planeta em que se pratica outro tipo de filosofia. O convencionalismo é poderoso mesmo no interior de uma comunidade que se caracteriza abertamente pelo exercício de um senso crítico agudo. O próprio fato de se tratar de uma comunidade já afirma a validade de um etos estável, da aceitação implícita de um modo básico de operar.

Embora isso tenha importantes implicações metodológicas que não posso explorar adequadamente aqui em função do espaço disponível, suponho que existe uma cultura filosófica latino-americana. Isto é, existem crenças não tematizadas sobre o que é a filosofia e como se deve praticá-la. Mais do que isso, em função dos elementos apresentados acima, sabemos que essas crenças são oriundas da matriz filosófica europeia. Prefiro deter-me na análise das condições requeridas por essa abordagem orgânica da filosofia latino-americana. Denomino-a de orgânica na medida em que se supõe implicitamente que ela consiste em uma figura particular e articulada com a história da filosofia europeia, da qual seria uma expressão particular. Adoto, como ponto de partida a ser analisado, aquele ponto de vista convencional acerca da atividade filosófica exercida na América Latina: como se, nesse caso, se tratasse de uma filosofia sem mais.

Como se verá adiante, a análise desenvolvida aqui a partir dessa perspectiva convencional propiciará elementos esclarecedores sobre a prática da filosofia latino-americana - qualquer que seja ela. Isso implicará na adoção de uma segunda perspectiva, porém não apresentada como crítica da primeira, mas resultante de sua própria análise. Nesse caso, os elementos a serem introduzidos dirão respeito a características internas dessas crenças convencionais sobre a filosofia. Isso permitirá obter senão uma crítica interna - e por isso mesmo mais ajustada - ao menos a caracterização de um impasse crucial com o qual a filosofia latino-americana terá de lidar a partir da situação cultural em que ela se encontra atualmente.

2. A filosofia contra a pós-modernidade

Seguindo essa forma de exposição, a questão que deve ser objeto imediato de nossa atenção a partir de agora é a de avaliar se alguma versão da narrativa hegeliana ainda pode ser adotada no contexto da cultura europeia, da qual nos assumimos como uma decorrência natural. Ou seja, trata-se de avaliar se ainda faz sentido representar o trabalho filosófico latino- americano como um capítulo da filosofia europeia, dentro daquelas condições estabelecidas pela versão orgânica, sem interpor a isso nenhuma alegação sobre supostas especificidades americanas. Com isso, evitamos introduzir demandas exteriores que sejam estranhas ao ambiente europeu - contornando aqueles típicos defeitos das críticas externas e inúteis como estratégias de convencimento.

Desde o final do Século XX a cultura europeia passou a apresentar sinais de exaustão no que diz respeito à adoção de narrativas do tipo hegeliano. Isso não significa exaustão dessa cultura, mas certo cansaço com relação ao uso daquele tipo de estratégia. Lyotard (2011) chamou a atenção para isso, fazendo referência a um movimento de fragmentação epistemológica em curso já no final dos anos de 1970. Posteriormente se consolidou um termo polissêmico - e por isso mesmo de difícil definição - que pode auxiliar a compreender essa exaustão: a pós-modernidade. Independentemente da discussão sobre a presença ou não de uma ruptura entre essa nova fase histórica (ou pós-histórica) e a própria modernidade, o seu sentido básico pode ser identificado com relativa precisão.

A pós-modernidade indica uma situação cultural em que o significado de uma determinada prática social (científica, moral, epistemológica etc.) não depende mais de sua submissão a uma narrativa abrangente, da qual aquela seria uma parte ou uma figura particular. Ou seja, as posições pós-modernas abandonaram a necessidade de extrair o significado de um elemento particular por meio de arranjos conceituais que o submetiam a princípios universais e, em geral, teleológicos. Era comum que as narrativas abrangentes do tipo hegeliano envolvessem princípios finalistas desse tipo - como a narrativa do progresso histórico da humanidade em direção à liberdade.

