Introdução
Apesar da reconhecida importância da prática de Atividade Física (AF) para a saúde da população, nos últimos anos é notável a mudança negativa no estilo de vida de vários grupos etários, incluindo crianças (Griffiths et al., 2013; Bento, Silva, Gonçalves, Santos & Silva, 2016). Ainda nos primeiros anos escolares, ocorre uma redução significativa nos níveis de AF das crianças à medida que a idade aumenta (Jago et al., 2017; Cooper et al., 2015). Concomitantemente a esta redução, o tempo em comportamento sedentário das crianças se eleva (Jago et al., 2017).
Os fatores associados à prática de AF são variados, incluindo principalmente fatores socioeconômicos, demográficos, biológicos e fatores ambientais (Sallis, Prochaska & Taylor, 2000). Dentre esses fatores encontram-se as barreiras para prática, que são conceitualmente definidas como um conjunto de obstáculos pessoais e ambientais que, com base nas percepções individuais, impedem ou prejudicam a aderência à prática de AF (Baranowski & Jago, 2005).
Com o intuito de identificar e tentar contornar ou ao menos amenizar as barreiras para a prática de AF, na última década pesquisadores de diferentes partes do mundo têm realizado estudos (Santos, Hino, Reis & Rodriguez-añez, 2010; Kelishadi et al., 2010; Hammerschmidt, Tackett, Golzynski & Golzynski, 2011; Meyer, Sharkey, Patterson & Dean, 2013; Pawlowski, Thomsen, Schipperijn & Troelsen, 2014) para mensurar as barreiras, em especial durante a idade escolar. Dentre as principais barreiras apontadas pela literatura, encontram-se não ter companhia, ter preguiça, as condições climáticas, falta de local adequado para a prática, falta de tempo e preferir fazer outras coisas como o uso de dispositivos eletrônicos. Assim, estes estudos, fornecem subsídios para que sejam criadas propostas e programas que busquem solucionar estes entraves para a prática e consequentemente ocorra a engajamento de um número maior de pessoas na prática de AF.
Entretanto, em uma busca realizada nas principais bases de dados da área de saúde (PubMed, SciElo e Lilacs), não foram encontrados estudos sobre a frequência das barreiras para prática de AF em crianças no âmbito nacional. Em parte, pode estar relacionado a escassez de estudos de desenvolvimento e validação de instrumentos na faixa etária estudada, sendo que para tal finalidade, foi identificado apenas um instrumento validado (Engers, Bergmann & Silva, 2017).
Tal fato, pode ainda, estar relacionado à complexidade da coleta de dados com indivíduos nesta faixa etária. Sendo que, os estudos desenvolvidos com estes têm optado por coletas por Proxy-report, ou seja, as questões sobre os hábitos de vida da criança são respondidas pelos pais, mães, responsáveis, enfim pessoas do seu convívio diário (McMinn et al., 2009; Checon, Fonseca, Faria, Carletti & Molina, 2011; Kottyan, Kottyan, Edwards & Unaka, 2014).
Contudo, esse procedimento de coleta de dados está sujeito à baixa devolutiva dos questionários enviados para resposta, o que pode levar ao viés de que aqueles que responderam são mais engajados e acabam percebendo menos barreiras (Kottyan et al., 2014). Nesse sentido, torna-se fundamental investigar se existe concordância na percepção de barreiras para a prática de AF de crianças entre pais/responsáveis e as próprias crianças. Assim, o objetivo do presente estudo foi analisar a concordância entre as respostas de crianças de 08 e 09 anos e de seus pais ou responsáveis, por Proxy-report, de um instrumento proposto com esta finalidade sobre barreiras para a prática de AF em crianças.
Metodologia
Trata-se de um estudo de caráter observacional, com delineamento transversal. Para o qual, foram utilizados dados secundários, coletados pelo macroprojeto “Validade e reprodutibilidade de um instrumento para identificar as barreiras para a prática de AF em crianças”. O projeto foi encaminhado para apreciação do Comitê de Ética em Pesquisas da Instituição dos pesquisadores e aprovado sob número de protocolo 1.109.092.
