A compilação de estudos acerca de uma temática visa tornar acessível aos leitores as diferentes questões norteadoras levantadas pelos investigadores na construção de seus campos empíricos, tais como áreas temáticas problematizadas, dinâmicas interacionais com interlocutores ou caminhos metodológicos desenvolvidos. O objetivo do texto é fazer um balanço das produções acadêmicas (monografias) sobre o sufismo entre Argentina e Brasil, bem como analisar os processos de desenvolvimento que permitiram a construção preliminar desse campo de estudo na Antropologia Social nos últimos 30 anos, em ambos os países. Para além da elaboração de questões norteadoras, argumentos e conclusões presentes nestes estudos, o fazer etnográfico engendraria as opções interpretativas realizadas por seus autores. Tais recursos, encarados muitas vezes como verdadeiras sínteses de “excelência acadêmica”, permitiriam colocar as reflexões analíticas promovidas pelos investigadores como um símbolo da experiência etnográfica do “estar lá e estar aqui” (Geertz, 2002) ou, mais comumente, do trabalho de campo como um “rito de passagem” vivenciado pelos antropólogos (DaMatta, 1978).
O sufismo (tasawwuf), dentro da tradição religiosa do Islã, define-se como a busca de uma experiência direta com Allah [Deus] (Trimingham, 1971). Dentre suas atribuições e práticas reconhecidas historicamente, ele engloba o resultado da mobilização de ferramentas conceituais e técnicas corporais adquiridas por meio de um processo de iniciação, no qual se compreende o compartilhamento de ensinamentos morais e exercícios físicos de quem o adere. Considerado pelos investigadores das décadas de 1950 e 1960 do século XX como uma forma de “Islã popular” destinada a desaparecer diante do avanço da modernização ou de formas literalistas nas sociedades muçulmanas, a vertente mística do Islã mostrou-se capaz de se reformar, assim como de adaptar-se com grande êxito às possibilidades culturais e sociais abertas pela modernidade e pelos processos de globalização da “pós-modernidade”. Tal situação tem sido cada vez mais o objeto de estudos acadêmicos que demonstraram sua presença e importância na constituição de diferentes formas contemporâneas de religiosidade muçulmana (Abenante y Vicini, 2017; Rytter, 2014).
A presença do Islã na América do Sul é relativamente recente, data da chegada dos primeiros imigrantes na região no final do século XIX e início do século XX. Esses muçulmanos, em sua maioria, vieram de países árabes, como Síria e Líbano, até então províncias do Império Otomano. A maioria deles estabeleceu-se na Argentina, Brasil, Colômbia e Venezuela (Montenegro, 2019; Pinto, 2022). Distintas tradições religiosas seguiram os fluxos de migração voltados para a América do Sul a partir do século XX, em particular para a Argentina e o Brasil. Esses imigrantes formaram comunidades e construíram mesquitas, onde puderam praticar sua religiosidade e transmitir suas formas devocionais a outros interessados nas doutrinas e práticas (Montenegro, 2022).
A comparação proposta visa problematizar os principais temas de pesquisa e os debates teórico-metodológicos a partir do levantamento das únicas três (3) monografias disponíveis nos repositórios institucionais de universidades (Argentina) e no banco da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - Brasil) para compor o quadro de diversidade de experiências empíricas (no total de seis) nas seguintes regiões: Buenos Aires, Patagônia e Santa Fé (Argentina) e Distrito Federal, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul (Brasil). Essas escolhas refletem as formações discursivas e os aspectos rituais disponibilizados e mobilizados pelas comunidades sufis dos dois países como o resultado de processos migratórios e de dinâmicas religiosas locais (Montenegro, 2015; Pinto, 2013).
O balanço bibliográfico abarca três monografias na área de Antropologia sobre a temática do sufismo argentino (Kerman, 2007; Langner, 2019; Pilgrim, 2018) e três brasileiras (Diaz, 2017a; Oliveira, 1991; Tosta, 2000), produzidas nos últimos 30 anos. Para além destas, optei pela inclusão de artigos produzidos por investigadores argentinos publicados em periódicos acadêmicos e de monografias em áreas afins (Ciências da Religião, Ciências Sociais, Estudos étnicos e africanos, Geografia e Letras) por parte de investigadores brasileiros como forma de complementar o conjunto analítico proposto. Tal proposição não diminui a importância das monografias selecionadas da área antropológica, uma vez que a condição da “descrição densa” (Geertz, 1978) contidas nelas asseguraria o fluxo de informações e interpretações passíveis de serem reunidas e agrupadas por meio da perspectiva comparada.
O balanço sintético das seis obras pode ser resumido da seguinte forma: o pioneirismo de Oliveira (1991) inaugura um ponto aos estudos sobre o sufismo entre os dois países. Seria preciso esperar nove anos no Brasil (Tosta, 2000) e dezesseis anos na Argentina (Kerman, 2007) para que a segunda geração de trabalhos etnográficos fosse estabelecida. Por fim, foi somente no final da primeira década do século XXI que os estudos sobre as experiências sufis encontraram um momento de expansão (Diaz, 2017a; Langner, 2019; Pilgrim, 2018).
Destaca-se que as análises dos diversos autores refletem a complexidade das formas de adesão e práticas devocionais que evidenciam os fluxos de criatividade nas relações constituídas entre seus praticantes. O contraste dessas comunidades apresentado na produção bibliográfica permite repensar as dinâmicas locais a partir de seus arranjos específicos, já que as diferenças culturais dentro do mundo muçulmano produzem uma enorme variedade de formas de definir, praticar e vivenciar o Islã. Esses processos de renovação e expansão não são uniformes nem unidirecionais, já que coexistem com processos de declínio e desaparecimento de várias formas de religiosidade sufi, produzindo configurações específicas de ruptura, continuidade e transformação em cada contexto social e cultural.
