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Sociohistórica

versão On-line ISSN 1852-1606

Sociohistórica  no.52 La Plata  2023

http://dx.doi.org/https://doi.org/10.24215/18521606e204 

Dossier

O sionismo como postura intelectual e projeto político: uma aproximação da perspectiva palestina

Zionism as an intellectual posture and a political project: an approach from the Palestinian perspective

El sionismo como postura intelectual y proyecto político: una aproximación desde la perspectiva palestina

1Universidade de Brasília, Brasil

Resumo

Este artigo se divide em duas partes. Na primeira, aborda os princípios centrais do sionismo como elaboração intelectual que responde negativamente à questão judaica na Europa. Argumenta que o caráter negativo desse ideário reside na comunhão de fundamentos com o problema mesmo a que pretende responder, o antissemitismo; bem como se alinha a uma perspectiva imperialista, colonial e racista em dois sentidos, particularmente europeia. Para isso, baseia-se nas concepções de autores fundadores do ideário sionista e do sionismo político, Moses Hess e Theodor Herzl, e de autores que examinam criticamente tanto a concepção teórica como a realização política do sionismo, isto é, a colonização da Palestina e a fundação do Estado de Israel. Na segunda parte, apresento a novela Retorno a Haifa, de Ghassan Kanafani, que contribui para concretizar o sentido colonial e intrinsecamente racista do projeto sionista e sua realização prática. O texto se insere na questão da tomada de posição diante de um problema social.

Palavras-chave Sionismo; Questão Palestina; Supremacia Racial; Imperialismo; Ghassan Kanafani

Abstract

This article is divided into two parts. In the first, it addresses the central principles of Zionism as an intellectual elaboration that responds negatively to the Jewish question in Europe. It argues that the negative character of this set of ideas resides precisely in the communion of foundations with the very problem it intends to respond to, anti-Semitism; further, it aligns with an imperialist, colonial and two-way racist perspective, particularly European. For this, it is based on the conceptions of founding authors of the Zionist ideology, and political Zionism, Moses Hess and Theodor Herzl, and of authors who critically examine both the theoretical conception and the political realization of Zionism, that is, the colonization of Palestine and the foundation of the State of Israel. In the second part, I present the novel Return to Haifa, by Ghassan Kanafani, which contributes to concretize the colonial and intrinsically racist sense of the Zionist project and its practical realization. The text assumes the broad point of view of taking a position on a social problem.

Keywords Zionism; Palestinian Question; Racial Supremacy; Imperialism; Ghassan Kanafani

Resumen

El artículo se divide en dos partes. En la primera, aborda los principios centrales del sionismo como una elaboración intelectual que responde negativamente a la cuestión judía en Europa. Argumenta que el carácter negativo de este ideario reside en la comunión de fundamentos con el problema mismo al que pretende responder, el antisemitismo, así como se alinea con una perspectiva imperialista, colonial y racista en dos sentidos, particularmente europea. Para ello, se basa en las concepciones de autores fundadores del ideario sionista y del sionismo político, Moses Hess y Theodor Herzl, y en autores que examinan críticamente tanto la concepción teórica como la realización política del sionismo, es decir, la colonización de Palestina y la fundación del Estado de Israel. En la segunda parte, se presenta la novela corta “Retorno a Haifa”, de Ghassan Kanafani, que contribuye a concretizar el sentido colonial e intrínsecamente racista del proyecto sionista y su realización práctica. El texto se enmarca en la cuestión de tomar una posición frente a un problema social.

Palabras clave Sionismo; Cuestión palestina; Supremacía racial; Imperialismo; Ghassan Kanafani

Introdução

O projeto sionista foi, finalmente, em fevereiro 2022, condenado pela Anistia Internacional como um sistema organizador do apartheid. O relatório, intitulado O Apartheid de Israel contra os palestinos: sistema cruel de dominação e crime contra a humanidade, com 280 páginas, examina as várias frentes pelas quais o Estado israelense impõe a dominação e controle sobre o povo palestino, suas terras e recursos, operando um sistema de apartheid social, segregação racial e limpeza étnica tanto no interior das fronteiras do Estado como nas terras palestinas ocupadas da Cisjordânia e de Gaza. Lemos na apresentação ao relatório:

A Anistia Internacional analisou a intenção de Israel de criar e manter um sistema de opressão e dominação sobre os palestinos e examinou seus principais componentes: fragmentação territorial; segregação e controle; desapropriação de terras e propriedades; e negação de direitos econômicos e sociais. Concluiu-se que este sistema equivale a apartheid. Israel deve desmantelar este sistema cruel e a comunidade internacional deve pressioná-lo a fazê-lo. Todos aqueles com jurisdição sobre os crimes cometidos para manter o sistema devem investigá-los. (Amnesty International, 2022. Tradução da autora —doravante T. A. —)

O relatório tem início com a citação de uma afirmação postada nas redes pelo atual primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em março de 2019: “Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos... [mas sim] o Estado-nação do povo judeu e apenas dele” (Amnesty International, 2022, p. 11, T. A.).

A clareza com que líderes do Estado como Netanyahu expressam seu projeto supremacista não é um desenvolvimento político recente. Este texto procura mostrar que o projeto sionista, desde sua primeira formulação em Moses Hess, bem como em seu início como projeto político em Theodor Herlz (respectivamente em meados e no fim do século XIX), tem o mesmo fundamento racista — o projeto de um Estado “do povo judeu e apenas dele”, que perpassa as suas formas teóricas e práticas.

Pensando que as formulações teóricas e políticas carregam uma tomada de posição diante dos problemas que tomam por objeto —um partidarismo—, procuro argumentar que o sionismo é uma elaboração intelectual que responde negativamente à questão judaica na Europa. O caráter negativo desse ideário reside no fato de compartilhar de princípios com o problema mesmo a que pretende responder, o antissemitismo. Alinha-se a uma perspectiva imperialista, colonial e racista em dois sentidos, particularmente europeia. Argumento que o sionismo assume uma perspectiva que nega ao próprio povo judeu a sua universalidade humana, bem como pressupõe a sub-humanidade e a inferioridade racial do povo árabe palestino, assim como dos povos não-ocidentais.

