Introdução
O esporte moderno tem se constituído como um fenômeno polissêmico e secular cujas interfaces perpassam diversas instâncias socioculturais, desde a economia, política, saúde e lazer (Tubino, 1999). Desta forma, diferentes campos de conhecimento têm buscado empreender produções científicas que objetivam compreender o fenômeno, com destaque para os estudos de natureza sociológica e histórica.
De acordo com Elias e Dunning (1992), as configurações do esporte moderno foram instituídas a partir de um processo civilizatório que aconteceu na Europa ao longo dos séculos XIII e XIX. A sociedade estava sofrendo transformações em suas estruturas sociais, econômicas e políticas, e o esporte moderno surge dentro desse contexto. Nesse sentido, compreende-se o surgimento do esporte enquanto um patrimônio cultural da modernidade, sofrendo várias transformações no seu processo de constituição, difundindo-se para além de fronteiras (Tubino, 1999; Gebara, 2002).
Pensar sobre o esporte moderno é também refletir sobre a formação profissional para atuar nas diversas necessidades do fenômeno esportivo em suas especificidades, principalmente no esporte de alto rendimento, que envolve a atuação de vários profissionais, como, treinadores, preparadores físicos, nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, jornalistas, entre outros.
Embora haja pesquisas sobre o tema, em específico na área da educação física, um estudo desenvolvido por Gama, Ferreira Neto e Santos (2021), mostra que ainda não há um núcleo consistente de pesquisadores e periódicos que se dedicam a estudar a formação profissional para atuar com o esporte em contexto não escolar. Nesse sentido, corroboramos com os autores que apontam a necessidade do desenvolvimento de um núcleo focado em fortalecer a produção acadêmica, o debate e construção das redes de colaboração acerca da formação profissional para atuação com o esporte, sobretudo na América Latina.
Entendemos que abordar a formação profissional para atuar com um fenômeno multiprofissional e em constante transformação requer programas formativos que vão ao encontro das necessidades de cada realidade, considerando os contextos e atravessamentos onde essas práticas emergem (Gómez, Hernández, Arboleda e Vente, 2021).
Analisar os programas se torna uma tarefa essencial, sobretudo, na compreensão das práticas esportivas em suas realidades; as matrizes curriculares dos programas de ensino, suas bases epistemológicas, científicas e disciplinares; o perfil profissional que pretende-se formar, as aptidões, competências e habilidades profissionais; e também, analisar como os programas de formação dialoga com os cenários e espaços possíveis de atuação (Gómez, Hernández, Cruz e Arango, 2019).
Para a formação de treinadores esportivos, as análises dos currículos prescritos dos cursos de formação desempenham um papel fundamental, dado que a matriz curricular, em um plano didático-pedagógico, aborda os conhecimentos que determinado programa de ensino julga necessário para a formação desse profissional (Sacristán, 2013). Esse movimento de análise, permite problematizar se as intencionalidades da formação dos diversos programas estão atingindo as necessidades do campo profissional, identificando as características, potencialidades e fragilidades, de cada programa.
Milistetd, Turdel, Mesquista e Nascimento (2014), analisaram programas de formação em bacharel em educação física em 20 universidades brasileiras com ênfase nas disciplinas para formação de treinadores. O estudo mostra que embora a grade curricular esteja alinhada com as diretrizes nacionais para os cursos de bacharelado em educação física, há muita variação no número de horas ofertadas para a formação de treinadores nos cursos de graduação. Dessa forma, a pesquisa problematiza que mesmo seguindo as diretrizes nacionais, o perfil profissional formado é diverso entre as instituições, apontando que, no caso do Brasil, a formação para o esporte apresenta mais um caráter generalista do que especialista.
Em específico sobre a formação de treinadores de handebol, trata-se de um campo incipiente de investigação e discussão. Gómez-López, Sánchez, Ríos e Sánchez (2016), analisam as disciplinas relacionadas ao handebol nos planos de ensino de 32 universidades da Espanha. O estudo analisa os conteúdos específicos de handebol nos cursos de graduação, avaliando se os cursos atingem as exigências mínimas da Royal Spanish Handball Federation (RFEBM) para uma validação por qualquer título específico dos cursos da federação espanhola.