O artigo está dividido em duas seções. Na primeira, procuro apresentar as singularidades das pesquisas sobre o sufismo argentino e brasileiro com base nas monografias elaboradas e nos demais trabalhos auxiliares disponíveis (artigos em periódicos ou monografias de outras áreas temáticas). Na segunda, busco esboçar as linhas gerais do exercício comparativo a fim de repensar alguns princípios operantes nos contextos destacados. A diversidade do sufismo apresentada pelos trabalhos analisados reflete a multiplicidade de discursos e práticas existentes entre os grupos sufis investigados. Isso significa considerar os desafios impostos para se compreender as conjunturas socioculturais da Argentina e do Brasil por meio dos esforços interacionais dos investigadores na construção de suas pesquisas. Sobre isso, cabe destacar que as monografias de ambos os países (Diaz, 2017a; Kerman, 2007; Langner, 2019; Oliveira, 1991; Pilgrim, 2018; Tosta, 2000) buscaram complexificar os padrões, fluxos, incoerências e, também, as contradições presentes nas trajetórias dos interlocutores citados pelos investigadores, tais como o ajustamento das formas simbólicas nos rituais, a administração dos conflitos entre membros e/ou a produção reflexiva dos modos devocionais socializados nas comunidades. Essa opção pela construção do religious everyday life (Schielke y Debevec, 2012: 8) ou redescobrimento pelo everyday Muslim (Fadil; Fernando, 2015a: 72) traz nuanças significativas quanto aos modos de se encarar o Islã a partir de uma dimensão heterogênea mesmo que haja tensões quanto ao enquadramento dos dados empíricos (Deeb, 2015; Fadil y Fernando, 2015b; Schielke, 2015).
Argentina
Os trabalhos consultados possibilitam demonstrar dois eixos de organização do sufismo experienciado na Argentina. De um lado, nota-se as produções acerca da presença dos imigrantes africanos e sua diáspora na América do Sul (Capovilla, 2022; Kleidermacher, 2013, 2018; Tedesco y Kleidermacher, 2017; Zubrzycki, 2011). Do outro, destaca-se as inserções dos grupos e redes de indivíduos pertencentes às experiências sufis e/ou New Age (Kerman, 2007; Langner, 2019; Salinas, 2012, 2015; Pilgrim, 2018). A diversidade de temas se expressa, por exemplo, pela importância dada a religião islâmica na recolocação do sagrado pelas comunidades (Muridiyya) diaspóricas (Capovilla, 2022) como um fator presente nas relações de trabalho desenvolvidos por imigrantes africanos (Kleidermacher, 2013, 2016, 2018; Zubrzycki, 2011) e na configuração de identidades (Naqshbandiyya) transnacionais entre os convertidos (Salinas, 2012, 2015).
Para o caso das monografias argentinas analisadas, a configuração do sufismo no país estabeleceu dinâmicas relevantes no tocante a caraterização das práticas existentes em termos de uma tradição (Asad, 1986), ou seja, entre heterodoxias (Kerman, 2007; Langner, 2019) e ortodoxias (Pilgrim, 2018). Por exemplo, Kerman (2007: 18) se debruçou sobre as dimensões ideológicas e/ou simbólicas que integravam as práticas rituais sufis, assim como procurou contextualizar a produção cultural local dentro do marco da categoria “Novos Movimentos Religiosos” (NMR). Já Langner (2019: 3) buscou repensar algumas práticas a partir da categoria “espiritualidade”, evidenciando o tipo de Islã vivenciado na Argentina em oposição ao predomínio do catolicismo na diversidade religiosa do país. Pilgrim (2018), por outro lado, analisou o estabelecimento da confraria Naqshbandiyya no contexto da Patagônia a partir da observação dos processos de conversão e de reordenamento do próprio universo simbólico comunitário visando delimitar quais valores, práticas e crenças persistiram em oposição aquelas adotadas localmente.
Buenos Aires e Patagonia
A etnografia proposta por Kerman (2007) explorou a construção dos sujeitos a fim de compreender como a noção de ascetismo sufi era promovida por um grupo na cidade de Buenos Aires, utilizando-se das chaves analíticas das tecnologias do self (Foucault, 1988) e do habitus (Bourdieu, 1977). O esquema pormenorizado combinou as categorias usadas localmente com as representações simbólicas das práticas devocionais, tendo como alvo principal os seus efeitos nos corpos dos participantes. O modelo de “espiritualidade” (2007: 13) apresentado no trabalho focou os sentidos dados pelos membros às práticas cotidianas, bem como as definições mobilizadas pelos interlocutores que exprimiam o processo de construção do ser sufi localmente. Por fim, a autora dinamizou a trajetória dos membros durante o tempo de permanência deles na comunidade a partir dos momentos de “busca espiritual” (2007: 65) e de “crise existencial”, ou seja, de vida (2007: 68). Esse cenário de “hibridismo doutrinal” (Kerman, 2007: 69) apontou o optimum de diversidade dos participantes oriundos predominantemente de setores da classe média e com histórico familiar ligado ao catolicismo, porém sem quaisquer vinculações religiosas no âmbito de seus regimes institucionais.
