Apesar do termo grego νόμος (nómos), “lei”, ter um sentido primariamente social e político na Antiguidade, em alguns contextos este termo acaba recebendo um aspecto teológico, como é o caso de seu uso pelo livro de 2 Macabeus. Afinal, em 2 Macabeus nómos também aparece em particular associação com Deus, principalmente quando o termo está com adjetivos,1 como se pode perceber quando se atenta para os vários casos do termo e suas variantes em 2 Macabeus, conforme a tabela abaixo:
Pode-se notar, portanto, que nómos serve não somente como referência à “ Lei de Moisés”, ou seja, o texto sagrado judaico (nº 193 e nº 244 ), assim como às especificidades jurídicas dos judeus decorrentes deste texto (esp. nº 1 e nº 20), ao mesmo tempo que também serve como meio de referência ao próprio “judaísmo”, ou seja, ao modo de vida judaico como um todo.
Afinal, no livro de 2 Macabeus o próprio sumo sacerdote Jasão, duramente criticado no livro, é chamado de “apóstata das leis” (nº 5), assim como outro sumo sacerdote, Menelau, é acusado de ser um “traidor das leis” (nº 6). Tais acusações aos sumos sacerdotes devem ser percebidas em sua abrangência, uma vez que são decorrentes não somente de uma crítica religiosa, pelo descumprimento das leis sagradas, mas também de uma crítica cultural, pela “helenização” da Judeia5 decorrente e relacionada à relação destes sumos sacerdotes com o rei selêucida Antíoco Epifânio e, evidentemente, à adoção do estilo de vida grego (2 Mac. 4.11ss.), os quais, após o decreto de Antíoco e a consagração do Templo a Zeus (2 Mac. 6), passaram a ser vistos como formas de traição não somente aos costumes judaicos mas também ao próprio “judaísmo” (Ioudaismós).6
Sendo assim, ambos –Jasão e Menelau– devem ser percebidos não somente como apóstatas da fé judaica, mas também como traidores de seu povo, não apenas ofendendo um modo de vida, mas também uma estrutura jurídica definida pelas leis próprias dos judeus. Afinal, assim como o Ἰουδαϊσμός (Ioudaismós) ofendido é composto por leis, as νόμοι (nómoi), “leis”, também são, inversamente, o grande símbolo do Ioudaismós, de modo que os opositores ao Ἑλληνισμός (Hellenismós) não apenas lutam pelas nómoi (nº 23), mas também estão dispostos a morrerem pelas nómoi, a exemplo de Judas (nº 17), Eleazar (nº 10) e os sete irmãos mártires (nº 11-16), que são apresentados no texto de 2 Macabeus em completa oposição a Jasão e Menelau.
Para além disto, o texto de 2 Macabeus também fala das “leis divinas” (nº 4), das “leis de Deus” (nº 8), das “suas leis” (nº 12-14), e mesmo das “leis por ele estabelecidas” (nº 18). Ao mesmo tempo, porém, estas leis possuem um caráter histórico: as leis são de seus pais (nº 7, nº 11 e nº 16), ou ainda, mais especificamente, são a própria Lei “que foi dada aos nossos pais por meio de Moisés” (nº 15). Mesmo que não esteja claro à primeira vista, os dois aspectos estão relacionados, como se pode perceber em 2 Macabeus 6.1, onde ambos os usos (nº 7/ nº 8) aparecem em paralelismo, indicando que “as leis de seus pais” (nº 7) e “as leis de Deus” (nº 8) são a mesma coisa. Assim, é possível de se notar que a designação das leis como sendo as “leis de seus pais” (πατρίων νόμων), que também poderia ser traduzido como “leis ancestrais”, não implica em negação da origem divina da mesma (Himmelfarb, 1998, p. 28, nota 17),7 mas antes acrescenta a esta um valor político diferenciado.