A investigação mostra que 10 universidades atingem os critérios mínimos para a titulação de treinador nacional nível I, seguido de 10 universidades para a titulação de nível II, e, por último, apenas 3 universidades possuem equivalência de validação da federação para a titulação de nível III. Portanto, o estudo mostra que os cursos de graduação em sua maioria não habilitam o profissional para ser treinador de handebol reconhecido pela federação espanhola.
Na América Latina, de forma mais ampla, não há estudos consistentes que analisam os cursos de formação de treinadores de handebol, problematizando e comparando as disciplinas ofertadas entre as diferentes realidades latino-americanas, fortalecendo as lacunas apresentadas por Gama, Ferreira Neto e Santos (2021), principalmente com relação aos países hispanofalantes, sendo a maioria no bloco (18 no total).
Esse estudo direciona-se a investigar e comparar três programas de formação profissional de treinadores de handebol em três países da América Latina hispanofalantes para atuar de forma específica com a modalidade fora do ambiente escolar. A pesquisa propõe responder a seguinte questão: como se organiza e estruturam-se os cursos de formação de treinadores e técnicos de handebol em três instituições localizadas no Uruguai, Paraguai e Argentina?
Teoria e método
As premissas que estruturam os percursos epistemológicos dessa pesquisa apoiam-se nos preceitos da análise-crítico documental de Bloch (2001), na teoria do paradigma indiciário de Ginzburg (2002), no método de análise de conteúdo de Bardin (1979) e nos preceitos de currículo prescrito de Sacristán (2013).
A pesquisa documental tem como fundamento a apreensão, compreensão e análise de documentos de forma sistemática, organizada e científica, utilizando de diversas técnicas que estruturam os caminhos metodológicos de modo a promover análises críticas, produzir novos conhecimentos e ampliar a compreensão do objeto estudado (Kripka, Scheller e Bonotto, 2015).
Bardin (1979, p. 45) define a análise documental como “uma operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, de modo a facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e referenciação”. O autor também faz a diferenciação entre análise documental e análise de conteúdo, enquanto uma é a representação condensada de um documento, a outra é uma técnica de manipulação de mensagens orientada por procedimentos metodológicos bem definidos visando explorar o conteúdo do documento (Bardin, 1979).
Para Ginzburg (2002), na sua teoria do paradigma indiciário, as fontes possuem vestígios e indícios, que quando são explorados pelo pesquisador sistematicamente, lhe permite realizar interpretações para além das informações explícitas. Essas pistas são subsídios para a realização de inferências sobre valores, sentimentos, intenções e ideologias das fontes e dos autores. A metodologia possibilita a reconstrução da história através de hipóteses, logo a produção de novos conhecimentos.
Esse texto trata-se de uma pesquisa qualitativa (Flick, 2004) de natureza crítico-documental (Bloch, 2001), que pretende mapear os programas de formação de técnicos de handebol no Paraguai, Uruguai e Argentina, visando analisar e comparar a estrutura pedagógica dos programas no que diz respeito à estrutura do processo formação, duração dos cursos e o componente curricular.
Orientada pelo método de análise de conteúdo proposto por Bardin (1979), essa pesquisa se organiza pelos seguintes procedimentos metodológicos: pré-análise do documento, a exploração do conteúdo e o tratamento dos resultados.
De acordo com Bardin (1979), a fase de pré-análise tem por objetivo organizar os documentos a serem analisados, desde sua seleção até a elaboração dos indicadores que fundamentam a interpretação final. A escolha dos documentos está diretamente relacionada aos objetivos que delimitam a pesquisa, de forma também, que os objetivos são constituídos a partir dos documentos disponíveis (Bardin, 1979).
Na fase de pré-análise, realizamos o mapeamento das instituições que ofertam cursos de handebol nos países da América Latina através de busca orientada no banco de dados do Grupo Proteoria. A seleção dos países desta pesquisa originou-se por meio dos documentos disponíveis no acervo documental do grupo Proteoria, também pela identificação de instituições e cursos através da busca no site da Google, utilizando das seguintes palavras-chave em cada país de interesse: escuela deportiva de balonmano, curso de entrenador de balonmano, entrenamiento deportivo del balonmano, educación física, professor de educación física.
As informações dos programas de formação foram identificadas a partir da leitura flutuante dos sites das instituições mapeadas, o que foi decisivo para a seleção dos programas de formação para a constituição de um corpus de análise. Em seguida, o conteúdo coletado foi transcrito para um documento no Microsoft Word 2010 e salvo em pastas com o nome das instituições.