A população foi composta por escolares de 08 a 09 anos do município de Uruguaiana/RS e seus pais ou responsáveis. A faixa de idade foi escolhida considerando que as crianças já estão alfabetizadas, tendo condições de discernimento das opções de respostas do questionário. O tamanho da amostra foi definido pelas “Regras do Polegar” (Hill & Hill, 2002) sendo necessário um número amostral mínimo de 40 casos. Foi acrescentado 10% para suprir possíveis perdas e recusas, chegando a um tamanho amostral de 44 crianças e pais ou responsáveis.
Participaram da primeira aplicação do instrumento (teste) 70 estudantes e seus pais/mães ou responsáveis. Entre as crianças, 42 (60%) eram do sexo feminino, 58 com nove anos de idade (82,9%) e 12 com oito anos (17,1%). Na etapa de reteste, 52 crianças responderam ao instrumento (89,6%).
A amostra foi distribuída entre alunos de 3º e 4º ano do Ensino Fundamental, matriculados em duas escolas públicas da zona urbana do município de Uruguaiana/RS. A seleção das escolas e alunos pertencentes à mesma deu-se por sorteio. Foi feito um mapeamento de todas as escolas da zona urbana do município. As escolas públicas foram agrupadas de acordo com a localização, em dois grupos: centro e periferia. Posteriormente foi sorteada uma escola pública da região central e outra de uma região periférica. A razão para esta forma de seleção das escolas se justifica pela tentativa de incluir no estudo alunos oriundos das mais variadas regiões da cidade, apresentando pluralidade de sexo e condições socioeconômicas. Foram selecionadas duas turmas por escola, uma de 3º e a outra de 4º ano, com o intuito de contemplar todas as idades da faixa etária estudada. Todos os sorteios foram realizados no programa Microsoft Excel, a partir da enumeração dos itens (escolas e turmas) a serem sorteados, sendo então utilizada a função “número aleatório”.
Para identificar as barreiras para prática de AF em crianças foi utilizado um instrumento validado por Proxy-report para tal finalidade (Engers et al., 2017). O instrumento é composto por 24 questões com três opções de resposta em escala ordinal: 0= nunca; 1= às vezes e 2= sempre. Para identificar as barreiras na percepção dos pais, o instrumento foi mantido em sua integridade, já que o mesmo foi validado por Proxy-report, ou seja, a forma de escrita das questões está voltada para os pais responderem sobre seus filhos. Já para investigar a percepção das crianças o instrumento sofreu algumas adaptações na forma de escrita, voltando às perguntas para os próprios indivíduos que estão respondendo ao questionário.
O instrumento foi respondido pelas crianças e pelos seus pais ou responsáveis em teste, verificando-se a concordância das respostas, de forma que, após a entrega do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) para todos os escolares de 08 a 09 anos integrantes das turmas selecionadas por escola, foi também entregue o questionário que deveria ser levado para casa e respondido pelos pais/mães ou responsáveis. No dia seguinte, aqueles que retornaram com o TCLE assinado em mãos, autorizando a sua participação no estudo e o questionário respondido pelo responsável, responderam ao mesmo questionário. A aplicação do questionário com as crianças foi conduzida na sala de aula, para o qual, a pesquisadora lia a questão para certificar-se do entendimento da mesma, sem gerar qualquer tipo de influência nas respostas. Após uma semana de intervalo as mesmas crianças foram convidadas a responder o instrumento em reteste, verificando-se a reprodutibilidade das questões.
O banco de dados foi construído no software EpiData 3.1 e os dados duplamente digitados para a verificação de consistência. A análise estatística foi conduzida no software SPSS for Windows versão 20.0. As análises de concordância e reprodutibilidade foram realizadas através do índice Kappa, sendo considerados valores mínimos de 0,4 (agregamento relativo) para concordância (Landis & Koch, 1977). Em todas as análises foi adotado um nível de significância de 5%.