A metodologia consistiu em mapear os eventos criados pelos indivíduos e as ações de instituições presentes nas redes de contatos dos membros, além da observação de cursos organizados esporadicamente, especialmente os de idiomas. Cabe ressaltar que um elemento se destacou para a consolidação do momento de “entrada” no trabalho de campo da etnógrafa: a sua participação em performances autointituladas “Danças Circulares”. Esse tipo de sociação de experiências tem como objetivo o incentivo de ideias de empatia, pertencimento e interação social, muitas vezes associados ao estilo New Age. Além disso, informações extraídas de sites eletrônicos e materiais de divulgação online (internet) do grupo compuseram boa parte da etnografia a fim de compreender as formas de produção e circulação de informações entre os membros.
Já o trabalho de Pilgrim (2018) seguiu os caminhos trilhados por Wright e Cernadas (2007) sobre a importância dos conhecimentos religiosos que circulam fora das instituições como um modo de compreender a diversidade das formas de socialização e de experiências devocionais no país. A autora centrou-se na produção da vida cotidiana de uma comunidade sufi da confraria (tariqa) Naqshbandi localizada na Patagônia argentina para verificar os efeitos da dimensão religiosa e os modos de subjetivação local num mundo cada vez mais globalizado (Bizerril, 2013). O ponto fulcral do trabalho foram os processos de autoridade vividos cotidianamente pelos membros da confraria, uma vez que o ingresso dos sujeitos na comunidade significava a adoção de um mestre (shaykh) responsável pela imposição de novos modos de viver (aspectos da vida doméstica e social), a reconsideração de valores morais, a incorporação de crenças referentes aos estados místicos (maqams) segundo as tradições da tariqa e uma consequente e progressiva transformação da imagem pública dos sujeitos.
O caminho metodológico do trabalho adotado pela autora centrou-se nas trajetórias das mulheres com o intuito de observar a “mudança de mundos” implicada pela conversão (Berger y Luckman, 1985), opondo-se a tese de que nem sempre esse processo seria acompanhado dos êxtases religiosos como forma de assentar o novo modo de vida devocional. A conexão transnacional entre a Patagônia e a Europa (mais especificamente a cidade de Berlim/Alemanha) sinalizou a existência de novas fronteiras simbólicas por parte dos membros da Naqshbandiyya, o que permitia expandir a compreensão da temática da conversão como algo muito além de uma mera ruptura na vida dos indivíduos. Esse conjunto de narrativas voltado à adesão de uma nova religião permitiu a autora identificar as diferenciações das tradições islâmicas mobilizadas pelos Naqshbandis em contraposição às formas mais “ortodoxas” do Islã existentes em mesquitas, associações ou instituições muçulmanas argentinas, ligadas geralmente a salafiyya.
Por último, Langner (2019) descreveu a combinação dos usos de exercícios físicos e de rituais sufis promovidos por uma rede de indivíduos associados em Buenos Aires como parte de um contexto de “ressacralização” do mundo contemporâneo (Geaves; Dreßler y Klinkhammer, 2013; Heelas, 2009). A partir desses dados, a autora assumiu a tese de que o sufismo não se consistiu como um produto da imigração muçulmana argentina. Para ela, o sufismo argentino surgiu da diversificação do campo religioso no contexto das práticas espirituais/alternativas relacionadas à categoria “Nova Era” (Geaves; Dreßler y Klinkhammer, 2013). Com base nessa linha de argumentação, o trabalho focou no modo como os participantes dos diferentes espaços e práticas sufis construíam suas adesões ao Islã e como experienciavam seus pertencimentos religiosos. Isso implicou tanto em enquadrar os elementos assumidos pelo sufismo em relação ao campo religioso argentino quanto em observar os fluxos e atravessamentos no âmbito das formas “ortodoxas” (salafiyya) do Islã e/ou das práticas associadas à Nova Era.
Os passos metodológicos da etnografia contemplaram os encontros intersubjetivos cotidianos dos interlocutores. Isso exigiu que a pesquisadora se envolvesse em diferentes níveis de participação nos grupos selecionados (sufis e/ou New Age). Em algumas ocasiões, a autora narrou, por exemplo, a sua participação nas práticas devocionais fosse pelo seu uso do véu fosse por sua inserção nos momentos de reza e de dinâmica ritual, tais como as invocações dos nomes e da presença de Deus (dhikrs). O trabalho de campo também se estendeu a outros espaços islâmicos existentes em Buenos Aires, como o CIRA e o “Centro Cultural Islámico Custodio de las Dos Sagradas Mezquitas Rey Fahd”. Neste sentido, cabe salientar que este trabalho etnográfico não se baseia apenas na elaboração do trabalho de campo com um único grupo, mas sim na opção de acompanhar os diversos sujeitos contactados por meio de suas diferentes práticas.
Brasil
A presença do sufismo nos trabalhos brasileiros repetiu os dois eixos estruturantes vistos anteriormente. Os trabalhos consultados apresentam ora dados sobre as comunidades sufis de imigrantes africanos, com destaque para a região Sul (Diaz, 2017a; 2017b; Gonçalves, 2020; Lombardi, 2020; Rossa, 2018; Santos, 2021), ora informações sobre os grupos convertidos ao sufismo ou associados ao estilo New Age, com destaque para a região Sudeste do país (Filho, 2012; Oliveira, 1991; Tosta, 2000). As problemáticas desenvolvidas pelos investigadores apontam para quatro linhas de investigação: as interações das confrarias africanas (Muridiyya) constituídas no país, mas com conexões com os espaços considerados sagrados na África (Diaz, 2017a); o papel da internet na criação de estratégias de difusão transnacional da Muridiyya (Diaz, 2017b; Rossa, 2018); a diversidade devocional entre as comunidades urbanas (Shadhiliyya, Maryamiyya, Khalwatiyya, Tijaniyya e Naqshbandiyya) situadas na metrópole paulistana (Filho, 2012) e; a organização de espaços de memória coletiva e de identidade (Muridiyya e Tijaniyya) da diáspora senegalesa (Gonçalves, 2020; Lombardi, 2020; Santos, 2021).