A afirmação de Nietzsche (2018: 20) sobre uma indisposição em plantar árvores para as gerações futuras já antecipava, no Século XIX, esse tipo de cansaço com relação a fazer o significado depender de uma corrente de sentido abrangente.

Uma desvantagem essencial trazida pelo fim das convicções metafísicas é que o indivíduo atenta demasiadamente para seu curto período de vida e não sente maior estímulo para trabalhar em instituições duráveis, projetadas para séculos; ele próprio quer colher a fruta da árvore que planta, e portanto não gosta mais de plantar árvores que exigem um cuidado regular durante séculos, destinadas a sombrear várias seqüências de gerações.

Esse cansaço relativo a um significado transcendente ao indivíduo força todos os possíveis sentidos relevantes na direção da dimensão particular. O ambiente cultural é restringido e, ao mesmo tempo, intensificado nessa direção, pois tudo o que importa se passa no seu interior: no período de tempo disponível para uma vida humana, na sua situação geográfica existencial, no seu próprio domínio epistemológico original, na sua condição moral particular etc.

De um ponto de vista geral, o sentido relevante passa a ser derivado das próprias práticas e não de sua eventual inclusão em uma narrativa abrangente capaz de subsumi-la. De certo modo, o próprio Hegel (1989: 697) já havia se referido a uma insatisfação latente do indivíduo, mesmo no interior da substância moral do Estado em que, a princípio, ele deveria sentir-se plenamente realizado. Quer dizer, ele indicava uma tendência da particularidade individual para mostra-se inquieta, mesmo quando acolhida no interior de uma estrutura de significado que lhe fornecia um mundo estruturado sob a forma da cidadania gerada pelo Estado moderno.

Não contente com que prevaleçam os direitos racionais, a liberdade da pessoa e da propriedade; não contente com que haja uma organização do Estado, e dentro do seu círculo, a vida civil, (...) O liberalismo opõe a tudo isso o princípio dos átomos, das vontades individuais: tudo isso deve ser obra de seu poder expresso e de sua aprovação expressa. Com este formalismo da liberdade, com essa abstração, os liberais não deixam consolidar-se nada na organização. Às distintas disposições do governo, opõe-se em seguida a liberdade; (...). Continuam, pois, o movimento e a intranquilidade. Esta colisão, este nó, este problema é o que a história terá que resolver nos tempos vindouros.

Tudo indica que esse princípio liberal de que fala Hegel permaneceu agindo no interior da cultura de matriz europeia, fazendo ruir lentamente a validade das instâncias universais de legitimação e validação de um sentido superior. O sistema de significação mais amplo foi sendo devorado por aquela necessidade de assentimento individual para todas as coisas. A insistência de suas demandas tem solapado gradualmente as disposições permanentes, os sentidos duradouros, os valores substantivos.

Se seguirmos as indicações de Berlin (1999), poderemos verificar que essa tendência liberal foi forjada no ambiente romântico e se desenvolveu no interior do modernismo e também da pós-modernidade. Parece haver se estabelecido uma tendência na qual o próprio arranjo hegeliano seria somente um meio termo. Aquela típica condição de equilíbrio hegeliano entre o particular e o universal, após superadas as contradições, consistiria somente em um estágio intermediário rapidamente alterado pela energia despendida pelo princípio liberal. Ou seja, a balança ultrapassou a situação de harmonia e rapidamente tendeu em direção à particularidade do indivíduo. Mesmo operando contra sua própria maneira convencional de pensar, a descrição feita por Hegel acerca desse processo parece enfatizar uma situação de desequilíbrio em que o indivíduo europeu solicita mais e mais para si. Isto é, o próprio Hegel parece estar indicando na passagem acima a presença de uma tendência que avança contra o equilíbrio entre a particularidade e a universalidade que constitui a base de suas narrativas e a viga mestra de sua dialética. Essa tendência seria a responsável por tornar as narrativas do tipo hegeliano ultrapassadas na medida em que configura um mundo em que a particularidade solapa as bases da universalidade e destrói aquele equilíbrio. Esse mesmo movimento de intranquilidade da particularidade com respeito às instâncias superiores de significado pode ser observado não apenas do ponto de vista moral e político, quanto também do ponto de vista epistemológico (Silveira 2015). Curiosamente, o nó a ser resolvido pela posteridade, segundo Hegel, é justamente aquilo que tornou sua narrativa típica inadequada com relação às novas necessidades do presente pós-moderno. Isso significa, entre outras coisas, que todo hegeliano consequente não deveria ser adepto de Hegel - já que seu pensamento expressa um equilíbrio passageiro erigido pela realidade europeia do século XIX e certamente ultrapassado pela marcha da cultura no Século XXI.

