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Cuyo

versión On-line ISSN 1853-3175

Cuyo-anu. filos. argent. am. vol.37 no.1 Mendoza jun. 2020  Epub 16-Dic-2020

 

Dossier: filosofía, cultura y comunicación en Vilém Flusser

As cebolas de algodão. Imagem, ontologia e cosmologia paraconsistentes de Vilém Flusser

Las cebollas de algodón. Imagen, ontología y cosmología paraconsistentes de Vilém Flusser

The cotton onions. Image, ontology and paraconsistent cosmology by Vilém Flusser

Rodrigo Petronio1 

1Rodrigo Petronio é escritor e filosofo, autor e organizador de diversas obras. Professor titular da FAAP, é pesquisador associado do Centro de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD|PUC-SP), onde desenvolve um projeto de pós-doutorado sobre a obra de Alfred North Whitehead. Atualmente, coordena com Rodrigo Maltez Novaes a edição das Obras Completas de Vilém Flusser pela Editora É. Contato: rodrigopetronio@gmail.com

Resumo

O presente ensaio procura explorar os conceitos de imagem, abstração e modelo no pensamento de Vilém Flusser, especialmente a partir da obra Elogio da Superficialidade: O Universo das Imagens Técnicas. A inversão vetorial concreto-abstrato proposta por Flusser produz uma nova teoria dos modelos, ou seja, uma nova ontologia e uma nova cosmologia. À medida que a escalada da abstração promove a emergência das tecnoimagens zerodimensionais, o conceito mesmo de universo se altera em sua essência e consistência. O advento das tecnoimagens explicita o Nada que funda a existência. Por isso, as sociedades das tecnoimagens são sociedades telematizadas e conduzidas por jogos, programas, programadores e jogadores, e não por narrativas de emancipação. Essa é a alteração fundamental do mundo contemporâneo em relação ao fio condutor da historicidade que guiou o Ocidente em direção ao futuro, a partir das soteriologias das religiões abraâmicas e das utopias seculares.

Palavras-chave: Concreto; Abstração; Tecnoimagens; Modelos; Dimensões; Ontologia; Cosmologia; Nada

Resumen

Este ensayo busca explorar los conceptos de imagen, abstracción y modelo en el pensamiento de Vilém Flusser, especialmente a partir de la obra Elogio de la Superficialidad: el Universo de las Imágenes Técnicas. La inversión vectorial concreta-abstracta propuesta por Flusser produce una nueva teoría de modelos, es decir, una nueva ontología y una nueva cosmología. A medida que la escalada de la abstracción promueve la aparición de tecnoimágenes de dimensión cero, el concepto mismo del universo se altera en su esencia y consistencia. El advenimiento de las tecnoimágenes hace explícito la Nada que funda la existencia. Por lo tanto, las sociedades de tecnoimágenes son sociedades telematizadas e impulsadas por juegos, programas, programadores y jugadores, y no por narrativas de emancipación. Esta es la alteración fundamental del mundo contemporáneo en relación con el hilo conductor de la historicidad que ha guiado a Occidente hacia el futuro, desde las soteriologías de las religiones abrahámicas y las utopías seculares.

Palabras clave: Concreto; Abstracción; Tecnoimágenes; Modelos; Dimensiones; Ontología; Cosmología; Nada

Abstract

This paper seeks to explore the concepts of image, abstraction and model in Vilém Flusser’s thinking, especially from the work “Praise of Superficiality: the Universe of Technical Images” The concrete-abstract vector inversion proposed by Flusser produces a new model theory, that is, a new ontology and a new cosmology As the escalation of the abstraction promotes the emergence of zero-dimensional techno-images, the very concept of the universe is altered in its essence and consistency. The coming of techno-images makes explicit the Nothing that establishes existence. Therefore, techno-images societies are telematized and driven by games, programs, programmers and players, and not by emancipatory narratives. This is the fundamental alteration of the contemporary world in relation to the guiding thread of historicity that has guided the western world into the future, from the soteriologies of the Abrahamic religions and the secular utopias.