Tanto teórica como politicamente, ao contrário de significar a única saída ao problema do antissemitismo europeu, significa uma tomada de posição contra a inserção da população judaica em seus países de origem, contra a luta pela igualdade jurídica de direitos civis, e contra a igualdade racial.

Sionismo: ideologia de supremacia racial e prática de colonização

O sionismo é uma teoria e um movimento prático europeu, que emerge no bojo das lutas nacionais na Europa, e que se apresenta como resposta ao antissemitismo vigente há séculos no continente europeu, enquanto na prática se constitui como instrumento do imperialismo europeu no oriente médio. Antes de tudo, é preciso pontuar que o antissemitismo é um fenômeno particularmente europeu, que toma formas e intensidades diversas conforme os países e as regiões, bem como conforme o tempo, ao longo da modernidade. Contra o antissemitismo, as lutas por igualdade de direitos se espalharam na Europa do século XIX no âmbito da institucionalidade política, pelo direito à igualdade real no âmbito da vida civil, e ao livre desenvolvimento cultural e religioso, buscando centralmente a integração dessa população às diversas nações europeias.

O antropólogo Uri Davis, membro da Autoridade Nacional Palestina e professor na Universidade de Birzeit (Ramallah), em seu livro Israel, Estado de Apartheid -Possibilidades da luta interna (Apartheid Israel . Possibilities for the Struggle Within), publicado em 1987 e reeditado com acréscimos em 2003, faz uma síntese do contexto do surgimento da ideologia sionista, como uma entre duas possibilidades de posição e pensamento diante da condição da população judaica na Europa. Ele escreve:

O sionismo político emerge no contexto da industrialização europeia e da transformação capitalista da ordem social feudal europeia, que promoveu a secularização da razão e da moralidade e deu origem a duas tradições paradigmáticas dominantes do pensamento moderno ocidental: iluminismo e racismo.

Para as comunidades judaicas da Europa, o iluminismo trouxe emancipação e igualdade jurídica de direitos civis. Em paralelo, um novo racismo secular se manifestou na forma de perseguição antijudaica, que culminou em reiterados pogroms, assassinatos em massa e, sob a ocupação nazista na Europa, aniquilação em massa.

Aqueles entre as comunidades judaicas que optaram pelo secularismo e iluminismo, emprestaram seu apoio, de uma forma ou de outra, a organizações políticas liberal-democráticas, socialistas ou revolucionárias dos países em que residiam. Aqueles que optaram pelo secularismo e o racismo, voltaram-se, de uma forma ou de outra, ao sionismo político (Davis, 2003, p. 9, T. A.).

Ghassan Kanafani, escritor nacional palestino, mas também intelectual, jornalista e importante militante da Frente Popular pela Libertação da Palestina, no conjunto de estudos escritos durante a década de 1960 que compõem o livro Sobre a literatura sionista (On Zionist Literature) defende que a concepção sionista não ganha força num período ou região de recrudescimento da opressão sobre a população judaica, antes o contrário. Para ele, o sionismo político foi em última instância uma escolha de uma parcela abastada da população judaica europeia, fundada no racismo e na inclinação supremacista, voltada a alcançar poder a serviço da dominação imperialista, e às custas das camadas mais populares dos judeus, que buscavam a igualdade civil e política em seus próprios países.

Ambos os intelectuais citados, engajados na causa da libertação da Palestina, invertem assim a narrativa sionista de acordo com a qual o sionismo era uma necessidade incontornável à questão judaica na Europa, uma resposta inescapável ao antissemitismo e ao suposto fracasso da perspectiva da igualdade e da integração. Kanafani escreve:

Ao passo que se elevavam oportunidades para a integração e assimilação, observamos, contudo, um aumento da corrente chauvinista nos círculos judaicos social e economicamente privilegiados. O fluxo constante de literatura sionista que começou a aparecer em meados do século enfim conquistou o mainstream literário no final do século, levando à consolidação do sionismo político no Primeiro Congresso Sionista na Basileia em 1897 (Kanafani, 2022a, p. 27, T. A.).

De acordo com nosso autor, se é assim, um movimento judaico deveria demandar e lutar precisamente por essas condições de prosperidade e liberdade para a população judia na Europa. Contudo, não é isso que se observa: “Mas o movimento [sionista] toma o caminho oposto —por motivos racistas— alegando a superioridade judaica e recusando a integração, o que por sua vez contribuiu para minar as perspectivas de coexistência” (Kanafani, 2022a, p. 21, T. A.). Em oposição à integração do povo judaico em suas várias nações, o movimento luta pela segregação. Trata-se de uma oposição à perspectiva iluminista de igualdade universal, à herança de Moisés Mendelssohn, que acarreta que as religiões pertencem aos âmbitos privados da vida social, não se definindo como determinantes do modo da vida pública, que caminha para a laicização. Esse ideário também contradiz a concepção de que uma religião caracteriza por si só uma unidade, define um povo único, distinto dos demais. O judaísmo, como as demais grandes religiões, não caracteriza um povo unitário. Constitui uma unidade religiosa, mas não uma unidade nacional.

Em “A dialética do sionismo”, o intelectual brasileiro Maurício Tragtenberg se contrapõe à premissa sionista do povo único:

É muito provável que os habitantes considerados árabes da Palestina possuíam mais “sangue” hebraico do que a maior parte dos judeus da Diáspora (Dispersão) cujo exclusivismo religioso não impedia a absorção dos convertidos de origem diversa. (...) Historicamente, bastará para nos convencermos disso evocar o Estado judeu da Arábia do Sul no Século XI de base árabe meridional judaizada, o Estado judeu turco dos Khazars, no sudeste da Rússia nos séculos VIII a X, os judeus assimilados da China, os judeus negros do Cochim, os Falashas da Etiópia. Admite-se que o grupo heterogêneo formado por todos os judeus do mundo permanecesse em contato com o judaísmo religioso, fosse considerado dotado de caracteres permanentes a despeito de suas mudanças internas, cabe perguntar: como seria possível atribuir-lhes direitos sobre um território determinado? Nesse caso poderiam os árabes reivindicar a Espanha (Tragtenberg, 2003, p. 8).