Independentemente dessa questão, pretendo ressaltar aqui a presença de uma tensão produzida pela pós-modernidade contra todas as narrativas de tipo hegeliano, na medida em que ela promove a validade de significados no interior da dimensão particular, sem conectá-las com a universalidade típica de uma narrativa abrangente. Nesse sentido, parece muito claro que não há compatibilidade possível entre essas duas frentes culturais com respeito ao procedimento a partir do qual se possam estabelecer valores válidos. É inevitável reconhecer que aquela intranquilidade liberal, de que fala Hegel, terminou por eliminar a demanda por instâncias de legitimação universais - incluída aí a típica narrativa hegeliana.

A questão que me interessa, ainda dentro daquele ponto de partida inicial da versão orgânica do exercício da filosofia, pode ser agora formulada da seguinte maneira: qual o sentido de nos representarmos - nós, os filósofos latino-americanos - como um capítulo da filosofia europeia no ambiente cultural pós-moderno? Ou ainda: qual o sentido em adotarmos uma metanarrativa filosófica em um contexto cultural claramente avesso a ela? Observe que a versão orgânica sobre a filosofia latino-americana aciona uma narrativa de tipo hegeliano, na medida em que ela se define como uma figura particular instalada em uma história abrangente.

Parece evidente que não há mais nenhum sentido nessa tentativa de compreendermos o trabalho filosófico na América Latina como subordinado ou internamente conectado à tradição europeia. Isso justamente porque, em função da corrosão pós-moderna, essa tradição está em colapso e não se requer mais que ela abrigue sob si aquilo que era entendido antes como suas figuras particulares (a filosofia inglesa, a filosofia francesa etc.).

O ponto central e relevante para nós - filósofos latino-americanos - é que não se requer mais que a história da filosofia ocidental abrigue o conjunto de atividades filosóficas particulares. Por isso, a filosofia não pode mais ser compreendida como um diálogo transcultural entre as filosofias particulares no interior de uma totalidade fundada a partir da velha Europa. Enfatizo aqui que essa constatação não se sustenta sobre o reconhecimento de alguma especificidade de nossa parte, seja de que tipo for. Uma que nos colocaria em condições de sermos filosoficamente originais diante da velha Europa. Trata-se de algo muito mais fundamental e que diz respeito à incapacidade dessa mesma tradição em continuar a nos abrigar como um de seus elementos particulares. Por outro lado, precisamente em função dessa falência estrutural da narrativa europeia, não há mais necessidade de lançarmos mão de algum dispositivo de justificação para o nosso caso. Em função das mutações culturais por que passa a velha Europa é que nos encontramos por nossa conta e risco, desejemos isso ou não.

Em outras palavras, não é mais requerido pelas circunstâncias culturais em que nos encontramos - e que tendem a se acentuar à medida que a pós-modernidade se intensifica - que uma prática social, como é a atividade filosófica, procure obter legitimação por meio de sua subordinação a algum tipo de narrativa abrangente - como, por exemplo, aquele suposto diálogo filosófico iniciado na Grécia Antiga e estendido em direção ao oeste. Essa inclusão em um substrato abrangente não é mais uma reivindicação culturalmente pertinente da parte da própria filosofia europeia. Então, porque ela deveria ser importante para nós, filósofos latino-americanos?