Keywords: Concrete; Abstraction; Techno-images; Models; Dimensions; Ontology; Cosmology; Nothing

Não seria exagero dizer que Elogio da Superficialidade: O Universo das Imagens Técnicas (Flusser, 2019a) é uma das obras mais singulares, radicais e inovadoras escritas em língua portuguesa, bem como uma das obras seminais da teoria dos media do século XX, em qualquer língua. Em termos de extemporaneidade, dentro do projeto de Flusser, iguala-se apenas ao Vampyrotheutis infernalis (Flusser, 2020a). O fio condutor de Elogio da Superficialidade é semelhante ao que permeia Pós-História (Flusser, 2019b): o fim da historicidade, entendida como regime de sentido baseado na autonomia humana e na dimensionalidade intramundana, na acepção de Heidegger.

Mas qual seria a singularidade desta obra e, mais especificamente, da concepção de imagem desenvolvida por Flusser? Em geral as teorias das mídias e as filosofias da tecnologia se prendem às tecnologias do século XX, a abordagens historicizantes e aos suportes. A inovação substancial de Elogio da Superficialidade consiste em propor não apenas uma concepção global das novas tecnologias, pensadas a partir de um corte temporal da experiência de longa duração do sapiens. Consiste sobretudo em fundamentar uma ontologia e uma cosmologia das tecnoimagens, que engloba e não se reduz aos suportes materiais contingentes produtores das imagens. Enquanto o pensamento historicizante é linear e projeta a superação das contradições no futuro como utopia, as tecnologias digitais são anti-historicizantes e projetam a esfera de atuação humana fora das molduras espaciotemporais da experiência empírica, dominada pela tridimensionalidade. Essa abdução, para pensar com Peirce (2000) , consiste na emergência de uma nova dimensão produzida pelos aparelhos e pelos algoritmos: a zerodimensionalidade. Essa inversão vetorial concreto-abstrato não gerou uma desmaterialização do mundo, como seria comum pensar a partir de matrizes conceituais que valorizam a liquidez e as nuvens. Produziu sim uma hipercodificação do real, finalmente reduzido aos pontos de um programa. Perdemos o chão e toda solidez. Deus morreu, à medida que as religiões são sempre uma crença fiel na solidez dos mundos e das imagens. O não-lugar e o sem-chão da utopia não se situa mais no futuro. Situa-se no passado. A utopia foi realizada pela tecnologia.

Alguns desses argumentos foram desenvolvidos por Flusser em Filosofia da Caixa Preta (Flusser, 2018 a) Entretanto em Elogio da Superficialidade essas intuições ganham em complexidade. Dir-se-ia: ganham em superficialidade. O mundo aos poucos se converteu em uma sociedade telemática de funcionários dos programas e dos jogadores do jogo das imagens, que são os tecidos zerodimensionais tramados pelos pontos digitais. O totalitarismo nos espreita por trás desses véus de sedução e de leveza. O mundo deixou de ser aquela seta de tempo, inaugurada pelas escatologias abraâmicas, segundo Eliade (2013). Deixou de ser composto por eventos e processos. Passou a ser um agregado de planos, contextos e cenas unificados não pelas mãos do Demiurgo, mas pela metateoria dos jogadores e roteiristas do real. Se a escrita configurou a percepção humana e nos conduziu a emoldurar a totalidade do real a partir das linhas e da linearidade, o tempo pós-histórico das tecnoimagens promove a suspensão dessa realidade, pois nos diz a todo momento que não há nenhum centro por traz da miríade imaginal das representações. O real é uma cebola de algodão cujas camadas não revelam nem Deus nem o Nirvana, mas apenas o Nada que subjaz aos programas.