Bardin (1979) afirma que a leitura flutuante é determinante para a construção do acervo documental a ser analisado. Por meio dela, o pesquisador realiza a primeira aproximação com o documento, iniciando a estruturação das hipóteses a partir das impressões iniciais sobre o conteúdo de interesse.
Ainda na fase de pré-análise, realizamos a preparação do material para facilitar a manipulação do conteúdo para análise comparativa. Organizamos as informações em quadros criados no Microsoft Word 2010 para melhor manipulação das informações. No conteúdo relacionado aos currículos de formação, os termos das disciplinas foram padronizados no Bloco de Notas do Windows para análise de recorrência de palavras no software de análise textual Iramuteq, versão 0.7 alpha 2. O programa realiza análises estatísticas através de um campo léxico básico formado pelo pesquisador, dessa forma, devidamente alimentado das informações a serem analisadas nos requisitos do programa, o Iramuteq apresenta as análises através de gráficos, cálculo de frequência e imagens (Camargo e Justo, 2013).
Para abordar as questões relacionadas às matrizes curriculares, fundamentamos nos preceitos de currículo prescrito de Sacristán (2013). Para o autor, o currículo é um campo de “integração de conhecimentos especializados, paradigmas e modelos de pesquisas diversos.” (Sacristán, 2017, p. 102). Nesse sentido, a elaboração de um currículo envolve intencionalidades epistemológicas, ideologias, projetos de sociedade, sobretudo, de formação humana. O currículo prescrito é orientador de um percurso formativo, organiza os conhecimentos no processo de formação. Portanto, assume uma função reguladora, na proposição de uma formação comum.
Sacristán (2013) afirma que, embora o currículo prescrito tenha uma função orientadora, ele assume outras significações e dimensões no processo de ensino, sobretudo, porque decorre das experiências e das relações que se constituem nesse processo. Nesse sentido, a análise das matrizes curriculares das escolas de formação de treinadores de handebol, tem como ponto de partida os currículos prescritos, buscando identificar os vestígios, indícios e pistas (Ginzburg, 2002), que apontam para as intenções de formação profissional.
Resultados e discussão
O tratamento dos resultados, para melhor compreensão da pesquisa, foi estruturado a partir de dois eixos de análise. O primeiro, no que diz respeito à estrutura pedagógica geral dos programas: estrutura do processo de formação e duração; e o segundo eixo, referente às grades curriculares: disciplinas de maior recorrência e foco disciplinar por grandes áreas.
A pesquisa possibilitou mapear três programas de formação de treinadores de handebol nos países de interesse na América Latina (Argentina, Uruguai e Paraguai), ofertados por diferentes instituições de ensino, cada uma com suas especificidades na estruturação pedagógica intencionada, conforme apresentado no Quadro 1.
3.1 Primeiro eixo de análise: Estrutura pedagógica geral dos programas de formação
Nessa etapa da pesquisa, identificamos que os programas possuem duração aproximada, entre 1 ano e 9 meses a 2 anos e 3 meses, portanto se diferem no processo de formação. Os cursos analisados do Uruguai e Argentina são similares no processo formativo, ambos de natureza modular por nível, seguindo uma progressão didático-pedagógica, portanto não contínua. Em outras palavras, o estudante recebe a certificação por nível concluído, podendo assim realizar intervalos entre os níveis de formação, dando ou não continuidade para os próximos níveis. Por outro lado, o curso analisado do Paraguai é contínuo, dividido em quatro semestres, então, para obter-se a certificação, o estudante precisa completar todo o programa de formação.
Embora os cursos modulares certifiquem o técnico em menor período de formação, os níveis também possuem limitações de atuação, sendo assim, o campo de atuação profissional aumenta enquanto se adquire as certificações seguintes, conforme apresentado no Quadro 2. Nesse sentido, o curso de natureza extensiva do Paraguai, embora de duração longa e contínua, com apenas uma certificação, amplia-se o campo de atuação profissional do técnico.