As três monografias analisadas (Diaz, 2017a; Oliveira, 1991; Tosta, 2000) destacaram as conexões transnacionais como fundamentais para a manutenção da dinâmica dos imaginários religiosos e das práticas devocionais locais. Oliveira (1991: 69) destacou o uso da produção literária entre os membros sufis na construção de uma ética religiosa baseada na categoria “Nova Consciência Religiosa”. Tal produção permitia que os integrantes adotassem uma percepção específica sobre os temas relevantes para os grupos, tais como o papel das virtudes, das disciplinas e das formas do self exigidas a fim de condicionar os sujeitos às experiências sufis. Tosta (2000) optou por definir o sufismo a partir da análise discursiva dos membros do grupo analisado, cujas posições hierárquicas assumiam a função de transmissores da tradição sobre os ensinamentos compartilhados. Para promover a interiorização desses saberes, os discursos eram feitos tendo como referência os vocabulários técnicos da religião islâmica ou exemplos advindos de disciplinas como a filosofia, além do uso de analogias baseadas em noções gerais da gramática científica moderna. Diaz (2017a) indagou as dinâmicas de difusão da confraria africana Muridiyya com foco nas estratégias de produção, circulação e consumo de saberes por meio das tecnologias de informação e comunicação. O reconhecimento da diversidade de crenças religiosas e do sistema inovador de práticas devocionais formaram um conjunto de trocas estabelecidas pelo movimento diaspórico sufi.
Rio de Janeiro, Brasília e Caxias do Sul
O trabalho etnográfico pioneiro de Oliveira (1991: 1) versou sobre a busca por autoconhecimento por parte de um grupo autodenominado “‘grupo de estudos sufi’, ‘grupo sufi’ ou ‘Tradição’”, na cidade do Rio de Janeiro. A autora enfatizou as leituras valorizadas pelos participantes - basicamente as obras de George Gurdjieff e Idries Shah, que redefiniu o tipo de sufismo praticado sem a exigência de se usar o rótulo “muçulmano” como parte de uma identidade religiosa essencializadora das experiências. Um ponto sensível nas descrições e análise do trabalho é justamente a possibilidade do exercício de práticas devocionais sufis sem a necessidade de conversão dos integrantes. Entretanto, isso não significou que processos de autoridade vividos de forma cotidiana estivessem ausentes, pois o conjunto dessas leituras se desenvolviam “segundo as instruções e a guia do Mestre [no caso, Omar Ali Shah, irmão de Idries Shah e intérprete dos conteúdos textuais da comunidade investigada] que seguem” (1991: 9).
A metodologia consistiu em qualificar o panorama literário mobilizado nos encontros do grupo a partir das metáforas criativas compartilhadas em torno do eixo das capacidades intelectuais e emocionais dos participantes visando exemplificar os processos de aprendizagem do outro e de autoconhecimento diante do mundo. Boa parte do caráter reflexivo recorreu a linguagem científica como forma de expressar e legitimar os aspectos esotéricos na maioria das experiências difundidas pelos membros. Os discursos forjados em torno da “estabilização da consciência, sabedoria, perfeição” (1991: 56) e da “situação de aprendizado” (1991: 57) formaram o mote da constituição de um espaço de convivência exclusivo em relação aos frequentadores - “os de dentro”, como era o caso da autora - porém, excludente aos não-iniciados - “os de fora”, como o caso de investigadores que almejaram estabelecer contatos com o grupo.
Já o trabalho de Tosta (2000) repensou a incomensurabilidade da ideia de transcendência na ciência antropológica. A opção por problematizar a clássica dicotomia sagrado/profano visou expandir essa temática para outros termos, à luz do diálogo com a perspectiva epistemológica sufi fundamentada na observação das tradições de um grupo sufi na cidade de Toronto (Canadá), com ramificações em Brasília (Distrito Federal, Brasil). A imagem do sufi (2000: 41) como um “viajante (salik) que avança por estágios (maqamat) através de um caminho (tariqat) até seu objetivo de união com a Realidade (fana fi ‘l-Haqq)” indicaria as possibilidades aos interlocutores na busca por novos conhecimentos durante a organização de suas experiências. Neste interim, é destacado o papel do mestre (shaykh) na transmissão dos ensinamentos, sobretudo, do princípio de Unicidade Divina (Tawhid), bem como da garantia de que a finalidade deles pudesse contribuir para a transposição da dualidade self/universo, isto é, centrado no paradigma epistemológico “ocidental” sujeito/objeto. Para tal, categorias (2000: 42) como “1) arrependimento, 2) abstinência, 3) renúncia, 4) pobreza, 5) paciência, 6) confiança total em Deus e 7) satisfação” foram mobilizadas pelos adeptos sufis como verdadeiras diretrizes para medir o caminho ou a progressão sufi.