Partindo da concepção do povo único, cuja base é religiosa, e não histórica, os primeiros pensadores do sionismo opõem-se à integração dos judeus aos países e culturas em que estão inseridos. Moses Hess, intelectual alemão considerado o primeiro sionista, embora esse termo ainda não fosse empregado, é o primeiro intelectual a propor a criação de um Estado judeu na Palestina, em meados do século XIX. O intelectual estadunidense David Flakser, em seu texto “Moses Hess, primeiro dos sionistas modernos” (1962), reconhece que o “principal desejo da população judaica na Alemanha, na época de Hess, era desenterrar-se do gueto, se emancipar nos países em que residia. O ideal era alcançar os mesmos direitos legais da população não-judia” (Flakser, 1962, p. 15, T. A.). Contudo, para Hess, embora essa emancipação fosse significativa para os indivíduos judeus que a alcançassem, para o judaísmo como “nação” essa conquista não apenas não seria positiva, como, ao contrário, significaria o seu enfraquecimento. “A emancipação do indivíduo poderia destruir a fortaleza nacional interna judia, que foi fortalecida no curso da história judaica e expressa num modo de vida judeu, e poderia enfraquecer sua consciência nacional” (Flakser, 1962, p. 16, T. A.).

Nesse raciocínio, Hess se coloca contra a integração dos judeus nos seus países, inclusive acusando de “traidores do seu povo” aqueles indivíduos judeus que lutassem pela igualdade de direitos civis e almejassem a sua emancipação política nas nações europeias de origem. Em Roma e Jerusalém (1918), Hess escreve que “se é verdade que a emancipação judaica não é compatível com a adesão à nação judaica, um judeu deve preterir a primeira pela segunda”. Radicalizando ainda mais essa ideia, lemos que “os judeus não são um grupo religioso, mas uma nação separada. É uma nação que deveria buscar a sua normalidade se reestabelecendo na sua pátria histórica. (...) O judeu moderno (o judeu assimilado) que nega isso não é um apóstata, um renegado religioso, mas sim um traidor do seu povo” (em Flakser, 1962, p. 16, T. A.).

No mesmo sentido segue o pensamento do fundador do sionismo político, isto é, da proposta concreta e articulação efetiva para a fundação de uma nação judaica na Palestina — que é a pátria mitológica dos judeus, identificada à “terra prometida”, e transformada pelo sionismo de lugar transcendental pertencente à narrativa religiosa em lugar geográfico a ser tomado pela força bélica. O austríaco Theodor Herzl escreveu seu projeto em O Estado judeu, de 1896; organizou o primeiro congresso sionista, em agosto de 1897 na Basileia, presidiu a Organização Sionista Mundial, fundada no mesmo ano como consequência do congresso, e articulou com as potências imperialistas a sua realização.

Sobre Herzl e a proximidade da visão sionista com o antissemitismo, Tratenberg escreve, citando uma biografia de Herzl escrita por André Chouraqui, sionista argelino-francês (1917-2007):

Outro traço da política de Herzl era especular com o antissemitismo e com o desejo de se desembaraçar da população judia, para promover a emigração à Palestina. Assim, em 1903, Herzl obteve [apoio] do ministro czarista Plehve, organizador de “pogroms”, iniciando uma tradição política em que a convergência do programa sionista com o dos antissemitas, abertamente reconhecida por ele, tornava-se quase fatal. Plehve promete ao sionismo “apoio material e moral na medida em que certas de suas medidas práticas sirvam para diminuir a população judia na Rússia”, conforme relata Bernfeld (Le sionisme, étude de droite international public, Paris, Jouve, 1920, p. 399 ss.). Isso leva Herzl a dizer que “até hoje meu partidário mais ardente é um antissemita de Petersburgo (hoje Leningrado) Ivan V. Simonyi”, conforme relata A. Chouraqui (T. Herzl, p. 141). Herzl reconhece “Objetar-me-ão razoavelmente que faço o jogo dos antissemitas quando proclamamos que constituímos um povo, um povo único” (Idem, p. 259) (Tragtenberg, 2003, p. 3).

Então, o sionismo, por um lado, se aproxima do antissemitismo porque nega ao judeu a sua universalidade humana e o seu direito de participar de culturas e modos de vida que se distingam do suposto modo de vida judeu, sem deixar de ser judeu. Uri Davis escreve:

Não há nada de coincidência na convergência prática de sionismo político e racismo contra judeus (antissemitismo). O sionismo político e o racismo secular antissemita compartilham uma visão comum sobre a situação existencial das minorias judaicas em sociedades não judaicas (gentias). Tanto o sionismo político como o racismo antissemita acreditam que, dada a incompatibilidade racial fundamental entre não-judeus e judeus, os judeus, como indivíduos e comunidades minoritárias, não podem, por definição, ser —nem se espera que sejam— cidadãos iguais e minorias livres em sociedades e regimes não-judeus (Davis, 2003, pp. 10-11, T. A.).

Por outro lado, o sionismo se aproxima do antissemitismo pelo sentido racista e supremacista, embora aqui pelo reverso, ao considerar o “povo judeu” como povo escolhido com direito divino de colonizar a Palestina. Aqui o caráter contraditório do sionismo se mostra de maneira inequívoca. Defende que os judeus não devem assimilar-se às nações europeias sob risco de perderem a consciência nacional e o modo de vida judaico; ao mesmo tempo, defende que a nação judaica é intrinsecamente ocidental e europeia, portanto, superior e dotada do direito secular e da missão de impor a civilização aos “povos bárbaros” do oriente. Assim, Herzl escreve em O Estado judeu, ao discutir se o melhor lugar para a criação desse Estado seria a Argentina ou a Palestina:

A Palestina é a nossa pátria histórica inolvidável. O simples ouvir citar o seu nome é um chamado poderosamente comovedor para nosso povo. Se Sua Majestade, o Sultão, nos desse a Palestina, nós nos comprometeríamos a sanear as finanças da Turquia. Para a Europa, formaríamos ali parte integrante do baluarte contra a Ásia: constituiríamos a vanguarda da cultura na sua luta contra a barbárie. Como Estado neutro, manteríamos relações com toda a Europa que, por sua vez, teria de garantir nossa existência (Herzl, 1997, pp. 24-25).