Conforme os dados apresentados, os cursos da Argentina e Uruguai certificam o profissional em cada nível de formação a partir de uma lógica de progressão nas fases do treinamento esportivo para diferentes públicos. A capacitação de nível I, voltada para a iniciação esportiva de crianças; a de nível II, voltada para a especialização nas categorias juvenis; e, a de nível III, para o esporte de rendimento em todas as categorias. Percebemos que as titulações seguem uma sequência didático-pedagógica orientada pelo processo de formação esportiva, desde a iniciação até o alto rendimento.
De acordo com Greco e Brenda (1998), o processo de ensino-aprendizagem-treinamento (EAT) perpassa por três estágios: estágio de formação, transição e estágio de decisão. Nesse sentido, o técnico deve compreender em sua intervenção didático-pedagógica as diferentes características de cada fase de ensino-aprendizagem, tanto na esfera físico-motora quanto na cognitiva e socioafetiva. Em diálogo com o autor, é possível perceber uma estreita relação das certificações por nível dos cursos analisados com a progressão do treinamento e do desenvolvimento motor na aprendizagem da modalidade (Greco e Brenda, 1998; Gallahue, Ozmun e Goodway, 2013).
Por outro lado, o curso ofertado pelo Paraguai apresenta apenas uma certificação que engloba todo o processo de formação atlética, estando também explicitado no conteúdo da fonte, as possibilidades de atuação profissional na esfera pública e privada.
3.2 Segundo eixo de análise: Comparações nas grades curriculares dos programas de formação
Nessa etapa de análise, as informações das grades curriculares foram organizadas em quadros, conforme o Quadro 3, para estabelecer as relações, comparações e interpretações do conteúdo segundo o interesse da pesquisa. De acordo com Gómez, Hernández, Cruz e Arango (2019), a avaliação dos programas de formação em sua estrutura pedagógica permite ao pesquisador delimitar os conhecimentos gerais e específicos fornecidos em cada grade curricular, promovendo a reflexão entre a qualidade da formação e as necessidades do campo de atuação profissional. Desta forma, a formação deve ir de encontro às necessidades do campo desportivo da modalidade no contexto em que está inserida.
Após a leitura flutuante do conteúdo das grades curriculares, percebemos similaridades entre os programas de formação, tendo disciplinas recorrentes entre os módulos/semestres, seguindo uma progressão didática. Em diálogo com Ginzburg (2002), tais vestígios explícitos no conteúdo dos currículos são como índices para fundamentar a interpretação e inferência do pesquisador. As questões que emergiram durante a fase de exploração do conteúdo foram: quais as disciplinas de maior recorrência nos cursos e sua importância para a formação de técnicos de handebol? E qual o foco disciplinar por grande área de cada curso?
3.2.1 Disciplinas de maior recorrência nos programas de formação
Para levantar a recorrência das disciplinas nos três cursos de formação utilizamos o software Iramuteq para a produção de uma nuvem de palavras. O programa constrói a nuvem a partir da recorrência dos termos que compõem o curpus textual, dessa forma, apresenta as palavras mais importantes com tamanho maior, centralizando-as na imagem, por outro lado, as palavras de menor recorrência são apresentadas com tamanho menor, assumindo as regiões periféricas da nuvem (Salviati, 2017). Devidamente alimentado pelas informações preparadas na fase de pré-análise, o programa construiu a nuvem conforme apresentado na Figura 1.
Nem todas as disciplinas apareceram na nuvem, o programa considera a recorrência mínima de três vezes para a elaboração da imagem, portanto, para a representação dos dados dessa pesquisa o intervalo de recorrências das disciplinas foi entre 3 a 5. Desta forma, identificamos 3 grupos:
Disciplinas de menor recorrência (3): administración deportiva, pedagogía deportiva, nutrición, estadística deportiva e fisiología deportiva;
Disciplinas de recorrência moderada (4): fundamentos técnico tácticos, reglamento de juego e fundamentos tácticos;
Disciplinas de recorrência elevada (5): fundamentos técnicos, psicologia e entrenamiento desportivo.
Os resultados analisados permitiram perceber a ênfase na oferta das disciplinas de fundamentos técnicos, treinamento esportivo e psicologia. Parece razoável observar que o treinamento esportivo seja disciplina central nos cursos de formação de técnicos desportivos, dado que a prática profissional no ensino da modalidade está diretamente ligada ao processo de ensino-aprendizagem-treinamento.