Podemos utilizar uma metáfora para expressar essa ideia de outra forma, talvez mais nítida. A situação não é comparável a de um filho (a filosofia latino-americana) que se rebela contra o pai (a filosofia de matriz europeia) e decide se aventurar pelo mundo, buscando realizar algo compatível com seus próprios desejos e de acordo com suas necessidades específicas. Essa seria uma daquelas rebeliões contra o pai que são, por isso mesmo, ainda relativas ao pai. Não se trata de nenhum movimento de emancipação e de independência que venha a atender anseios de libertação por parte do filho.

Ela se assemelha, ao contrário, à derrocada da casa paterna, de tal forma que o filho se veja obrigado a procurar outro ambiente em que possa habitar e, quem sabe, adotar outro estilo de vida fundado em suas próprias necessidades. Nesse caso não há mais um abrigo seguro onde os jovens possam se recolher, na medida em que a pós-modernidade o tem solapado sistematicamente. Por isso, não faz mais sentido a tentativa de se conectar ao mundo europeu, como se isso nos fornecesse algum tipo de direito à filosofia, como se a continuidade de uma tradição fosse algo necessário e que pudesse tornar legítima nossa atividade na América Latina. Embora isso não soe exatamente como resultado de gestos heroicos da parte dos filósofos latino-americanos, essa parece ser uma boa descrição de nossa condição atual dentro do contexto cultural em que nos encontramos. Nós somos os filhos que foram abandonados à própria sorte. Esta situação a que chegamos consiste, portanto, em um resultado do próprio ambiente propiciado pela cultura contemporânea de matriz europeia. A filosofia, sejam quais forem as suas particularidades, não possui mais uma instância de atuação garantida nesse ambiente - algo a que ela deveria se subordinar para tornar-se efetivamente legítima aos olhos de todos. Não há mais uma articulação desejável com elementos universais que venha a tornar essa prática intelectual legítima e justificada. Como não existe mais uma estrutura sólida de significados em cujo interior a atividade filosófica possa se inserir de maneira apropriada, ela encontra-se desprotegida e abandonada a si mesma. De certa forma, isso torna evidente que a filosofia se encontra sempre articulada com o ambiente cultural mais amplo e que seu sentido depende, em último caso, da existência de necessidades externas. Com isso, não pretendo afirmar que a filosofia seja externa à cultura - o que seria um contrassenso. Com esse termo apenas reforço o fato de que o sentido da atividade filosófica depende de diferentes necessidades culturais que se fazem sentir em cada caso. Ela exerce uma função no interior de um sistema de valores que expressa necessidades próprias e que ela vem suprir. Caso a filosofia ignore essas necessidades mais amplas, ela se torna uma atividade culturalmente irrelevante. Afinal, a pós-modernidade não produz um vazio de significados, mas uma necessidade de renovação constante de valores.

Isso certamente contraria certa versão ingênua do trabalho filosófico, segundo a qual ele só deveria prestar contas a si mesmo. Entendo que há um período de ajuste entre a filosofia e a cultura na qual ela se encontra, um processo de articulação sem o qual a filosofia não adquire o espaço necessário para sua plena realização. Sem atentar para essas necessidades do ambiente cultural mais amplo, a filosofia só poderá ser exercida como uma prática sem pertinência - isto é, como erudição e como conhecimento desconectado com relação a seu ambiente. Após esse período de ajuste, acredito que seja verdade que a filosofia adquira uma independência relativa, devendo prestar contas apenas às variantes do debate interno que consegue promover. Porém, é aquela articulação inicial com o restante da cultura que provê o oxigênio necessário para que ela se desenvolva plenamente como uma atividade relativamente independente e relevante.