As contradições acumulam-se na medida em que o sionismo mistura, conforme seu interesse, reivindicações religiosas e seculares. Em Al Nakba . um estudo sobre a catástrofe palestina, Soraya Misleh (2017) chama atenção ao fato de que o sionismo toma a Palestina como sua “pátria histórica”, sua “terra prometida”, porque é seu berço, a sua origem. Para essa ideologia há um único povo judeu e este emergiu no Oriente; no entanto, o seu espírito próprio e a sua identidade, sua cultura, sua moral e seu pensamento identificam-se ao Ocidente. É um povo europeu. Misleh cita o sionista russo Zeev Jabotinsky, que em 1920 escreveu A muralha de ferro . Israel e o mundo árabe, defendendo o (futuro) Estado de Israel como uma muralha de ferro militar do Ocidente contra o Oriente, bem como advogando a superioridade do povo judeu com relação aos povos árabes: “Nós, judeus, não temos nada em comum com aquilo que significa ‘O oriente’ e agradecemos a deus por isso” (como citado em Misleh, 2017, p. 31).

A concepção do sionismo acompanha a proposta política de colonização. A unidade do povo judeu defendida pelo sionismo adquire um sentido de distinção com relação aos europeus, razão pela qual defendem a criação de um país próprio e fundado na pureza racial judaica, mas traz consigo o mesmo sentido europeu de superioridade racial com relação aos povos não-ocidentais.

Kanafani aborda a primeira manifestação do personagem sionista, em oposição ao personagem judeu, pela pena de Benjamin Disraeli, que pertencia à alta classe e se tornaria primeiro-ministro da Inglaterra em 1874, no romance O Maravilhoso conto de Alroy .The Wondrous Tale of Alroy). Nosso autor afirma que, ali:

Disraeli pinta o mundo inteiro com o mesmo pincel grotesco de Hitler: “raça é tudo.... não há outra verdade”. Ele insistia que mesmo “o que as pessoas podem enxergar como uma ação individual é de fato uma característica racial”. Recordem que era um tempo em que as oportunidades para integração estavam disponíveis. Disraeli impele na direção contrária: “na realidade, não se pode obliterar uma raça pura, é um fato psicológico, uma simples lei da natureza” (Kanafani, parafraseando Disraeli 2022a, p. 34, T. A.).

Ainda examinando a obra de Disraeli, Kanafani cita o crítico Edgar Rosenberg, em From Shylock to Svengali, que comenta a mesma obra. Para ele, o que Disraeli estava efetivamente dizendo é que “os judeus estão destinados, com base na história e na religião, a assumir a liderança moral e intelectual do universo” (Rosenberg como citado em Kanafani, 2022a, p. 34, T. A.).

No final das contas, em diferentes formas de argumentação e figuração, o sionismo seculariza o preceito religioso do “povo escolhido”, e por vários caminhos, seja a superioridade ocidental, racial ou moral e intelectual, considera-se no direito de apropriar-se da Palestina. A fim de fomentar a aceitação popular dessa ideia, o movimento sionista cria o slogan “uma terra sem povo para um povo sem terra”, ainda em finais do século XIX. Propaga-se a ideia de que na Palestina não há um povo, e sim “apenas” beduínos, negros, “tribos” vagando no deserto, e que se trata de um país em ruínas, abandonado. É desnecessário demonstrar a falsidade dessas afirmações. Há várias obras e registros, textuais, fotográficos e mesmo filmagens, que mostram a pujança da vida palestina, que, embora majoritariamente rural, contava com centros urbanos, produção de cultura, organizações políticas etc. Tragtenberg ressalta:

Em toda a obra de Herzl não há uma só menção à existência dos árabes palestinos. Explica-se quando Herzl sonha com o “Estado Judeu” pensando em localizá-lo em qualquer lugar, Argentina, Canadá ou Uganda. Somente quando redige o último capítulo de seu livro verifica que só a Palestina como espaço do futuro “Estado Judeu” seria capaz de mobilizar emocionalmente as massas judaicas da Europa Central (Tragtenberg, 2003, p. 2).

Os sionistas, como europeus, sequer conheciam a Palestina. Inseriam-se no clima heroico do imperialismo europeu, particularmente inglês, no espírito de Rudyard Kipling. Assim, o historiador palestino Nur Masalha narra, a respeito do líder sionista bielorrusso Chaim Weizmann, que viria a ser o primeiro presidente de Israel: “Quando perguntado por Ruppin (chefe do Departamento de Colonização da Agência Judaica) sobre os árabes palestinos, Weizmann replicou: os britânicos nos disseram que são algumas centenas de negros (Kushim) e aqueles não têm valor” (Masalha como citado em Misleh, 2017, p. 32).

O povo árabe palestino é, dessa maneira, definido como um não-povo .cf.Misleh, 2017), é ideologicamente apagado da existência para que possa ser, de fato, expulso ou exterminado. Assim, a criação do Estado de Israel se insere num projeto colonial extemporâneo, de construção de uma fortaleza do Ocidente contra o Oriente, de dominação dos povos árabes.

Com efeito, a colonização da Palestina tem início em 1919, com a derrota do Império Otomano e a divisão do Oriente Médio em protetorados da Inglaterra e da França. Antes mesmo de tornar a Palestina um protetorado inglês, em 1917 a Inglaterra concedeu à Organização Sionista a Declaração de Balfour, que leva o nome do secretário britânico para assuntos exteriores e é endereçada ao líder do movimento sionista inglês, Lionel Rothschild, membro conservador do parlamento e conhecido banqueiro. A declaração constitui a promessa de criação de um “lar judeu” na Palestina e dá início ao fomento à imigração judaica para a região, incluindo a sua ocupação, domínio sobre as terras, recursos e atividades econômicas, o que se realiza durante os anos vinte e trinta. Nessas duas décadas, houve um gigantesco afluxo de imigrantes e de capitais para a região, o que alterou completamente a fisionomia populacional. Apenas para se ter uma ideia, de 10 % em 1919 a população judaica passou a 35 % em 1946. Cerca de três quartos do afluxo de capitais destinavam-se ao fortalecimento da burguesia judaica, que se tornou dominante.