De acordo com Gomes (2009), o treinamento esportivo é um processo orientado para o aperfeiçoamento das capacidades físicas, das habilidades técnico-táticas, os aspectos psicológicos e sociais para a prática de determinada modalidade. O processo de treinamento é uma tarefa complexa que articula vários elementos que englobam o ensino dos esportes. Nesse sentido, o treinador esportivo deve apropriar-se de conhecimentos, competências e habilidades que lhe permitam intervir assertivamente, relacionando constantemente a teoria com a prática.
Greco e Romero (2012, p. 34) afirmam a importância de compreender a modalidade de forma integrada no desenvolvimento do treinamento esportivo:
O handebol é caracterizado pela aplicação de técnicas de movimentos específicas da modalidade, que precisam ser adequadas às diferentes situações encontradas no jogo. Nesse sentido, faz-se necessário o entendimento da modalidade segundo uma perspectiva integrada relacionando os aspectos físicos, psicológicos, técnicos e táticos independentemente do nível de desempenho esportivo, ou seja, faz-se necessária uma mudança no paradigma de entendimento da modalidade.
A presença dessa disciplina na grade dos cursos de formação assume papel fundamental no processo formativo de técnicos de handebol, por estar diretamente ligada com as atribuições de atuação do técnico desportivo. Os cursos do Paraguai e Uruguai contém a disciplina em todos os módulos/semestres, denominada como: “Entrenamiento” e “Entrenamiento deportivo del handball”. Por outro lado, no curso Argentino a disciplina está vinculada a fisiologia, apresentada como “Fundamentos de fisiologia y del entrenamiento deportivo infanto juvenil”.
Outra disciplina de ênfase na pesquisa, e que também tem relação com o treinamento esportivo, é a disciplina de fundamentos técnicos. Roth (1990) compreende os fundamentos técnicos das modalidades como programas motores especializados executados pelo atleta, a técnica específica está relacionada ao comportamento motor do atleta na estrutura e linguagem do jogo. No caso do handebol, os fundamentos técnicos são: passe, recepção, drible, finta, arremesso, bloqueio defensivo, deslocamento básico defensivo, marcação por impedimento e as diferentes técnicas de goleiro (Oliveira, 2013).
Os programas motores não são engessados, mas através de estruturas básicas de movimentos o atleta consegue unir, combinar e variar a execução adequadamente a cada situação do jogo (Roth, 1990). Dessa forma, cabe ao técnico desportivo conhecer os fundamentos específicos da modalidade e criar exercícios que estimulem a aprendizagem das técnicas, desde os programas motores mais simples aos mais complexos.
O ensino da técnica no handebol deve estar sempre atrelado à tática, dado que estabelecem íntima relação no jogo (Vieira e Freitas, 2007).
Durante o processo de ensino-aprendizagem e treinamento do handebol, a estimulação de aspectos táticos (quando e por que fazer) e técnicos (como fazer) deve ocorrer concomitantemente, já que, enquanto o praticante entende a lógica do jogo e se comporta com autonomia e independência, precisa aprender os diferentes procedimentos que podem ser realizados durante o jogo (Greco e Romero, 2012, p. 36-37).
É possível observar que no curso ofertado pelo Paraguai, a técnica e a tática são disciplinas separadas, enquanto no curso da Argentina são integradas. Podemos inferir que a Argentina se aproxima da teoria de Roth (1990), um dos fatores que culminam para essa aproximação com a teoria do ensino técnico-tático, é a presença do Professor Doutor Pablo Juan Greco como professor do curso, autor que defende a estrutura do treinamento técnico-tático integrado.
O currículo do curso argentino nos componentes específicos é mais descritivo, apontando uma intencionalidade pedagógica bem definida nas disciplinas ofertadas pelo programa, como, por exemplo: “Didáctica 3: Técnica/táctica individual para el nível”. O Uruguai, por sua vez, identifica na grade curricular a disciplina apenas como “Técnica”, o que pode ser propriamente relacionado aos fundamentos técnicos do handebol ou o termo utilizado no currículo para designar o componente específico da modalidade. Por outro lado, o Paraguai identifica a disciplina como “Fundamento técnicos de handball”. Nesse sentido, inferimos que o curso argentino, embora não seja de formação superior, demonstra aproximação com a linguagem científica do campo epistemológico da ciência do esporte.