A autora tomou a diferenciação dos múltiplos discursos, práticas, conjunturas sociais e históricas como um caminho metodológico, além das trajetórias individuais de seus participantes como forma de radicalizar as atitudes relativistas e reflexivas comumente presente na Antropologia após sua “virada pós-moderna”. O desejo por repensar o conceito de tradição pela autora, justificou um “mergulho” na epistemologia mobilizada pelo grupo “a partir da oposição conhecimento moderno/secular/relativista e tradicional/sagrado/fundamentalista” (2000: 76). A não separação entre os conhecimentos exotéricos e esotéricos, segundo a lógica dos discursos sufis analisados, procurou combinar as ideias e práticas devocionais observadas visando provocar uma “dessacralização do conhecimento”, isto é, tanto em referências diretas a produção acadêmica “ocidental” quanto ao posicionamento da própria pesquisadora a partir de suas dificuldades iniciais de inserção nas reuniões do grupo. No final das contas, o projeto de uma Antropologia da Antropologia (Rabinow, 1996) permearia um dos objetivos da autora no trabalho. As simetrias entre a linguagem empregada para definir a noção de desvelamento científico e transcendência sufi, tendo como sustentação os condicionamentos impostos ao self - análoga à linguagem disponível entre os sufis -, produziria uma racionalidade horizontal.
Por fim, a etnografia de Diaz (2017a) evidenciou a pluralidade das práticas devocionais sufis e a heterogeneidade interna da confraria Muridiyya, na cidade de Caxias do Sul (Rio Grande do Sul). O cenário religioso descrito e analisado contrastou com as condições de vulnerabilidade, segregação social e regimes laborais vivenciadas pelos imigrantes senegaleses no Brasil. Cabe apontar que, a partir de 2009, é notório um intenso fluxo diaspórico dirigido para as regiões Sul e Sudeste do Brasil documentada por investigadores de diversas áreas temáticas (Lemos y Pereira, 2018; Herédia, 2015; Santos y Brum-de-Paula, 2020; Tedesco y Grzybovski, 2011, 2013; Tedesco y Kleidermacher, 2017; Uebel, 2016; Wenczenovicz, 2016). Ciente deste panorama, a autora determinou os fluxos da dinâmica transnacional entre os dois países por meio da observação das iconografias religiosas criadas e difundidas via internet em redes sociais (Facebook, Whatsapp e Youtube) a fim de repensar os processos de diferenciação cultural em contextos de globalização (Appadurai, 1996; Hannerz, 1996), mas também em espaços criativos de encontro (Bhabha, 1998). Uma das perspectivas elaboradas no trabalho privilegiou o papel da imaginação como um mecanismo responsável pela reconstrução das identidades dos discípulos durante os períodos de deslocamentos ou movimentos de desterritorialização. Isso significou repensar as possibilidades de vida devocional dos sufis não mais ancoradas em um território circunscrito, mas interconectado com formas variáveis de pessoas e lugares.
Os passos metodológicos da autora contemplaram a realização de uma etnografia multissituada (Hannerz, 2003; Marcus, 1995), isto é, que procurou dar conta da dispersão dos locais de observação entre as cidades de Touba (Senegal) e Caxias do Sul (Brasil). A entrada da pesquisadora nas dahiras (associações religiosas dos discípulos da Muridiyya) foi fundamental para a compreensão da presença dos senegaleses no Brasil, visto que elas funcionavam “como centros organizativos da mobilização social para o reconhecimento dos direitos dos migrantes” (Diaz, 2017a: 14). Mais do que isso, a Associação dos Senegaleses de Caxias do Sul (ligada à dahira da mesma cidade) destacava-se na mídia local e nacional por sua intensa mobilização em defesa dos direitos dos imigrantes, fato que contribuiu bastante para a diversificação dos interlocutores selecionados. No fim, os campos concretos de sociabilidades existentes entre os discípulos garantiram as análises sobre os processos dos sujeitos que se engajavam e construíam formas de estar e agir no mundo (Fischer, 2009).
O conjunto teórico-metodológico das monografias apresentado até aqui não pretendeu dar conta da totalidade das questões, temáticas e/ou problemáticas do fazer etnográfico, nem das complexidades da escrita etnográfica desenvolvidas pelos autores contemplados. A exposição das linhas gerais desses trabalhos de campo visou demonstrar a produção da alteridade de maneira relacional e situada nos contextos indicados. Neste sentido, um olhar sobre as múltiplas presenças e distintos modos de experienciar o sufismo na Argentina e no Brasil propiciaram delimitar alguns princípios sobre a ação dos sujeitos (agência) que formam as comunidades sufis. Mesmo que seja impossível distinguir claramente a ação intencional da não intencional, considero fundamental explorar determinados temas centrais com relação às dimensões devocionais que permitem a construção do religious everyday life (Schielke y Debevec, 2012: 8) ou redescobrimento pelo everyday Muslim (Fadil y Fernando, 2015a:72). É sobre isso que trato na próxima seção.
Comparando as teorias vividas
Os debates históricos e contemporâneos sobre a comparação na Antropologia mostraram que o principal desafio residiu na multiplicidade de objetivos, muitas vezes, contraditórios que a sustentavam (Gaztañaga y Koberwein, 2021). Como não pretendo insistir numa comparação em termos de tipos ideais e/ou de modelos de sociedade, seria fundamental conhecer e assumir as categorias que permitiriam fazer este confronto. Contudo, este é um processo que envolveria a reprodução de algum tipo de paradigma como, por exemplo, a ideia de agência.