Desta guerra decorreu a fundação do Estado de Israel, mas nunca se estabeleceu o Estado da Palestina. Outras guerras se seguiram que ampliaram muito significativamente o controle de Israel sobre o território, bem como o controle militar de Israel sobre as pequenas áreas em que há um governo civil palestino. A finalidade sempre foi, como é até hoje, a tomada integral das terras e a “ausência” do povo árabe. Mesmo sendo contrário à partilha de 1947 da ONU, bem como de outras tantas resoluções, todo o apoio econômico, político e bélico do Ocidente destina-se a Israel.

O holocausto nazista também acabou por se converter em justificativa para colocar a última pá de cal na perspectiva de inserção do povo judeu. Como forma de pensamento, o sionismo se apropriou do holocausto para propagar-se como viés único, sobrepujando as perspectivas de resistência judaica humanistas e não supremacistas.

Mas o nazismo influenciou o sionismo também de outra maneira. Houve autores que chegaram a tomar o nazismo como referência para sua própria posição, advogando o princípio da raça pura. Uri Davis, no livro acima citado, refere o rabino Joachim Prinz como um desses casos. Em 1934, em seu tratado Nós, judeus .Wir Juden), ele considera que a “revolução alemã” de 1933 evidenciou que “a opção liberal foi perdida para sempre, o único modo de vida político [liberalismo] que o assimilacionismo judaico estava disposto a promover afundou de vez” (citado em Davis, 2003, p. 10, T. A). A resposta a essa falência é nada mais nada menos que o Nacional-Socialismo. Esse deve ser o modelo a seguir para a consolidação do Estado judeu: “Queremos propor, em lugar da assimilação, algo novo: assumir o jugo de aderir ao povo judeu e à raça judaica. Apenas um Estado baseado na pureza da nação e da raça pode oferecer dignidade e honra aos [e apenas aos] judeus que aceitem esses princípios” (citado em Davis, 2003, p. 10, T. A).

Com isso, advoga a centralidade da raça e do sangue:

Ele [o Estado] tem de demandar de nós o reconhecimento de nossa absoluta singularidade e qualidades, já que apenas aqueles que concedem plena honra à sua própria singularidade, seu próprio sangue, podem ganhar o respeito e a honra que são concedidos pelas nações com a mesma inspiração, adeptas do mesmo princípio (citado em Davis, 2003, p. 10, T. A).

Se antes mostramos a proximidade do sionismo com o antissemitismo, em Prinz a “revolução alemã” aparece como parâmetro para a construção de um Estado judeu, que deve, ademais, aspirar ao seu respeito. Embora essa visão, em sua crueza explícita, possa ser considerada particular, e não passível de generalização ao pensamento sionista, o fato é que o Estado de Israel segue, na definição jurídica de sua população própria, esse mesmo princípio racial.

E aqui retomamos ao início do texto, a tardia, mas feliz condenação da Anistia Internacional ao apartheid israelense. A condição de apartheid pode ser verificada no conjunto da legislação do Estado, destrinchado em detalhes por Uri Davis no livro citado, e que não seria possível apresentar neste texto. Vale citar, contudo, as duas leis fundamentais aprovadas pelo Knesset logo após a fundação do Estado, em 1950, a Lei do Retorno e a Lei de Propriedade dos Ausentes. Sob a primeira lei, “todo judeo1 ao redor do mundo tem o direito legal de tornar-se cidadão de Israel na medida em que imigre para o país” (Davis, 2003, p. 70, T. A.). Sob a segunda, vigente até os dias de hoje, o exército israelense pode simplesmente tomar posse de casas, terras, quaisquer propriedades e considerar seus proprietários “ausentes”: quatro milhões de palestinos, os refugiados e seus descendentes, tornam-se assim “ausentes” e “são excluídos na lei do direito real ou potencial à cidadania no estado judaico” (Davis, 2003, p. 71, T. A.).

Passados 75 anos da primeira guerra de ocupação, é interessante observar que a integração dos judeus na Europa e nos Estados Unidos, e em outras partes do globo, como na América do Sul, de fato aconteceu. Na verdade, o processo de inserção efetiva das populações judaicas nas nações do mundo é concomitante ao processo de estabelecimento do Estado de Israel. Mas a integração, o direito ao retorno e à nacionalidade do povo palestino continuam negados. Ou seja, o sionismo se mantém como ideologia racista e supremacista aplicada, acarretando um sistema de apartheid racial, aliás inevitável num Estado que se quer uni-racial, mesmo numa condição mundial radicalmente diversa.

É claro que o apoio das grandes potências ocidentais a Israel demonstra a existência de uma confluência de interesses que extrapolam a própria concepção sionista, mas são coerentes com ela. Israel é, de fato, um posto militar avançado do Ocidente em pleno Oriente Médio. Mas, a finalidade desse texto era apontar a concepção ideológica do sionismo como uma tomada de posição imanentemente reacionária, porque fundada na raça, no sangue, e no solo, uma ideologia que recusa conceber a igualdade humana em termos étnico-raciais, mesmo no estreito escopo da garantia jurídica de direitos civis.