Por último a disciplina de psicologia, que se mostra presente em todos os níveis/semestres de formação, apresentada desde forma ampla, como “Psicología”, e também específica “Psicología del deporto”. De acordo com Samulski (2009), a psicologia do esporte é uma subdisciplina da ciência do esporte, consiste no estudo científico acerca do comportamento humano no ambiente esportivo, dos processos psíquicos básicos, bem como, os efeitos do exercício físico e da prática esportiva sobre o psicológico dos atletas e técnicos.
Coimbra et al. (2008) realizaram um estudo com 59 treinadores de diversas modalidades que responderam um questionário sobre a importância da psicologia para o ambiente de treinamento. O estudo conclui que, embora os treinadores compreendessem a importância da psicologia, possuíam pouco conhecimento dos aspectos psicológicos na formação dos atletas.
Ainda que o técnico não possa atuar como psicólogo, é importante que em sua formação compreenda os aspectos psicológicos que envolvem a relação dos atletas com a prática esportiva. Nesse sentido, o desenvolvimento da disciplina nos cursos de formação é relevante, visto que, confere ao técnico melhor percepção e compreensão das relações que se estabelecem no processo ensino-aprendizagem-treinamento ao nível psíquico, e como essas relações - indivíduo, tarefa e ambiente – (Newell, 1986), interferem no desenvolvimento dos atletas e equipes.
Com as diferentes manifestações do esporte moderno, compreende que a importância dos conhecimentos da psicologia está além dos objetivos de performance na modalidade, assumindo também, papel de educação emocional e formação cidadã, na transferência dos valores do esporte para outras esferas da vida.
3.2.2 Foco dos programas de formação por grandes áreas
Para analisar o foco de formação de cada curso, realizamos uma categorização das disciplinas por grandes áreas. Para tal, fundamentamos os eixos de formação profissional estabelecidos pelos documentos oficiais com os projetos pedagógicos e grades curriculares dos cursos nas instituições: Escuela Nacional de Entrenadores de Handball Argentino (2020), Instituto de Formación Técnico Deportiva Dreams (2020) e Escuela Nacional de Educación Física (2018).
As disciplinas foram distribuídas em quatro grandes áreas: biodinâmica e biológicas, todas as disciplinas na esfera da saúde; socioculturais e pedagógicas, as que são voltadas para os conhecimentos das ciências sociais e didático-pedagógicas; administrativas mercadológicas, as que são sobre empreendedorismo, marketing, gestão de negócios e administração geral; e por último, específicas da modalidade, referente aos conteúdos voltados para o ensino do handebol, dos elementos técnico-táticos, regulamentação específica e demais disciplinas concernente à modalidade.
Também dialogamos com os trabalhos de Gama e Schneider (2021), e Gómez, Hernández, Arboleda e Vente (2021), desenvolvidos no contexto latino, que trabalham com essa racionalidade, considerando os planos de disciplinas e, principalmente, os projetos curriculares estabelecidos para os diferentes programas analisados, categorizando por eixos/áreas do conhecimento para a formação. Concordamos com esses autores, pois, além de ser uma característica evidente nos programas, é essencial, em estudos dessa natureza, considerar os documentos normativos e prescritivos também como fundamentação e fio condutor na criação das categorias de análise.
As disciplinas nos critérios estabelecidos ficaram dispostas nas grandes áreas conforme apresentado no Quadro 4.
Para essa análise não consideramos a carga horária, apenas a quantidade de disciplinas por grande área. Verificar os focos de cada curso na matriz curricular permite ao pesquisador inferir sobre as bases epistemológicas que encorpam a intencionalidade pedagógica de cada programa de formação. Dessa forma, essa análise levanta questionamentos acerca de quais conhecimentos os programas julgam como importantes para a formação do técnico desportivo de handebol. Os resultados analisados no Microsoft Excel foram representados conforme no gráfico 1.
É perceptível a diferença entre os focos disciplinares de cada programa de formação. No curso do Uruguai há uma ênfase para as disciplinas da área da biodinâmica e biológica, enquanto na Argentina há um foco nas disciplinas específicas. Por outro lado, comparado aos demais cursos, o Paraguai apresenta uma grade curricular mais equilibrada, mas, ainda assim, enfatiza as disciplinas específicas da modalidade.