Resultados
Na análise de concordância entre as respostas das crianças e dos seus pais ou responsáveis sobre as barreiras para AF das crianças, nenhuma das 24 questões obteve valores mínimos de concordância (Kappa mínimo de 0,4). Os valores variaram entre -0,16 para a barreira “O medo de se machucar dificulta a prática de AF” e 0,32 para barreira “A presença de lixo e poluição nos locais de prática dificulta para fazer AF” (Tabela 1).
Quanto à reprodutibilidade das respostas das crianças, 11 questões apresentaram concordância acima de 0,4 entre as duas aplicações do questionário (teste e reteste). A questão referente à “Preguiça de praticar AF” obteve o maior valor de reprodutibilidade (0,68). A questão “A falta de locais para praticar AF (como por exemplo, parques, praças, áreas cercadas ou de grama) perto de casa dificulta a prática” foi a que apresentou menor valor (0,10). Dessas 11 questões com valores mínimos de concordância, nove apresentaram reprodutibilidade classificada como moderada (0,40-0,59) e duas como ótima (≥0,60).
Em relação à frequência de resposta sobre as barreiras para prática de AF em crianças, a Tabela 2 apresenta os resultados da percepção dos pais ou responsáveis e das crianças, de forma que, foi realizado um agrupamento de respostas “às vezes” e “sempre” a fim de representar aquelas barreiras mais percebidas. Sendo que, entre as crianças as barreiras mais reportadas foram “a falta de manutenção dos locais de prática dificulta para fazer AF” (82%), seguida por “a presença de lixo e poluição nos locais de prática dificulta para fazer AF” (77,6%) e “não ter alguém para levar para praticar AF devido aos compromissos dos pais e familiares dificulta a prática” (77,6%). Já os pais, referem “a falta de segurança dos locais de prática dificulta fazer AF” (90%) e “a ausência ou as más condições das calçadas dificultam a prática de AF” (90%) como principais barreiras, seguida de “a falta de iluminação pública das ruas, parques e praças dificulta a prática de AF” (88,6%).
Discussão
O principal achado do presente estudo foi identificar que o instrumento utilizado para medida de barreiras para a AF em crianças por Proxy-report (respondido por pais ou outro responsável) não apresenta concordância com as respostas informadas pelas crianças. Visto que o instrumento foi proposto e obteve validade e fidedignidade para coleta de dados por Proxy-report (Engers et al., 2017), podemos considerar que este procedimento se configura como uma forma mais confiável para a coleta de dados sobre barreiras para a AF de crianças do que a coleta diretamente com as mesmas. A coleta de dados por Proxy-report tem sido a estratégia utilizada em alguns estudos sobre a AF de crianças (McMinn et al., 2009; Checon et al., 2011; Kottyan et al., 2014), devido principalmente a complexidade da coleta de dados com indivíduos nesta faixa etária.
Os resultados encontrados contribuem com o corpo teórico desta área de investigação configurando-se, no que se refere ao nosso conhecimento, como o primeiro estudo a analisar a concordância na identificação de barreiras para a prática de AF de crianças entre a percepção de pais ou responsáveis e a percepção das próprias crianças. No entanto, devido à escassez de estudos sobre a temática, a comparação dos resultados fica limitada. Além disto, esta falta de estudos dificulta também a discussão sobre as possíveis razões para pais ou responsáveis e crianças não perceberem da mesma forma quais são as principais barreiras para a prática de AF das crianças.
Diferente do observado no presente estudo, no estudo de Meyer et al. (2013) não são identificadas discrepâncias nas percepções de barreiras pelas crianças e pelos adultos, sendo que, as crianças e os responsáveis citam a presença de cães na rua e as condições climáticas como principais empecilhos para prática. Não obstante, Kelishadi et al. (2010) mencionam em seu estudo que tanto as crianças, quanto os pais percebem a falta de local seguro e de fácil acesso para atividades físicas como principal barreira.