Uma figuração literária palestina da experiência viva da colonização: Retorno a Haifa, de Ghassan Kanafani

Perspectiva e partidarismo são os elementos que pretendo trazer à tona com a breve apresentação de uma novela de Kanafani, em que a expulsão da população palestina das cidades e a expropriação de suas casas a fim de concedê-las aos imigrantes judeus —ou seja, a aplicação da Lei de Propriedade dos Ausentes— são figuradas de maneira realista, viva e sentida. Essa novela é considerada uma das mais pungentes de Kanafani, porque o autor cria uma situação verdadeiramente trágica, em que não é possível atribuir culpa individual a nenhum dos lados do conflito, embora deixe claro onde recai a responsabilidade, bem como aponte para a sua solução necessária: a luta armada contra a ocupação. A indicação do caminho não faz da obra uma novela de tese, porque a solução não emerge do mero desejo e consciência do autor, e sim é a figuração da resistência organizada que efetivamente existia no período representado.

O contexto da narrativa envolve dois acontecimentos históricos principais. O primeiro deles foi a tomada de cidade de Haifa, importante centro urbano, político e cultural palestino pela milícia sionista em 21 e 22 de abril de 1948, antes ainda do fim do mandato britânico, cuja retirada estava prevista para 14 de maio. Os soldados britânicos saíram sem aviso, deixando a cidade nas mãos do Haganah, milícia que atuou durante o mandato britânico, conhecida pelos seus atos terroristas e atrocidades, e que viria a constituir o núcleo das formas armadas de Israel. Com isso, quase toda a população árabe da cidade, cerca de 65 mil pessoas, foi expulsa em apenas dois dias, numa operação sem aviso e sem resistência, em que a milícia cercou e bombardeou a cidade, encurralou a população empurrando-a por um único caminho em direção ao porto, com tal brutalidade que pessoas iam sendo pisoteadas, mortas pelo caminho. Dessa população, a parcela sobrevivente fugiu, via cidade de Akka, ou para outros países árabes, em especial ao Líbano, ou para outras regiões da Palestina que permaneciam ainda sob domínio palestino, como Ramallah, onde acaba se estabelecendo o casal protagonista que vive essa expulsão.

O segundo acontecimento histórico relevante para a narrativa é a Guerra dos Seis Dias em 1967, que resulta numa expansão do domínio israelense sobre terras que se mantinham nas mãos dos árabes, oficialmente territórios da Jordânia (Al-Quds oriental, Cisjordânia), Egito (Gaza, Sinai, Canal de Suez) e Síria (Colinas de Golã), o que significou uma grande derrota para os palestinos. Essa guerra, que torna as terras palestinas de Al-Quds oriental, Gaza e Cisjordânia, em “territórios ocupados” por Israel, acarreta, por isso mesmo, uma abertura de fronteiras entre o Estado de Israel e esses territórios, de modo que os palestinos vivendo nas terras agora ocupadas podem, pela primeira vez desde a primeira guerra de ocupação, visitar as suas cidades natais ou de origem, que haviam se tornado território de Israel na primeira guerra de ocupação.

Narrada em terceira pessoa, mas seguindo a perspectiva de Said S., Retorno a Haifa conta a história do casal árabe Said S. e Safia, que fugiu de Haifa em 21 de abril, no caótico dia da ocupação pela Haganah. Em meio aos fluxos desesperados das multidões pressionadas em direção ao porto e do fechamento das ruas pela milícia, acabam por perder seu filho Khaldum, de cinco meses, que é deixado sozinho na casa deles. A narrativa desta perda se estende por cinco páginas, que transpiram agonia e desespero, difíceis de transmitir aqui. Quase vinte anos depois, tendo construído uma vida em Ramallah e tido outros filhos, em julho de 1967, com a abertura da fronteira, eles retornam pela primeira vez a Haifa para ver sua casa, e com o desejo não-expresso, mas principal, de saber de seu filho perdido.

Quando chegam na casa descobrem que ela é ocupada por uma senhora judia, Miriam, que lhes abre a porta já sabendo quem eram. Fala, em inglês marcado por um acento alemão: “Eu aguardava vocês há muito tempo”. Conhecia-os pelas fotografias, objetos da casa, que fora mantida exatamente como era. Ao deparar-se com os donos da casa, observando suas antigas coisas, móveis e objetos, Miriam diz: “Desculpe, porém foi o que aconteceu. Nunca tinha pensado nesse assunto como agora”. Diante disso:

Said deu um sorriso triste. Não sabia como dizer a ela que ele não tinha vindo por isso; que ele não queria adentrar uma discussão política, pois sabia que ela não era culpada de nada.

“Sem nenhuma culpa?”

Não, não corretamente. Mas como poderia explicar isso a ela? (Kanafani, 2022b, p. 406).

Nesta conversa, Miriam refere o filho pela primeira vez: Dov. Diante da perturbação do casal, ela diz, se dirigindo a Said: “Claro, Dov. Eu não sei qual era o nome dele, e se você se interessa por esse tema, mas ele se parece com você...” (Kanafani, 2022b, p. 408).

Ficamos sabendo então que Miriam era casada com Iphrat Koshen, neste momento já falecido há alguns anos, e que chegaram a Haifa sob os cuidados da Agência Judaica, fugidos da Polônia. Depois de outras paragens, de se hospedarem por algum tempo no Alojamento do Imigrantes, conseguiram a casa do casal Said e Safia, alugada pelo Departamento da Propriedade dos Ausentes da Agência Judaica, com a condição de que adotassem uma criança. Essa oferta é recebida com alegria, uma vez que o casal não podia ter filhos, o que o oficial da Agência havia verificado em seus papeis.

Então, quinta-feira de 29 de abril de 1948, foi o dia em que Iphrat Koshen e sua mulher Miriam, acompanhados do funcionário da Agência Judaica com cara de galinha, carregaram um bebê de cinco meses para a residência de Said, em Halisa [bairro de Haifa].

Quanto a Said e Safia, nesse mesmo dia, choravam depois que ele tentou a última de suas inúmeras tentativas de retornar a Haifa. Cansado e sem forças dormiu, completamente dominado pela exaustão, como se perdesse a consciência, naquele quarto que era a sala de aula do sexto ano, na escola Maarif de Ensino Secundário, de frente ao muro que protegia a famosa Prisão de Akka, na margem ocidental (Kanafani, 2022b, p. 413).