Essa arqueologia vinha sendo desenvolvida por Flusser desde os anos 1960, mais especificamente em Último Juízo: Gerações (2017), extensa obra escrita exclusivamente em português e publicada pela primeira vez na Biblioteca Vilém Flusser da Editora É (Brasil). São quatro os passos rumo à abstração: tridimensionalidade, bidimensionalidade, unidimensionalidade e zerodimensionalidade. O mundo atual foi fruto da manipulação, da operacionalidade produtiva das mãos, a primeira forma de abstrair o tempo e o espaço das circunstâncias em que tempo e espaço existem em termos fáticos. Esse processo abstrativo está no cerne das ciências modernas, desde o plano inclinado de Galileu e o espaço-tempo absolutos de Newton ao sujeito transcendental de Kant e o cogito de Descartes. O modo de abstração extensiva, segundo Alfred North Whitehead (2010), é um dos meios de compreender o universo para além das inferências indutivas e das deduções transcendentais. Esse processo abstrativo inaugura o humano enquanto humano. Contudo, o paradoxo de nossa condição é que a manipulação, origem da civilização e das técnicas, tem produzido aos poucos a supressão mesma do humano, dissolvido na ordem quantitativa zerodimensional. As imagens deixaram de ser fixações de circunstâncias e se transformaram em modeladoras de realidades paraconsistentes: simultaneamente existem e não existem. Emergem e transcendem as ordens tridimensionais que povoaram a vida do sapiens ao longo de milênios. Por isso, a reativação da magia, que nada mais é do que ações coordenadas por imagens, sejam elas tri, bi, uni ou zerodimensionais. Os textos são texturas lineares e quantificadoras da experiência. Assim como os ábacos calculadores e os colares de pedrinhas (calculi) foram modelos redutores do mundo às dimensões espaciotemporais empíricas.

O que é novo nas tecnoimagens é que elas não são pedras, mas pontos. E não reduzem o real à linha unidimensional, ao plano bidimensional ou ao volume tridimensional. Expandem-no em direção ao vórtice zerodimensional do Nada. As imagens tradicionais são magia a serviço do mito, ou seja, agenciamentos direcionados a um sentido e à consciência de um cosmos em um movimento de eterno retorno. As tecnoimagens não são regidas nem pela circularidade do mito nem pela linearidade da escatologia abraâmica. São da ordem da replicação infinita e fractal. As pedrinhas (calculus) dos colares da linearidade se desintegram nos átomos, bits e quantas flutuando no espaço-tempo vazio da matéria. Esta nada mais é do que uma variação das imagens zerodimensionais. São pedras oraculares que desvendam o abismo do nada: realizam a utopia. As tecnoimagens são costuras e pontos de conexão que preenchem os espaços infinitos de um universo vazio. Por isso, as tecnoimagens se processam sempre no campo da virtualidade indeterminada, não da atualidade determinada. São pontos, não são algo. As tecnoimagens são superfícies cheias de intervalos. Em sintonia e prefigurando algumas teorias cosmológicas atuais, as tecnoimagens de Flusser podem ser pensadas como uma constelação de universos-bolhas instalados no vazio. Saliências de uma superfície rugosa. As imagens tradicionais tendem a concretizar ausências. Tecnoimagens abstraem presenças. Por isso o conceito de ideologia se tornou obsoleto. Decifrar ideologias é decifrar imagens tradicionais. Decifrar tecnoimagens é decifrar programas.