O estudo de Kelishadi et al. (2010) foi desenvolvido com objetivo similar, mas com procedimentos diferentes aos do presente estudo. Os autores realizaram discussões em grupos focais e entrevistas para identificar a percepção de alunos de oito a 18 anos de idade, pais e funcionários de uma escola sobre as barreiras para um estilo de vida ativo dos escolares. Alunos e pais relataram a falta de local seguro e de fácil acesso para AF como uma das duas principais barreiras para a prática de AF dos escolares. No entanto, a segunda diferiu entre os pais e os filhos, sugerindo concordância parcial entre as barreiras percebidas para a prática de AF entre eles. Possivelmente devido à amostra do estudo ter sido composta por crianças com idades mais avançadas e adolescentes os autores tenham encontrado certa concordância entre as percepções de pais e filhos (Kelishadi et al., 2010). Outro aspecto, que pode ter influenciado na diferença entre os resultados de concordância encontrados pelo presente estudo e no estudo de Kelishadi et al. (2010), refere-se os métodos utilizados para recolha dos dados, visto que, o estudo referido utilizou-se de entrevistas e grupos focais.
Ainda, em se tratando de procedimentos de coleta de dados, em medidas de nível de AF alguns estudos (Burdette, Whitaker & Daniels, 2004; Okely, Trost, Steele, Cliff & Mickle, 2009) apresentam análise de indicadores de validade concorrente baseada no relato dos pais em comparação às medidas obtidas pelo uso de sensores de movimento pelos filhos evidenciando que a medida baseada no relato dos pais é válida e pode ser empregada em estudos populacionais e com menor custo. De acordo com Pate, O’Neill & Mitchell (2010), a utilização de instrumentos baseados no relato dos pais como estratégia para obter medidas de AF são importantes, em especial nas situações em que medida direta não pode ser adotada, como nos estudos epidemiológicos e nos países em desenvolvimento, como o Brasil, onde o orçamento para pesquisa é limitado.
Ao observar a reprodutibilidade, cabe elucidar o estudo de validação (Hinnig, Prado & Latorre, 2018) de um Questionário de Frequência Alimentar Quantitativo (QUEFAC), visando avaliar a dieta habitual de crianças de 7 a 10 anos, a partir das respostas das próprias crianças, conclui que o QUEFAC não se mostrou válido e apresentou moderada reprodutibilidade para alguns nutrientes. Apesar de a presente pesquisa ter encontrado 11 barreiras com valores adequados de reprodutibilidade nas respostas das crianças, é importante considerar que a consistência de medidas em teste e reteste não asseguram a validade do instrumento, mas constitui uma característica psicométrica importante no processo de desenvolvimento de um instrumento de medida. Assim, é importante que novos estudos sejam realizados a fim de investigar a concordância de respostas das crianças e respostas de pais ou responsáveis a questionários, visando a coleta mais fidedigna possível de dados sobre o estilo de vida de crianças.
Conclusão
Conclui-se que não houve concordância nas respostas de pais e filhos sobre as barreiras para prática de atividade física das crianças. De modo que, é possível inferir que o instrumento para verificar barreiras para prática de AF em crianças utilizado no presente estudo e que foi validado anteriormente por Proxy-report é mais fidedigno para investigação das mesmas, reforçando a eficácia de dados coletados com pessoas do convívio da criança sobre hábitos e estilo de vida. Cabe salientar a importância da utilização de instrumentos validados para a finalidade da pesquisa, considerando a faixa etária a ser estudada. Em se tratando de barreiras para prática de AF, essas pesquisas irão aumentar as evidências sobre o tema e, consequentemente fornecer subsídios para que propostas de promoção da AF sejam estruturadas e ofertadas a população de forma eficiente.