Retornando ao que nos interessa diretamente aqui, é em função do efeito corrosivo da pós-modernidade que parece não fazer mais sentido a necessidade de se estabelecer uma conexão com aquela narrativa universal relativa a um diálogo transcultural entre as figuras filosóficas. Assim, as práticas filosóficas particulares não necessitam mais mostrarem-se articuladas e subordinadas a valores superiores. Elas não necessitam se qualificar de maneira especial para esse tipo de diálogo. Isto é, elas não precisam se mostrar justificadas ou legitimadas por qualquer tipo de critério especial. De fato, o que a situação pós-moderna promove é uma atividade filosófica articulada com seu ambiente cultural particular imediato, uma vez que se corroeu o extrato geral que sustentava aquela narrativa universal. Isso quer dizer que agora se requer uma filosofia que se ocupe com aquilo que lhe é próximo, sem a necessidade de articular esse conteúdo com algo mais distante e geral e que viesse a lhe proporcionar um sentido superior e definitivo. Porém, essa liberação com relação ao contexto geral é também, como vimos antes, a intensificação de uma atividade voltada para sua própria particularidade. Nesse ambiente, a filosofia latino-americana não pode ser realizada sem que se alterem elementos importantes de seu antigo modo de operar. Ela necessita adaptar seus processos de operação para essas novas necessidades que, agora, passam a se mostrar relevantes.

3. A cultura da filosofia latino-americana

A filosofia tem se movido tradicionalmente no ambiente da universalidade, justamente em função de ter-se colocado como responsável, desde seu início grego, por recompor os elementos culturais fragmentados (Lima Vaz 1981). Isto é, ela foi criada na Grécia Antiga como um dispositivo que visava à unidade da diversidade cultural, justamente porque a pluralidade era sentida, naquela ocasião, como problemática. Lembremo- nos que os filósofos pré-socráticos se ocuparam fundamentalmente com a questão do princípio unificador da multiplicidade natural (Kirk, Raven e Schofield, 2007).

Isto é, o problema a ser resolvido, de acordo com os requerimentos da cultura grega, era o da unificação da diversidade visando converter essa última em um mundo (Koyré 2006). Qualquer tentativa de compreensão adequada desse ambiente original da filosofia ocidental deve partir da noção de cosmos: de um mundo hierarquizado, finito e unificado. Ele constitui um horizonte ao qual a filosofia grega busca articular-se e que lhe serve de modelo de ação. Com efeito, o cosmos apresenta à filosofia uma finalidade que, por sua vez, exige determinados procedimentos intelectuais - todos eles orientados para a promoção da unidade e da síntese, para a articulação de diferentes elementos sob uma mesma ordem, para a sistematização e a produção de uma cosmovisão (Silveira 2020).

A situação pós-moderna converteu essa antiga pretensão filosófica de estabelecer a unidade no seio de uma cultura dispersa em uma orientação supérflua. Isso simplesmente não é mais um requisito cultural ao qual a filosofia deve dedicar-se e a partir da qual ela deve derivar seus procedimentos e estratégias. Assim, são as velhas pretensões históricas da atividade filosófica que agora estão sendo corroídas pelo ambiente cultural mais amplo - aquele que, em último caso, estabelece o que faz e o que não faz sentido para todas as atividades práticas e intelectuais. Esse ambiente tem afirmado a falta de necessidade e até o inconveniente de dispositivos que visam promover uma compreensão universal e unitária de determinado conjunto de elementos.

De uma forma ou de outra, observe que a filosofia tem sido empurrada pela cultura pós-moderna para circunstâncias particulares, para uma situação de fragmentação. Observe, nesse sentido, que a reivindicação pela existência de uma filosofia africana não expressa somente o desejo de obtenção de status intelectual, típicos do ocidente (Appiah 1997). Ela explora uma situação nova e relevante do ponto de vista cultural: as novas necessidades e possibilidades criadas pela fragmentação das narrativas promovida pela pós-modernidade. Também aqui, o essencial não é nos concentrarmos sobre a reivindicação pela valorização de uma forma própria de ser, mas fundamentalmente sobre o resultado da falência dos dispositivos abrangentes europeus que deixa em aberto a possibilidade para a prática de novas modalidades de atividade filosófica.