A prática esportiva com regularidade traz impactos positivos para a saúde dos atletas, na melhoria do condicionamento físico, no funcionamento do sistema fisiológico, no desenvolvimento motor e, também, nos aspectos cognitivos/emocionais. No campo científico alguns trabalhos estabeleceram relação entre a prática do handebol e os aspectos da saúde, biomecânica, fisiologia e áreas afins.
Barbosa (2013) analisou a biodinâmica do arremesso dos atletas de handebol, a necessidade da postura adequada para realizar esse fundamento técnico do jogo. Já Junior Cunha, Scheneider e Dantas (2006), realizaram um estudo com 19 atletas de handebol feminino da seleção brasileira para analisar as características dermatoglíficas, somatotípicas, psicológicas e fisiológicas.
Bedo (2016) analisou a cinemática, cinética e eletromiográfica na articulação do joelho de atletas de handebol durante o arremesso seguido de uma mudança de direção, analisando o comportamento motor e as lesões no joelho. Na área da nutrição, Leme, Kuada, Nacif e Reis (2009), realizaram um estudo transversal que analisa as medidas antropométricas e dados de consumo alimentar de atletas da categoria júnior de handebol. Por outro lado, Schneider, Schneider, Cunha Júnior e Kalinine (2007), analisaram uma pesquisa delimitando os níveis de saúde psíquica das atletas da seleção olímpica de handebol do Brasil.
Percebemos que é do interesse do campo científico pesquisar sobre a relação dos aspectos da saúde humana e a prática esportiva. Assim, compreende a relevância desses conhecimentos na grade curricular da formação de técnicos, dado que, em sua prática profissional, para uma intervenção assertiva, o técnico precisa conhecer o funcionamento do corpo humano na realização dos exercícios, quais os grupos musculares são acionados para a realização de determinado fundamento, o sistema metabólico acionado em cada atividade proposta, e assim, planificar em seu treinamento ações que considere o desenvolvimento dos atletas.
Os conhecimentos na área da saúde nas matrizes curriculares têm sua importância na formação do técnico esportivo, mas a questão principal que emerge dessa análise é: qual a porcentagem da grade curricular deve ser destinada a essa área? Nos programas de formação analisados, 46,67% da grade curricular do Uruguai é destinada à área da biodinâmica e biológica, ou seja, quase metade da grade, seguido do Paraguai com 25%, e, por último, a Argentina com 16,67%.
Vale destacar que apenas na matriz curricular do Uruguai contem uma disciplina focada no ensino do handebol para pessoas com deficiência, Handball en Silla de Ruedas. Pode-se problematizar a partir das grades curriculares que não há uma intencionalidade dos cursos da Argentina e Paraguai de formar treinadores para atuar com o esporte numa perspectiva de inclusão desse público-alvo, sendo uma debilidade formativa, dado que a modalidade em cadeira de rodas assume características específicas tanto da sua prática, regulamentação, dinâmica de jogo, técnica e tática, quanto das características de seus praticantes, necessitando de um ensino focalizado nessas especificidades (Borges et al., 2015).
Com base nesses dados, podemos inferir que, embora seja perceptível que os programas considerem esses conhecimentos para a formação do técnico, destinar grande porcentagem a área da saúde pode suprimir as outras áreas de igual importância, fazendo com que o curso favoreça determinados conhecimentos em detrimentos de outros. Também se identifica a falta de disciplinas com ênfase no ensino dos esportes para pessoas com deficiência.
O curso argentino, por outro lado, apresenta em sua grade curricular expressiva ênfase nos componentes específicos da modalidade, ocupando 75% das disciplinas totais. Assim, o curso objetiva que os técnicos desportivos de handebol tenham conhecimento aprofundado da modalidade, o que vai ao encontro do perfil profissional intencionado pela instituição apresentado no primeiro eixo de análise. As disciplinas específicas do curso Argentino, em comparação com os outros programas, estão mais descritivas na grade curricular, apresentando as especificidades que apontam para as características pedagógicas do programa.
Podemos inferir que essa descrição das disciplinas e ênfase nos componentes específicos seja explicada pela aproximação da Escuela Nacional de Entrenadores de Handball Argentino (E.N.E.H.A.) com a Confederação Argentina de Handebol. A escola é considerada um braço da confederação, e nesse sentido, o curso se aproxima do campo profissional do handebol, objetivando a formação para a atuação no contexto do sistema que organiza, administra e coordena as manifestações da modalidade no país.