A opção pelos princípios operantes das agências que formam as práticas devocionais sufis presentes nos casos etnográficos (argentino e/ou brasileiro) procuram qualificar as ações dos atores sociais nas distintas comunidades religiosas, levando em consideração seus respectivos contextos socioculturais. Essa estratégia visa evitar duas situações quando o assunto é realizar um quadro comparativo na ciência antropológica: 1) a abstração do conjunto de relações totais (estrutura) investigados (Radcliffe-Brown, 1978); e 2) as conceituações que reificam (descrições de) culturas e sociedades como elementos unitários e separados pela comparação (Barth, 1999). Ciente dessas limitações, a abordagem proposta almeja garantir as dinâmicas da “invenção da cultura” (Wagner, 2010) em virtude dos conjuntos de impressões e de significados imanentes às operações realizadas pelo pesquisador ao seu objeto de estudo comparativo.
Quanto à comparação das obras analisadas, o fluxo descritivo e interpretativo presente nas ações dos interlocutores é o que permitiria o discernimento entre as experiências etnográficas. A ênfase é dada ao que os sujeitos fazem (do ponto de vista pragmático) - voltados para a construção do cotidiano - em detrimento do que dizem (do ponto de vista da análise do discurso). Essa estratégia buscou dar conta da complexidade dos contextos selecionados.
Das seis monografias analisadas, é significativo apontar que quatro delas apresentaram os modos de como seus sujeitos interagiam com valores, rituais, doutrinas e instituições sufis disponibilizadas e/ou por intermédio de ideias e práticas associadas a perspectiva New Age (Kerman, 2007; Langner, 2019; Oliveira, 1991; Tosta, 2000). Apenas os trabalhos de Diaz (2017a) e Pilgrim (2019) abordaram propriamente as comunidades sufis (Muridiyya e Naqshbandiyya), relacionando-as a algum sistema de linhagem (silsila) ou controle das narrativas genealógicas do grupo (imaginário religioso transnacional com a África e Ásia Central). Em ambos os casos, as conexões transnacionais eram vitais para o controle do fluxo de informações, conhecimentos e ideais resultantes dos intensos deslocamentos de seus membros aos centros formadores e difusores de seus legados (Senegal e Turquia), em termos de uma tradição (Asad, 1986).
Para os grupos convertidos ao sufismo ou relacionados ao estilo New Age (Kerman, 2007; Langner, 2019; Oliveira, 1991; Pilgrim, 2019; Tosta, 2000), faz-se necessário reconhecer, em primeiro lugar, o papel das invocações dos nomes e da presença de Deus (dhikrs) como um ritual central na vida devocional. Mesmo que a categoria ritual ofereça uma série de obstáculos quanto a caracterização da ação humana (Strathern y Stewart, 2021), a sua aplicabilidade pode ser vantajosa caso venha acompanhada de outras noções. Por exemplo, os modelos de sociabilidade apresentados nos trabalhos analisados adquiriam um sentido performativo no ritual, já que buscavam dialogar com os tipos de rotinas criativas que cada comunidade inventava para si. Por “performance”, compreendo uma maneira de ser e uma estratégia de enquadrar e diferenciar diversos modos de prática e de ser (Bell, 1992).
Kerman (2007: 106) indicou o valor da prática devocional do dhikr como sendo o “‘secreto del secreto’, la sede del espíritu y de comunicación con lo divino”. O contexto descrito por Langner (2019: 40) interpretou os usos do dhikr como “una práctica que circula tanto entre quienes exploran experiencias de espiritualidad-New Age, como entre quienes buscan convertirse al islam y participan en espacios vinculados al sufismo en Argentina”. Tudo isso se contrasta com o trabalho de Pilgrim (2018: 67), pois a performance do dhikr “implica la presencia fisica del sheik [mestre]”. Em casos de ausência, os discípulos recorriam a mentalização de sua persona por meio do uso de fotografias ou imagens contendo mensagens escritas em árabe. Já a etnografia de Oliveira (1991) abordou o dhikr como um elemento de tensão entre as categorias religião e espiritualidade, pois boa parte dos integrantes alternavam seus comportamentos durante os encontros, ora enfatizando os aspectos técnicos (a importância da música e da respiração), ora os religiosos (leitura de textos em árabe e recitações de trechos do Alcorão). Sob outro prisma, Tosta (2000: 40) sinalizou que as sessões rituais contempladas pelo dhikr eram as responsáveis pela produção de um “‘imaginário ocidental’ a respeito do Islã”, com base no uso de elementos diacríticos, tais como as vocalizações, os movimentos corporais e o papel da música.
Longe de querer determinar o dhikr como um mero “símbolo dominante” (Turner, 2005) referente às práticas devocionais, a ideia de uma performatividade entre os interlocutores das cinco monografias listadas (Kerman, 2007; Langner, 2019; Oliveira, 1991; Pilgrim, 2019; Tosta, 2000) possibilita compreender a categoria ritual como um sistema construído culturalmente por comunicações simbólicas. Neste caso, a dinâmica ritual seria constituída por padrões e sequências ordenadas por palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios, cujo conteúdo e arranjo seriam caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição) (Tambiah, 1985).