Assim, podemos compreender que nós, filósofos latino-americanos, estamos sendo empurrados para a América Latina pelas próprias circunstâncias culturais em que vivemos. Isto é, supondo que sejamos ocidentais e europeus - duas teses bastante discutíveis, mas assumidas aqui como elementos daquela versão orgânica que adotei no início - é justamente por isso que não nos cabe alternativa que não seja tornarmo-nos cada vez mais latino-americanos. O trajeto que vai da filosofia sem mais para a filosofia latino-americana não demanda nenhum tipo de compromisso nacionalista, nem qualquer alegação macondista (Volek 2007) acerca de nossas supostas especificidades ontológicas, essências ou naturezas próprias. Podemos, inclusive, compreender que é o declínio das narrativas abrangentes que tem aberto o espaço para as alegações nacionalistas e macondistas. Nesse caso, essas últimas também expressam de uma maneira inapropriada a reivindicação por especificidade tornada possível em função do impacto das novas necessidades culturais pós-modernas.

No mais recôndito universalismo de um filósofo colombiano, por exemplo, repousa a sombra cada vez mais nítida da América Latina. Isso porque todo universalismo tende a desaguar em particularismo se a filosofia seguir o padrão cultural pós-moderno de converter essa última instância em determinante com relação a todo significado relevante. Gostemos ou não da situação pós-moderna, devemos reconhecemos que há um movimento cultural que orienta a atenção da atividade filosófica para seu respectivo entorno cultural - na mesma proporção em que enfraquece o discurso que concerne a uma filosofia sem mais, desvinculada das situações em que se exerce. A questão que, acredito, deveria nos ocupar nessa nova situação é identificar como podemos orientar a atividade filosófica nesse novo ambiente. Ou seja, como exercemos uma prática filosófica cujo objetivo é mostrar-se capaz de estabelecer um diálogo com sua cultura mais imediata?

Já sabemos que não faz sentido adotarmos aquela velha perspectiva que visava, antes de qualquer coisa, promover a subordinação dos elementos fragmentados, submetê-los à ordem, organizar um mundo. Foi essa disposição que nos promoveu - a nós, filósofos - àquela situação especial diante de outras atividades humanas, na medida em que nos reservava condições hierárquicas especiais. Desde Platão e talvez mais claramente desde Aristóteles (1982), a filosofia tem sido encarregada de forjar a cúpula da cultura, de dotá-la de um acabamento unificado e fornecer-lhe um ponto de apoio final sintético e responsável pela integração de seus elementos. Essa função só se tornou mais aguda no interior de ambientes marcados pelo monoteísmo. Disso decorrem todas as necessidades por fundamentação historicamente assumidas como necessárias pela atividade filosófica. Observe, inclusive, que a filosofia até o presente tem suposto que a questão do fundamento seja importante. Ela simplesmente assume tal problema como necessário em função das demandas culturais externas, e não a partir de uma justificação radical própria. Se a filosofia fosse efetivamente independente de quaisquer circunstâncias deveria ter se ocupado com a justificação da questão do fundamento - coisa que jamais tentou realizar.

Ao invés disso, ela se ocupou em como a questão do fundamento tinha que ser conduzida, mas nunca com a própria necessidade dessa estratégia, justamente porque a necessidade do fundamento era o que garantia a necessidade da filosofia. Uma discussão hipotética efetivamente independente do restante da cultura - se isso fosse possível - deveria ter envolvido o debate acerca da própria necessidade da filosofia como uma atividade intelectual autônoma. O fato disso nunca ter sido tentado revela de maneira clara que a filosofia assumiu, desde seu início, como sendo sua a tarefa específica de levar adiante necessidades culturais existentes em seu ambiente.