Apesar do valor e da sacralidade das leis judaicas estarem, para os próprios judeus, na origem divina desta,8 para o público helenístico de 2 Macabeus (e da revolta como um todo) é o caráter “ancestral” destas leis que lhes dá valor político. Como bem indicado por Robert Doran (2011, p. 427), as πάτριοι νόμοι (pátrioi nómoi), “leis ancestrais”, serviam como “um slogan que carregava grande apelo emocional” no mundo helenístico. Segundo Tucídides,9 por exemplo, durante a Guerra do Peloponeso o partido democrático teria utilizado das pátrioi nómoi em seu discurso político em Samos, não somente afirmando que seus opositores fizeram mal em abolir as leis ancestrais, mas também indicando que tentariam preservar tais leis e forçar os oligarcas a fazerem o mesmo. A proibição das leis ancestrais, portanto, tal qual é a apresentação de 2 Macabeus da “perseguição” de Antíoco, era algo extremamente malvisto no ambiente político do mundo helenístico.10
As pátrioi nómoi também eram, segundo Elias Bickerman (2007, Vol. I, p. 340), “o primeiro favor concedido por um rei helenístico a uma cidade conquistada”. Afinal, sendo conquistada, não mais possuía o direito de existir a partir de suas leis e instituições, apenas as retomando através de um ato promulgado pelo seu novo mestre (Bickerman, 2007, Vol. I, p. 340).11 No caso judaico, Antíoco III havia concedido o direito de que os judeus continuariam com “suas leis ancestrais” (τοὺς πατρίους νόμους).12 Mais tarde, porém, João Hircano chega a Antíoco VII, após a rendição de Jerusalém, que “restaure aos judeus sua constituição ancestral”. 13
Também a restituição das pátrioi nómoi eram particularmente importantes. Como bem indicado por Políbio, várias cidades que haviam sido destituídas de suas leis ancestrais após serem compelidas a entrarem na Liga Etólia14 tiveram sua forma de “governo ancestral” (τὰ πάτρια πολιτεύματα) restituída e puderam novamente praticar “suas leis e constituição ancestrais” (πολιτείαις καὶ νόμοις χρωμένους τοῖς πατρίοις).15 Outro exemplo importante é Esparta: apesar de Cleomenes ter alterado a constituição de Esparta após conquista-la, Antígono veio depois a reestabelecer sua política ancestral.16
Também os romanos foram exaltados por restaurarem a “constituição ancestral” (τὸ πάτριον πολίτευμα) de Foceia,17 que provavelmente havia perdido a prática de suas leis ancestrais após ser tomada por Seleuco, filho de Antíoco III (Doran, 2011, p. 427). A restauração das pátrioi nómoi, portanto, era uma prática não somente bem vista politicamente, mas também um meio de exaltar uma atitude ou personagem político, até porque a restauração de leis implicava em melhora política, tanto entre os gregos como posteriormente entre os romanos.
Assim, quando Otávio restaurou uma aparência de legalidade em 28 a. C., a apresentou como uma restauração da República e das antigas leis,18 de modo que sua atitude foi comemorada com uma moeda de ouro19 (Figura 1) trazendo a inscrição “restaurou a leges e iura 20 do povo romano” (Kantor, 2012, p. 68), a fim de legitimar a nova situação romana, que estava se iniciando, com a constituição do Império (27 a. C.) como restauração da República.21 Segundo o próprio Augusto, as suas três recusas (em 19, 18 e 11 a. C.) ao desejo do Senado e do povo de que se tornasse único e plenamente empoderado guardião da lei e da ordem (“curator legum et morum summa potestate solus”), se deram por seu cuidado em não aceitar nenhum cargo que fosse “inconsistente com o costume de nossos ancestrais” (“contra morem maiorum”).22
Figura 1 Moeda de ouro de Otávio23
![](/img/revistas/synth/v26n1//84660184006_gt3.png)
Anverso: Rosto de Otávio Augusto virado à direita. Inscrição: “IMP[ERATOR] CAESAR DIVI F[ILIUS] CO[N]S[UL] VI”. Reverso: Otávio sentado em uma “sella curulis” virado à esquerda, segurando um pergaminho na mão direita e com uma caixa de pergaminhos aos seus pés, à esquerda. Inscrição: “LEGES ET IVRA P[OPVLO] R[OMANO]24 RESTITVIT”. Moeda de 28 a. C., cunhada na região da atual Turquia. 18 mm. de diâmetro e 7.95 g.