Em segundo lugar, a contextualização da presença islâmica nos dois países se fez por meio da citação de trabalhos que contemplaram determinadas áreas temáticas. Para o caso argentino, as investigações de Montenegro (2000, 2002, 2007) tem sido as referências para o debate entre a configuração identitária dos grupos em termos de etnicidade (arabização) e/ou de religiosidade (islamização). Em outros trabalhos, verificam-se menções acuradas sobre algumas questões, como conversão, gênero ou produção cultural (Chinnici, 2009; Jáuregui, 2019; Pineiro-Carreras, 2007; Utvær Gasser, 2016; Valcarcel, 2013) nas comunidades estudadas. O que se define como “Antropologia do Islã” (Asad, 1986; Lukens-Bull, 1999; Mahmood y Landry, 2017; Schielke, 2018), ou seja, dentro de uma perspectiva êmica do ponto de vista etnográfico, encontra-se bem aparada em termos teórico-metodológicos, validando assim a maioria dos argumentos sustentados por parte das monografias analisadas (Kerman, 2007; Langner, 2019; Pilgrim 2018).
Para o caso brasileiro, a produção sobre o Islã costuma referenciar os trabalhos de Pinto (2005, 2011a, 2011b, 2013, Pinto y Dias, 2018) no tocante as dinâmicas entre imigração e processos de institucionalização das comunidades islâmicas. Contudo, um ponto chama a atenção nas três monografias brasileiras analisadas: a completa ausência de citações acadêmicas sobre quaisquer comunidades islâmicas existentes nas regiões Sul e Sudeste do país, a exemplo das cidades do Rio de Janeiro (Cavalcante Junior, 2008; Chagas, 2006; Dumovich, 2012; Ferraz, 2015; Pereira Junior, 2011), São Paulo (Barbosa, 2007; Raietparvar, 2014), Curitiba (Marques, 2010), Florianópolis (Espinola, 2005) ou Porto Alegre (Pereira, 2001; Soares, 2017). A dificuldade de incorporar essas investigações cria uma situação de “miopia empírica” sobre o campo de investigação no país, bem como de “descaso institucional” diante dos trabalhos acadêmicos que se debruçaram sobre as múltiplas facetas assumidas pelas comunidades islâmicas em território nacional.
Um terceiro elemento importante de se assinalar nas seis monografias analisadas, é a preocupação em descrever e analisar as práticas devocionais adotadas pelos grupos (sufis e/ou New Age) no dia a dia. No entanto, muitas dessas interpretações ignoram quaisquer elementos de autoridade, controle e transmissão dos conhecimentos dos mestres ou líderes de reuniões locais. Mesmo que as monografias apontassem os cotidianos dos interlocutores durante os processos de iniciação e/ou desenvolvimento do caminho sufi/espiritual, elas não contemplaram os aspectos de formação intersubjetivas dos sujeitos, ou seja, as relações estabelecidas entre especialistas e leigos.
A única exceção é a etnografia de Pilgrim (2018) que se concentra na análise de uma comunidade Naqshbandi na região da Patagônia. A autora reconhece algum grau de interferência e formas de controle exercidas pelo mestre (shaykh) no direcionamento das dinâmicas religiosas locais. Entretanto, boa parte dos processos de disciplinaridade que “forma[m] ou reforma[m] dispositivos morais” (Asad, 1993: 130) não foram contemplados, inviabilizando o aprofundamento das análises sobre os regimes de subjetivação e/ou de produção de experiências (subjetividades) dos discípulos.
Gostaria de ressaltar novamente essa situação quando se trata de grupos de convertidos ao sufismo, pois existiria uma constância analítica nos trabalhos (Kerman, 2007; Langner, 2019; Salinas, 2012, 2015; Pilgrim, 2018) a respeito da capacidade do poder exercido pelos mestres em termos de um carisma weberiano, mas nunca em termos do exercício de autoridade. A adoção desta perspectiva levaria em consideração os fluxos interacionais entre especialistas e leigos na condução dos elementos institucionais das confrarias (tariqas) e da transmissão das tradições.
Sendo assim, sigo os passos inaugurados por Cornell (1998), que destaca a noção de santidade não somente como uma relação de proximidade com o divino (walaya), mas também como o exercício de uma autoridade terrena sobre o mundo (wilaya). Esse último termo refere-se à relação entre um mestre (shaykh) e seus discípulos, já a primeira noção é usada para descrever a relação do discípulo com Allah [Deus]. São esses dois aspectos interligados que conferem ao shaykh o status perante as comunidades sufis como um agente divino que guia os adeptos nos assuntos religiosos e/ou políticos. Para tanto, o status desses homens, dotados de santidade, geralmente é rotinizado por sua capacidade de produzir milagres (karamat). Não à toa, o trabalho de Diaz (2017a) é categórico em afirmar a confiança dos discípulos da Muridiyya em seu santo patrono (wali) - shaykh Ahmadou Bamba (1850-1927) - na resolução dos percalços que, por ora, aparecem nos cotidianos religiosos transnacionais vividos.
Finalmente as produções acadêmicas do sufismo argentino e brasileiro esbarraram na necessidade de problematizar os usos da expressão New Age, comumente enquadrados sob a chave analítica dos “Novos Movimentos Religiosos”. Desse modo, os trabalhos que se debruçaram sobre essas experiências (Kerman, 2007; Langner, 2019; Oliveira, 1991; Tosta, 2000) não levaram em consideração uma análise processual sobre a categoria espiritualidade. Como sublinhou Sedgwick (2018: 16), “o termo ‘New Age’ é problemático”, pois indicaria um mero período histórico relativo às vivências mobilizadas pelos grupos em seus distintos contextos socioculturais, além de ter sido usado apenas para denotar um tipo específico de espiritualidade quando, na verdade, existiriam muitas outras.