Observe que a filosofia obteve para si essa função especial de obtenção de legitimação através da fundamentação não porque a impôs a uma cultura que jamais a teria reivindicado por si mesma. Ao contrário, a filosofia assumiu essa missão apenas porque se tratava de uma necessidade solicitada pelo ambiente cultural grego antigo (Silveira 2020). A filosofia veio a ocupar uma função hierárquica e, por consequência adquirir um status intelectual especial, na medida em que se encarregava daquele acabamento unificador requerido pela cultura. Nesse sentido, a filosofia cumpriu com o objetivo cultural que se esperava dela. Por isso, ela tornou-se filosofia primeira, rainha das ciências etc. Ela se tornou aparentemente independente da cultura, justamente porque ressoava aquela requisição cultural por uma unificação definitiva - um fundamento existente em si e por si. É por isso, inclusive, que essa independência é aparente já que, ao adotá-la a filosofia na verdade, atendia a necessidades culturais externas. Ou seja, ao se tornar uma atividade intelectual independente, ela realizava sua plena dependência com relação ao ambiente cultural em que se encontrava. No momento atual, essa necessidade não é mais sentida. Por isso, a atividade filosófica não pode se exercer a partir de um ambiente particular, a América Latina, visando aquele mesmo objetivo tradicional. Isto é, o objetivo da atividade filosófica não se apresenta agora constrangido pela necessidade de promover a nossa condição particular à condição de figura de uma narrativa mais ampla - naquele sentido hegeliano. Adotar a velha postura nessas novas circunstâncias seria deixar-se guiar por velhos hábitos adquiridos no passado e desconectar-se das novas necessidades culturais.

Observe, então, que o empuxo da vida contemporânea não nos remete apenas para uma dimensão particular da cultura. Ele exige uma redefinição do sentido da atividade filosófica a partir dessa nova condição. O problema não consiste apenas em refazer a atividade filosófica de dentro da América Latina - não se trata somente de promover uma filosofia desde nossa América, como se costuma dizer (Cerutti Guldberg 2000). O problema diz respeito ao que fazer a partir desse ambiente, dado que a velha orientação em direção à unificação dos elementos dispersos não possui mais valor. A questão é que a filosofia como tem sido feita até agora perdeu inteiramente sua função cultural.

Acredito que a filosofia latino-americana encontra-se em uma encruzilhada prática. Ela pode tender a preservar os velhos objetivos culturais em uma situação que se mostra claramente incompatível com eles. Nesse sentido, ela se desligaria das demandas culturais e permaneceria estacionada ao longo do caminho, tentando promover um tipo de atividade que se tornou culturalmente desnecessário. Esse desligamento com respeito ao contexto cultural é bastante comum na história da humanidade e os filósofos não seriam os primeiros nem os últimos a se tornarem culturalmente irrelevantes e a optarem pela tentativa de manutenção do status adquirido no passado.

Não creio que adotar esse tipo de postura saudosista faça muito sentido - embora seja compreensível que se proceda dessa forma em função das circunstâncias envolvidas e dos velhos hábitos adquiridos. Ela consiste em acusar a cultura pós-moderna de decadência e, simultaneamente, desejar a recomposição de um mundo que não existe mais, justamente aquele que tornava a atividade filosófica tradicional necessária e digna de reverência. Não creio que esse seja um caminho promissor na medida em que ele tende a definir a atividade filosófica orientando-a contra as tendências existentes no restante da cultura. Esse tipo de disposição ultracombativa parece-me própria de seitas milenaristas, mas não de uma atividade intelectual que se desenvolve sob a forma de um diálogo com outras instâncias culturais. Para quem julga que a filosofia é uma atividade independente que nada deve à cultura, o milenarismo pode parecer uma posição razoável. Como tenho tentado destacar aqui, acredito que a filosofia só se tornou filosofia em função de atender a requisitos culturais específicos e que é um contrassenso dar as costas ao ambiente da pós-modernidade. Isso não significa atuar no sentido de referendar a cultura existente e sim de articular uma prática filosófica que faça sentido para ela. Parece-me especialmente preocupante ter que admitir que a filosofia não esteja preparada para adentrar em um ambiente cultural cada vez mais pluralista. Seria realmente lamentável termos que reconhecer que a atividade filosófica requer como uma de suas condições necessárias uma cultura hierarquizada, a partir da qual ela possa obter um sentido e uma referência que lhe garantam não apenas a exclusividade, mas uma posição especial de autoridade. Requerer esse ambiente para si equivale a defender condições em que podem prevalecer valores de autoridade tradicionais e avessas às condições de uma vida democrática.

Recibido: 18-03-2022

aceptado: 15-11-2022

REFERÊNCIAS

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