O encontro com Khaldum/Dov é terrível para os pais biológicos, porque ele, tendo sido criado no processo de ocupação, tornara-se um soldado do sionismo. São diferentes os modos de adesão ou justificativa subjetiva do sionismo dos personagens. Miriam —tendo escapado de soldados nazistas quando jovem, e tendo visto seu pai levado por eles, o que acarretou a sua morte em Auschwitz oito anos de sua imigração a Haifa— mostra-se sensível e horrorizada com a barbárie sionista. Esse sentimento se expressa numa passagem da história anterior à sua ocupação da casa dos protagonistas em Halisa. Ainda no Alojamento dos Imigrantes, chega um dia de sábado. Para a surpresa de Iphrat não há nenhum carro circulando:

Era um real sábado judaico. Isso lhe trouxe lágrimas aos olhos por razões que não sabia explicar. Quando sua esposa o viu, ficou surpresa e também com os olhos úmidos, disse: “Choro por outra razão. Sim, é um verdadeiro sábado, porém não existe mais nenhuma verdadeira sexta-feira aqui, nem um verdadeiro domingo.”

Isso foi apenas o início. Pela primeira vez, desde sua chegada, sua atenção se voltou para algo com o qual não contava e sobre o qual não pensava. De repente, os sinais de destruição que passou a notar o conduziu a outro raciocínio, mas recusou-se a refletir sobre aquilo.

Do ponto de vista de sua mulher, Miriam, a situação era diferente. Ela mudou quando se aproximou da Igreja de Belém, em Al Hadar. Viu, de longe, dois jovens do Haganah carregando algo que botaram em um pequeno caminhão. Por um momento, viu o que estavam carregando, apertou o braço do marido e, em pânico, gritou:

“Olhe!”

Seu marido não viu nada onde ela apontava. Os dois homens limpavam as palmas das mãos em seus uniformes de cor cáqui. Ela disse ao marido:

“Era uma criança árabe morta! Eu vi! Estava toda ensanguentada!”

Seu marido a levou pela mão para o outro lado da rua e perguntou:

“Como sabe que era uma criança árabe?”

“Você não viu como eles a arremessaram no caminhão, feito uma tábua de madeira? Se fosse uma criança judia, jamais teriam feito isso” (Kanafani, 2022b, pp. 411-412).

Observamos, assim, que Miriam se surpreende e se horroriza com as ações de destruição e morte perpetradas pelo Haganah, logo nos primeiros dias de sua chegada à Palestina. As mesmas forças que os conduziram a um lugar seguro, longe das atrocidades nazistas e do horror da guerra, que lhes conseguiria uma casa, uma vida, e mesmo uma criança para criarem como sua, proporcionavam a expulsão, destruição e morte de um outro povo. O caráter supremacista da sociedade que se forma também é sentido por ela, quando diz que ali nunca haverá uma verdadeira sexta-feira, nem um verdadeiro domingo, porque a partir daquele momento se formaria um país “apenas de judeus”.

Seu marido Iphrat mostra uma posição diferente: recusa-se a olhar, a ver, a pensar. “Não contava” que o estabelecimento do Estado de Israel se daria às custas da destruição do povo árabe. Ao observar isso, recalca. Insensibiliza-se diante de uma situação que não pode racionalmente justificar, mas à qual tampouco tem o interesse de se opor. Silencia, aceita, recusa a contradição. Chora emocionado, com razão, ao vivenciar um verdadeiro sábado, que significa a sua existência livre e legítima como judeu. Mas o custo humano que isso implica, o crime sobre o qual essa aparente liberdade se erige, é jogado para debaixo do tapete da consciência.

A propaganda sionista nesses primeiros momentos da ocupação ainda não tomava o povo árabe como o inimigo a ser vencido, e sim caracterizava, como vimos, a Palestina como um lugar praticamente desocupado, aguardando a chegada do povo escolhido. Na novela de Kanafani isso aparece no modo como Iphrat desconhecia a Palestina real:

Para Iphrat, a Palestina não era mais do que um palco inventado de uma antiga lenda, ainda à maneira das cenas coloridas, retratadas em livros religiosos cristãos, destinados às crianças na Europa. Claro, não acreditava completamente que a terra era apenas um deserto descoberto pela agência judaica depois de dois milênios, ainda que isso não fosse o que mais lhe importava (Kanafani, 2022b, p. 409).

Vale notar que o encontro com a brutal realidade da ocupação sionista conduziu alguns judeus emigrados a abraçarem a resistência palestina, mas tratou-se de uma minoria. Diante da inevitável vista das expulsões e massacres, a fim de angariar o apoio da população judaica, a propaganda sionista passa a criar a narrativa de que o povo palestino é o inimigo a ser destruído, chegando recentemente (2015) ao absurdo de ouvirmos Netanyahu vincular o holocausto nazista ao povo palestino (Heller, 2015).

Isso se reflete, na novela, no modo como a posição e o sentimento de Dov/Khaldum se mostram diversos dos de ambos os seus pais. Ele não se sensibiliza como a mãe, tampouco recusa-se a ver a contradição como o pai. Para ele, o povo árabe já se converteu no “outro lado”, no inimigo a ser vencido. Num momento do diálogo, Dov diz:

Eu desconhecia que Miriam e Iphrat não eram meus pais até três ou quatro anos atrás. Desde muito criança, sou judeu. Vou à sinagoga, à escola judaica, como comida kosher e estudo hebraico. Quando me contaram que eu não era seu filho biológico, isso não mudou nossa relação em nada. Mesmo quando me contaram, mais tarde, que meus pais biológicos eram árabes, mesmo assim, nada mudou. Não, nada mudou, isso é certo. Afinal, em última análise, o homem é uma causa (Kanafani, 2022b, p. 424).