Nesse novo sistema-mundo, a mathesis do universo e da consciência emergentes não é mais Deus, não é mais uma substância, não são mais ideias ou um sujeito transcendental. As ciências e as tecnologias produziram séries superpostas de véus de Maia. Entretanto sair da caverna não consiste mais em rasgar os véus da ilusão e da ideologia, como fora nos tempos pré-históricos e históricos. Para sair da caverna é preciso imaginar cada vez mais densamente. E ter consciência de que nossos véus não encobrem nada. Nenhuma essência. Nenhuma verdade. Os mil véus das tecnoimagens são apenas nossa resposta ao Nada. As filosofias do sujeito e do objeto se tornaram tão obsoletas quanto o apriorismo transcendental e as filosofias substancialistas, antigas, medievais ou modernas. O sistema-mundo se transformou num grande sistema de probabilidades. As represas de informação que produzem a imortalidade dos seres consistem nada mais nada menos do que em poderosos aparelhos de redução das possibilidades em probabilidades. A manipulação dimensional das mãos foi assimilada pela produção infinitesimal dos pontos e das teclas. A redução da possibilidade à probabilidade cria atalhos na natureza. Em outras obras, Flusser aborda essa relação entre possibilidades-probabilidades a partir da segunda lei da termodinâmica, ou seja, das relações entropia-neguentropia. Quantificar e controlar as probabilidades é minimizar as incertezas de um sistema. É definir o momento em que uma tendência de um sistema de coordenadas contingentes se converte em estrutura. Por isso, de Gilbert Simondon (2005) e René Thom (1977; 1988) a Jean-Pierre Dupuy (1990) e Felix Guattari (1991), o controle das probabilidades ocupa o centro da teoria das catástrofes, da complexidade e das incertezas. Permeia todas as tentativas de reduzir o caos a um cosmos. Um chimpanzé diante de um teclado é um objeto de diversão. Um chimpanzé diante de um teclado ao longo de bilhões de anos é um sério candidato a escrever as obras completas de Shakespeare.

Um dos pontos centrais nos argumentos de Flusser é uma recusa das teorias do espelhamento. Os aparelhos não são refletores. São projetores. O ser humano não é uma essência entitativa. É um projeto (pro jectum), aquele que jaz fora de si, privado de substrato, instalado na instabilidade, excêntrico a si mesmo. Como diria Sloterdijk (2003; 2004; 2006), ecoando Flusser e Heidegger (2002), os aparelhos não explicam o mundo: explicitam o mundo. Como agentes explicitadores, informam e modelam o mundo e os meios, em movimentos constantes de autopoiesis e de desdobramentos (ex plicare). E as tecnoimagens são programas, não entidades. Não são espelhos. São projetores. Matrizes vazias que projetam o mundo a partir de modelos abstratos. Essa nova condição e esse novo estatuto das imagens exigem uma nova hermenêutica. Os imaginadores e criadores das tecnoimagens são hermeneutas da pura superficialidade. Desconfiam de toda profundidade. As tecnoimagens não são homogêneas ou equivalentes. As imagens de reprodução e as imagens de produção são distintas. As primeiras são redundantes-reprodutivas e originam o oceano de clichês que povoam nossas mentes. As segundas são imagens informativas-produtivas. Dir-se-ia performativas, pois produzem novas realidades na medida mesma em que as enunciam. Contudo, todas as tecnoimagens se unem a partir de uma definição comum: as tecnoimagens não apontam para o nada fora delas mesmas. Não se trata de uma idealidade que não pode ser realizada. Trata-se de uma flutuação de pontos infinitesimais que circunscrevem e emolduram o Nada. Por isso a pós-história depende ontologicamente das tecnoimagens. Os eventos pós-históricos dependem da onipresença de uma câmera que espetaculariza e roteiriza o real. Diferente de leituras apressadas que queiram vincular a noção de pós-história de Flusser à conhecida concepção de Francis Fukuyama (1992), para Flusser a história não acabou. Ela tem sido subsumida às condições de possibilidades emergentes da pós-história, ainda em plena expansão. As imagens e eventos históricos são absorvidos pelas tecnoimagens e transcodificadas em programas. Essa condição produz uma espessura suplementar à experiência. Uma espessura espectral: as sociedades humanas se transformam paulatinamente em dunas movediças de pontos zerodimensionais.