Os trabalhos de Kerman (2007) e Langner (2019) refletiram sobre o uso da categoria espiritualidade como uma “reivindicação da espiritualidade oriental” (Carozzi, 2000; Carozzi y Frigerio, 1994), responsável pela formação das experiências dos grupos analisados. Em direção contrária, as monografias de Oliveira (1991) e Tosta (2000) não propiciaram nenhuma alusão às dinâmicas, fluxos ou tensões ligadas a categoria espiritualidade em seus respectivos campos empíricos. Essa questão também não é abordada por nenhuma produção auxiliar indicada neste texto. Já os balanços propostos por Sedgwick (2018) e Montenegro (2022) - sobre a presença do sufismo na América Latina - problematizam a questão, mas se restringem ora às fases históricas vivenciados pelos grupos descritos, ora aos processos de institucionalização das redes associativas.
A produção contemporânea sobre a conceitualização do termo New Age (Chryssides, 2012; Heelas, 2006, 2009; Redden, 2011) propicia toda a emergência de um vocabulário próprio a partir de noções como “alternative spirituality” (Sutcliffe y Bowman, 2000), “holistic spiritualities” (Sointu y Woodhead, 2008), “reflexive spirituality” (Besecke, 2001) “self spirituality” (Heelas, 1996), “spirituality of life” (Heelas, 2009), “subjective life spirituality” (Woodhead, 2010) ou “post-Christian spirituality” (Houtman y Aupers, 2007). Contudo, a ênfase dada aos discursos dos interlocutores, ao invés dos mecanismos que sintetizariam as práticas devocionais, ainda persiste entre os investigadores. Neste sentido, a adoção de uma perspectiva que valorize as agências dos sujeitos permitiria analisar as disposições das formas devocionais em termos mais dinâmicos, uma vez que os atos simbólicos subjacentes às lógicas culturais locais não teriam quaisquer relações com atividades pragmáticas ou utilitárias (Mahmood, 2005).
Considerações finais
A distância contextual, e ao mesmo tempo temporal, na produção dos trabalhos examinados (1991 a 2022), exige um redimensionamento do termo New Age associado ao sufismo. O termo visou abranger uma série de concepções, práticas e experiências distintas relacionadas à tese clássica do processo de secularização (Berger, 1985) e à reconfiguração do esoterismo e da categoria religião no “Ocidente”. Esse debate, típico dos anos 60, ainda se encontra em certa medida refletido nas produções analisadas devido às chaves e jargões sociológicos de “desencantamento” e “reencantamento” do mundo. Quanto aos seus usos na via mística do Islã, Sedgwick (2018) indicou as três ondas do sufismo ocidental promovido desde os anos 1960 até o presente, nas formas de: etnicidade (a composição dos grupos de origem imigrante nos anos 70), renascimento do Islã por meio de movimentos transnacionais (a ação dos deslocamentos realizados por diversos mestres nos anos 80) e, por último, com base em movimentos neo-tradicionistas (a reação contra o Islã político que assolou o mundo árabe desde o 11 de setembro de 2001).
O sufismo é caracterizado por valores, práticas rituais, doutrinas e instituições que representam a principal manifestação de devoção mística no Islã. Cabe mencionar que ele vai muito além do quadro das confrarias (tariqas), pois baseia-se principalmente no modelo de vida do Profeta. Essa característica devocional torna-se fundamental para a construção de múltiplas rotinas vivenciadas pelos muçulmanos em contextos locais.
Argentina e Brasil proporcionam exemplos empíricos significativos no tocante as variações organizacionais e rituais das comunidades pesquisadas. O foco analítico a partir dos trabalhos monográficos selecionados (Diaz, 2017a; Kerman, 2007; Langner, 2019; Oliveira, 1991; Pilgrim, 2018; Tosta, 2000) expôs um conjunto de questões norteadores e os desafios na construção das interpretações realizadas pelos autores. Já os trabalhos auxiliares (Capovilla, 2022; Diaz, 2017b; Filho, 2012; Gonçalves, 2020; Kleidermacher, 2013, 2016, 2018; Lombardi, 2020; Rossa, 2018; Salinas, 2012; 2015; Santos, 2021; Zubrzycki, 2011) corroboram na delimitação proposta no texto a respeito dos dois eixos de atuação do sufismo argentino e brasileiro, a saber: a presença da imigração africana (principalmente senegalesa) e a dinâmica dos convertidos às rotinas sufis e/ou New Age.
É preciso ter um olhar atento sobre os processos de desenvolvimento que permitiram a construção do sufismo como um campo de estudo antropológico, tanto na Argentina quanto no Brasil. Para tal, verificou-se que as análises pioneiras iniciadas por investigadores sobre as formações, consolidações e modificações das comunidades muçulmanas de ambos os países (Montenegro, 2014, 2015; Pinto, 2005, 2011b) garantiram as bases pelas quais a maioria dos trabalhos etnográficos puderam se assentar.
Um outro fator relevante que marca atualmente a relevância desses estudos foi a organização de sínteses sobre a presença das formas assumidas pelo sufismo em diferentes países da América Latina (Montenegro, 2022; Sedgwick, 2018).
Ciente dos desafios que a perspectiva comparativa impõe aos dados, saliento os esforços dos investigadores em compreender, na medida do possível, a complexidade dos elementos que compõem o sufismo nos distintos contextos socioculturais contemplados. A ausência de discussões sobre algumas questões sensíveis ao tema, como a conceitualização do termo New Age e/ou usos atribuídos a categoria espiritualidade, não inviabiliza o panorama apontado a respeito das múltiplas facetas que as comunidades sufis sustentam. No mais, esses trabalhos incitam a busca por novos horizontes comparativos e novos diálogos teórico-metodológicos com outras disciplinas, entre os dois países.