Observa-se que ele aderiu ao sionismo, a sua causa. Ele considera os pais covardes por o terem abandonado, e diz que, embora ainda esteja na reserva, está disposto a lutar e não considera que isso afetará seus sentimentos. A própria noção do abandono mostra o tipo de concepção que se formou em a sua subjetividade, que oculta o modo pelo qual a cidade de Haifa, como as demais, foi esvaziada da sua população árabe para receber os imigrantes judeus. O fato de Miriam não contar e não discutir com o filho as condições em que fora deixado para trás, em deixá-lo acreditar que fora simplesmente abandonado, mesmo depois de testemunhar atrocidades cometidas pela Haganah contra os árabes e, na verdade, saber de tudo, coloca-a na situação de cumplicidade.

Para Said e Safia, eles perderam o filho, como tantos outros palestinos, mas de um modo diverso. Diante dessa perda Said pensa em seu outro filho Khalid muitas vezes; sente vontade de abraçá-lo. Quando Dov lhe diz que lutará contra os palestinos e o conhecimento de sua origem não mudaria isso em nada, Said lhe diz:

Não há por que você descrever seus sentimentos para mim. Depois, talvez seu primeiro combate seja contra um Fedayin chamado Khalid. Khalid é meu filho. Espero que compreenda que não me referi a ele como seu irmão, já que, como você disse, o homem é uma causa. Na semana passada, Khalid se juntou aos Fedayins... Você sabe por que o chamamos Khalid e não Khaldum? Porque sempre imaginamos que o encontraríamos, mesmo que levasse vinte anos. Mas isso não ocorreu. Nós não o encontramos. E não acredito mais que o encontraremos (Kanafani, 2022b, p. 426).

O encontro termina assim, sem reconhecimento e sem solução, mas chega a um desfecho. Ao sair da casa, diante da indiferença de Dov, a última frase que Said pronuncia é: “Vocês dois podem ficar temporariamente em nossa casa. Será preciso uma guerra para resolver isso” (Kanafani, 2022b, p. 432).

Há dois outros elementos que compõem o sentido da narrativa. O primeiro é uma trama paralela, bem ao modo shakespeareano, que confere sentido social e universalidade ao drama vivido pelos protagonistas. Nessa trama, a figura central é o palestino Faris Al Lubda, que, como Said e Safia, retorna à sua casa com a abertura das fronteiras, nesse caso em Yaffa, para encontrá-la ocupada por outra família árabe. Sendo o único sobrevivente de sua família, é recebido pela outra família com carinho e identificação, e observa que na parede ainda permanece uma foto de seu irmão, morto na primeira guerra de ocupação. A família que mora na casa mantém a foto; cultua aquele moço como mártir e o considera membro de sua própria família, inclusive dando seu nome a um dos seus filhos. Aqui há uma situação diferente tanto do árabe que ocupa a casa como daquele que retorna. No caso do ocupante, sabemos que depois de ter sua casa tomada, e de passar um tempo na prisão israelense por resistir, ele consegue permanecer em Yaffa e alugar do governo aquela casa, que abraça como não sendo sua, mas dos seus. No caso de Faris, que retorna à sua casa, os conflitos principais são a sua solidão como único sobrevivente de sua família e a ausência de sentido em levar a foto do irmão consigo, para longe da casa à qual ela pertence, tornando-o também, depois de morto, um refugiado ou expropriado.

O segundo é Khalid, filho mais velho de Safia e Said depois de Khaldun, que adere à luta armada, tornando-se um Fedayin. Embora o entendam, os pais se preocupam com a decisão do filho, uma vez que isso implica colocar a vida em risco. Proíbem-no de sair de casa para juntar-se à guerrilha. Ao final da novela, ao chegarem na entrada a Ramallah depois de percorrerem todo o caminho de volta em silêncio, Said diz a Safia: “Desejo que Khalid tenha partido.... durante a nossa ausência” (Kanafani, 2022b, p. 432). A última frase da novela manifesta o desejo de que o filho lhes tenha desobedecido, para fortalecer aquela guerra que referiu a Miriam. Como afirma Uri Davis:

As casas dos judeus israelenses são construídas sobre as ruínas das casas deles. Os judeus israelenses cultivam, desenvolvem e comercializam com as terras deles. Assim, cada judeu israelense tem uma sombra: o refugiado árabe palestino se tornou um ativista da Intifada, ou um soldado do Exército de Libertação da Palestina, um fedayin ou um agente dos exércitos de segurança da Autoridade Palestina [...] e merec[e] nosso pleno apoio moral e material (Davis, 2003, p. 73, T. A.).

Retorno a Haifa é uma das obras-primas de Kanafani, porque traz a um significado universal da tragédia palestina. Segundo o estudioso A. Adil, trata-se de uma “[...] obra-prima da escrita ficcional, que alcança as profundezas dos corações dos homens, evidenciando a verdadeira tragédia da guerra palestina para todos os envolvidos, árabes ou judeus” (Adil, 1889, p. 84, T. A.). É uma novela capaz de fazer viver e sentir, a partir de um caso extremo e trágico, o significado efetivo do sionismo político, tanto para o povo que sofre as consequências práticas da colonização, como para a constituição da subjetividade dos colonizadores que, por vezes contra a sua sensibilidade pessoal, são levados pela inserção na sociedade sionista a naturalizar a condição desumanizadora da ocupação e a tornarem-se eles mesmos cúmplices ou perpetradores dessa desumanidade.

Referências

Adil, A. A. (1989). Theme and technique in Ghassan Kanafani’s short fiction (Tese de doutorado em Filosofia). Faculty of the Graduate College of the Oklahoma State University, Oklahoma, EE. UU. [ Links ]

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Kanafani, G. (2015). A revolta de 1936-1939 na Palestina (G. Rodrigues e F. Bosco, Trad. a partir da versão inglesa). São Paulo: Sundermann. [ Links ]

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Misleh, S. (2017). Al Nakba. Um estudo sobre a catástrofe palestina. São Paulo: Editora Sundermann. [ Links ]

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Notas

1Essa determinação fundamental do Estado, incluído em sua legislação, acarretou o problema de se definir quem pode e quem não pode ser considerado judeu, trazendo contradições e problemas. Uri Davis discute isso em seu livro citado (2003, pp. 70ss.).

Recebido: 20 de Setembro de 2022; Aceito: 04 de Abril de 2023; : 01 de Setembro de 2023