As implicações políticas dessa revolução técnica das imagens são imensas. E chega a ser escandalosa, na acepção teológica do termo escândalo, a atualidade do pensamento de Flusser. Haja vista as mudanças estruturais do mundo ocorridas nos últimos anos, com a crise das democracias representativas, os movimentos antiglobalistas, os neonacionalismos e os protofascismos eclodindo em diversas regiões do mundo, inclusive no Brasil. Se Flusser demonstrou a inviabilidade da aldeia global de McLuhan (1995), é justamente porque percebeu a inoperância da unificação da Terra a partir da imagem idílica e ingênua da aldeia. Por sua vez, o nacionalismo é apenas a camada mais externa e banal dos programas. Não por acaso, em mais de uma obra Flusser o ridiculariza como um produto kitsch. Qual seria então a unidade do sistema-mundo promovida pelos aparelhos-programas? Flusser é bastante claro ao descrever a estrutura da sociedade emergente dos algoritmos e dos programas como uma estrutura de feixes sincronizados (fascio), ou seja, uma estrutura fascista. Nesse sentido, esta obra é uma das mais brilhantes diagnoses antecipadoras da escalada do fascismo que vivemos mundialmente nos dias de hoje. E Flusser, um dos pensadores antifascistas mais radicais, na tradição de outros brilhantes expoentes do antifascismo de extração judaica, como Walter Benjamin, Ernst Bloch, Hans Jonas, Franz Rosenzweig e Hannah Arendt. Para compreender esse fenômeno e revertê-lo, não podemos mais nos contentar com a chave hermenêutica da ideologia e da politologia. Precisamos descer a suas raízes tecnológicas e telemáticas. A tecnologia está sempre à frente da política. Toda revolução é técnica antes de ser política. Por isso o vocabulário da política se torna inoperante e inócuo se não se pensa a política como uma tēkhne. Por outro lado, para Flusser, por força das tecnologias, a democracia estava deixando de ser eletiva. Tornava-se pouco a pouco uma das formas do programa. No mundo atual da big data e do dataísmo, dos robôs e da religião dos dados, ou seja, da dominação irrestrita dos donos dos algoritmos, não haveria como ser mais atual.

Qual seria então a essência da política? Para Flusser, a politização é sempre uma sacralização das formas sociais emergentes das tecnologias. As técnicas surgem de um horizonte contingente e pragmático. A política preenche de sentido os hiatos e os intervalos das ações, produzindo narrativas unificadas a partir de processos descontínuos e contingentes. Nese sentido, fica subentendido que uma das potências antifascistas e antiprogramas propostas por Flusser seria um tratamento profanador das tecnologias, semelhante à acepção de Agamben. Por isso, descreve a revolução atual das tecnoimagens como uma revolução que deve dessacralizar todas as instâncias da vida. Compreender o mundo atual é compreender a produtividade e a performance de formas técnicas, não de formas sagradas. Esse tratamento não redunda nunca em tecnofilia ou em tecnofobia, duas faces de um mesmo erro em relação à técnica, pois em ambos os casos haveria o recurso à sacralização, uma positiva e outra negativa. Resulta sim em uma constante desconfiança de que no fundo sem fundo dos bits e dos pontos, no coração das imagens que costuram o vazio, no centro sem centro dos feixes sincronizados pelos aparelhos, não existe uma unidade integral nem uma substância misteriosa, nem um grande objeto nem um grande sujeito, seja ele Deus ou o Grande Irmão, encarnado em um Jogador. No fundo sem fundo dos aparelhos existe apenas o Nada.