Da mesma forma, 2 Macabeus parece apresentar Judas Macabeu como o restaurador das leis ancestrais dos judeus (nº 1), não somente legitimando a Revolta dos Macabeus como também estabelecendo uma propaganda do próprio judaísmo aos moldes gregos.25 Esta propaganda, porém, não se dá somente em relação às leis, mas também no uso da ancestralidade como elemento discursivo importante.26 Assim, 2 Macabeus não fala somente das “leis ancestrais” (nº 7, nº 11 e nº 16), mas também dos “festivais ancestrais” (πατρῴους ἑορτὰς, 2 Mac. 6.6), dos “caminhos ancestrais” (μεταθέμενον ἀπὸ τῶν πατρίων, 2 Mac. 7.24), das “honras ancestrais” (πατρῴους τιμὰς, 2 Mac. 4.15), e até mesmo do “idioma ancestral” (τῇ πατρίῳ φωνῇ ),27 utilizado na resposta dos mártires a Antíoco (2 Mac. 7.8, 27), na luta do Macabeu (2 Mac. 12.37) e mesmo no triunfo judaico sobre Nicanor (15.29).28 Deste modo, não somente o Ioudaismós é apresentado como uma defesa das tradições ancestrais, mas também o próprio Hellenismós aparece consequentemente como uma “inovação perigosa” (Himmelfarb, 1998, p. 27),29 pois leva os judeus a abandonarem as “glórias ancestrais” (πατρῴους τιμὰς) em virtude das “glórias helênicas” (Ἑλληνικὰς δόξας, 2 Mac. 4.15).
A “lei” (νόμος) em 2 Macabeus, portanto, apesar de seu caráter religioso –evidente pela relação da mesma com Deus, tendo origem divina, e mesmo sendo o símbolo da religião judaica–, é também a designação do próprio Ioudaismós como uma realidade política, como o uso das “leis ancestrais” (πάτριοι νόμοι) deixa claro. É justamente por isso que a resistência política empreendida pelos macabeus pode ser considerada uma luta em nome da própria Lei judaica, ou seja, em nome das suas leis, de sua religião, de seus direitos políticos e mesmo, evidentemente, do modo de vida judaico.30
A Revolta dos Macabeus, portanto, não foi somente uma luta com intenção jurídica e cultural, mas também política: não foi somente pelas leis, mas “pela lei e pela pátria” (2 Mac. 8.21 [17]). Também não foi somente cultural e política, mas também religiosa: se deu em defesa “da Lei, da pátria e do Templo sagrado” (2 Mac. 13.10 [22]). A luta, portanto, foi uma luta na qual seus integrantes se empenharam para “recuperarem o Templo, (...) libertarem a cidade e (...) restabelecerem as leis” (2 Mac. 2.22 [nº 1]), de modo que nenhuma esfera pode ser ignorada: afinal, a Revolta foi “pelas leis, pelo Templo, pela cidade, pela pátria e por seus direitos de cidadãos” (2 Mac. 13.14 [23]).
Com o estudo a respeito da cidade, das leis e mesmo do slogan das “leis ancestrais”, se pode perceber que, para 2 Macabeus, “Jerusalém é uma polis, os judeus são cidadãos, e o seu modo de vida é uma politeia”, como lembra Martha Himmelfarb (1998, p. 30). Mesmo o uso dos termos nómos e nómoi “reflete esta compreensão política do modo de vida judaico” (Himmelfarb, 1998, p. 30), indicando o aspecto político do Ioudaismós.31 Também o uso do slogan das “leis ancestrais”, que se dá “de acordo com a concepção grega da nação concebida como uma entidade moral” (Renaud, 1961, p. 60), corrobora no sentido de uma percepção política do Ioudaismós, apresentando-o aos moldes do pensamento político grego, mesmo que seja construído em oposição ao Hellenismós.