Por último, o curso do Paraguai apresenta uma matriz curricular equilibrada por área de conhecimento, destinando: 41,67% para conhecimentos específicos da modalidade; 25% para biológicas e biodinâmica; 20,83% para socioculturais e pedagógicas; e, 12,5% para administrativas e mercadológicas. Em comparação com os cursos da Argentina e do Paraguai, o curso paraguaio oferece maior porcentagem de disciplinas nas áreas socioculturais e pedagógicas, e, administrativas e mercadológicas, o que é um diferencial para os técnicos que se formam nesse programa.
Velasco (2022) compara a eficiência entre duas metodologias de ensino no ensino de handebol em uma escola de Valladolid, Espanha. O autor utiliza a metodologia de gamificación e a tradicional. O estudo conclui que a metodologia gamificación é mais eficiente pelo caráter lúdico do jogo, envolvendo as crianças nas atividades propostas. Já Oviedo, Buelot, Saavedra e Alva (2010), utilizam uma estratégia pedagógica baseada no modelo psicoeducativo. O estudo realizado com 60 estudantes de uma instituição no Peru, concluiu que a aplicação dessa estratégia no ensino do handebol melhorou significativamente as aprendizagens da modalidade.
Aguilar (2014) realiza um estudo de análise da produção científica sobre o handebol nas revistas da Web of Science, dos 366 artigos analisados,14 eram de temas de investigação na área da sociologia do handebol e 10 artigos relacionados ao processo de ensino-aprendizagem. O artigo mostra que a maioria da produção acadêmica do handebol gira em torno dos temas da fisiologia, das lesões do esporte, condicionamento físico, aspectos técnicos e táticos e a psicologia. Com base nesse estudo, identificamos a necessidade de ampliar a discussão sobre os aspectos sociológicos e pedagógicos do handebol.
Essa área analisada diz respeito aos conhecimentos sociológicos e pedagógicos que atravessam a modalidade, a compreensão de seus significados sociais e as possíveis metodologias e estratégias de ensino. Nesse sentido, é importante que o técnico desportivo compreenda que o esporte é uma produção cultural da humanidade, que detém valores e significados para seus praticantes, perpassando por diversos atravessamentos sociais, essa compreensão amplia sua atuação no entendimento da modalidade em um contexto social mais amplo (Tubino, 1999; Elias e Dunning, 1992). Esses conhecimentos permitem ao técnico desportivo construir uma prática de ensino que seja coerente com a realidade e o contexto social.
Em comparação com os outros cursos, o curso do Paraguai possui mais disciplinas destas temáticas. Objetiva uma formação equilibrada do técnico, correspondente ao perfil profissional que a instituição visa formar, preparando o treinador para atuar em outros espaços de ordem pública e privada. Nesse sentido, a diversificação e equilíbrio na oferta das disciplinas promove uma formação que contempla diferentes conhecimentos, ampliando o campo de atuação profissional.
4. Considerações finais
A presente pesquisa objetivou analisar os programas de formação de técnicos de handebol em três escolas na Argentina, Paraguai e Uruguai. Através dos dois eixos de análise, identificou as diferenças entre os cursos em sua estrutura e intenção pedagógica nos currículos de formação. Cada programa apresentando suas especificidades e os conteúdos que julgam importantes para a atuação profissional do técnico desportivo de handebol. A Argentina com grande ênfase nos conteúdos específicos da modalidade, por outro lado, o curso do Uruguai com ênfase nas disciplinas das áreas da saúde, e por último, o curso do Paraguai apresentando uma formação equilibrada nos componentes curriculares por área.
O desenvolvimento de pesquisas como esta levanta reflexões importantes sobre a relação da intencionalidade de formação de técnicos de handebol na América Latina, em específico Argentina, Uruguai e Paraguai, e a necessidade do campo de atuação profissional com a modalidade. Fica evidente a necessidade de ampliar os estudos e pesquisas que investigam a temática para construir um campo de discussões na América Latina com intuito de investigar as manifestações do handebol em cada realidade e como a formação profissional pode ir de encontro a cada contexto. Nesse sentido, pesquisas dessa natureza são precursoras e promissoras para ampliar e potencializar o handebol enquanto produto cultural nos contextos de sua prática, sendo o profissional e sua formação elementos importantes para esse avanço.