Contra a imagem da aldeia global, as tecnoimagens irrigariam e circulariam por um cérebro global, em suas irradiações de redes e rizomas omnicompreensivos, abrangendo todas as esferas e condições da vida. O engajamento político precisaria ser necessariamente não-antropocêntrico. O centro sem centro e as agências sem sujeito dos aparelhos são cebolas de algodão. Desfazem-se. Nunca chegamos ao seu âmago zerodimensional. Os emissores dos sinais não são o Arquiteto da Matrix. Essa é ainda uma imagem romântica do aparelho. A função dos emissores não é reunir as massas ao seu redor, mas dispersá-las em movimentos centrífugos cada vez mais amplos. A função dos funcionários, por seu turno, é funcionar ao redor das cebolas de algodão sem centro, imaginando que, a cada nova camada desfiada, encontram-se mais próximos da verdade. Nesse aparelho democritiano de átomos informacionais turbilhonando no vazio, mesmo os filósofos são iludidos. Imaginam que seus sistemas conceituais conduzem à verdade. Entretanto, as condições de possibilidade dos conceitos são apenas pequenas redes dentro das malhas informacionais que se irradiam e se confundem com a arquitetura descentrada, infinita e vazia do universo. Enquanto a filosofia se ocupa da verdade, os aparelhos se ocupam da neguentropia. Trabalham dia e noite para minimizar o acaso em prol da conquista das probabilidades, dos sistemas de seguridade e de redução de riscos, com o intuito de modelar o passado e colonizar o futuro. A automação, os aparelhos e os programas passam a assumir o centro do universo compartilhado. Se a automação é uma computação de coincidências em velocidade exponencial, programar significa dominar a automação de modo que ela interrompa seu processo em um momento exato e previsto. À medida que os metaprogramas começam a se programar automaticamente, os humanos passam aos poucos a se tornar obsoletos para os aparelhos. Como diria Yuval Noah Harari (2018), os trabalhadores não são mais inoportunos. E muito menos membros da classe revolucionária do proletariado. Os trabalhadores estão se tornando simplesmente uma coisa: irrelevantes. A irrelevância está um degrau abaixo do precariado e do lumpen, pois pressupõe a desativação de toda potência de negatividade que move e orienta as revoluções. Lutar contra a irrelevância é muito mais difícil do que lutar contra a opressão. O modelo ideológico dos funcionários ainda é o modelo da opressão. A libertação entretanto agora passa por uma percepção mais acurada dos processos de redução de grandes massas silenciosas e de imensas hordas de homines sacri à condição de irrelevância, que é um grau inaudito e jamais sonhado de reificação.

Diferente do autor de Homo Deus, para Flusser os aparelhos não são deuses nem super-humanos. Tampouco as inteligências artificiais (IA) vão desempenhar uma função sacralizadora, como consumação de um exoesqueleto artificial que permeia a evolução da vida, dos organismos e dos humanos. Os autômatos que geram e gerem os aparelhos são meros infra-humanos. Imbecis sem intencionalidade. Qual seria a saída dos aparelhos? Talvez termos consciência de que todas as esferas tendem a ser mediatizadas por imagens. A sociedade telematizada e cibernetizada será cada vez mais um jogo aberto com informações. E os jogadores serão estrategistas e roteiristas do real. Trata-se de uma sociedade deliberadamente artificial, produzida em âmbitos imagísticos e imaginários, flutuando sobre o abismo. E todas as atividades da vida serão atividades performativas, no sentido de poiesis e da autopoiesis entre sistemas orgânicos e inorgânicos, a partir do qual a arte incluiria as ciências, a política e a filosofia. Nessas sociedades, as informações sintetizadas por sintetizadores tornar-se-ão mais conscientes e universais mediante os meios telemáticos. Porém, essa universalidade não assegura uma minimização dos impactos colaterais de sua ação sobre concepções arraigadas que tenhamos em relação ao humano, muitas herdadas de um humanismo que caminha em direção à morte. Os formigueiros telemáticos não têm nenhum interior: são teias de relações puras e um puro campo de virtualidades. Tampouco têm centro, por mais que os paladinos da emancipação humana identifiquem os centros globais emissores de poder na Terra todas as manhãs. Talvez o façam para nos deixar presos às suas próprias promessas de felicidade futura e de redenção? Pode ser. Talvez o façam apenas por não saberem ainda que, quanto mais desfiamos a cebola, mais e mais o Nada se aprofunda em toda sua plenitude, em sua superficialidade e em sua indiferença.

Referências

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Recebido: 21 de Dezembro de 2019; Aceito: 05 de Maio de 2020

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