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Cuyo

versão On-line ISSN 1853-3175

Cuyo-anu. filos. argent. am. vol.37 no.1 Mendoza jun. 2020  Epub 16-Dez-2020

 

Dossier: filosofía, cultura y comunicación en Vilém Flusser

Vilém Flusser, por uma filosofia da cultura

Vilém Flusser, por una filosofia de la cultura

Vilém Flusser, for a philosophy of culture

Norval Baitello Junior1 

Diogo Andrade Bornhausen2 

1 Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisador 1ª do CNPq e diretor do Arquivo Vilém Flusser São Paulo. Contato: norvalbaitellojr@gmail.com

2Doutor e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Diretor de Pesquisas do Arquivo Vilém Flusser São Paulo, Líder de Pesquisa do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia - CISC (CNPq), Professor Fundação Armando Alvares Penteado/SP. Contato: diogobornhausen@gmail.com

Vilém Flusser pertence ao grupo de pensadores que estimula nosso interesse hoje em dia pela diversidade de campos de pensamento em que atuou e pela forma como neles se engajou. Nascido em 1920 em Praga e forçado a dali sair na diáspora promovida pelo regime nazista, viveu pessoalmente os dilemas das imposições advindas da cultura estranha, o sem-chão, em todo os seus aspectos políticos, religiosos, linguísticos, antropológicos ou técnicos. Em resposta, pensava, escrevia e vivia em prol do questionamento e da desconstrução dos modelos de pensamento que insistem em regular rigidamente as sociedades e a liberdade dos homens.

Este campo de tensionamentos buscado pelo autor, que não objetivava uma síntese aos moldes de Hegel, se aproxima mais de um intercâmbio dialógico de pensamentos em que os ditos e contraditos se abastecem e onde se prioriza o movimento permanente de perguntas e perspectivas sobre os fenômenos que nos cercam. A riqueza de possibilidades de análises por ele abertas, que o faz ser por vezes criticado por não se inserir na rigidez acadêmica, permite também que sua obra continue potente para pensarmos nossa época, nosso tempo em

seus últimos desdobramentos. Por este motivo, neste ano de 2020, dezenas de instituições de ensino, grupos de pesquisas e grupos de artistas de várias partes do mundo dedicam-se a celebrar seu centenário e a debater a atualidade de seu pensamento. Ainda que sua notoriedade internacional tenha vindo centrada sobre a ascensão das tecnologias e os desafios por elas impostos, sua obra oferece instigantes contribuições e questionamentos em variadas áreas do saber; Comunicação, Ciências da Cultura, Artes, Design, Fotografia, Filosofia e Linguística são apenas algumas das áreas que se beneficiam pelos desafios que seu pensamento nos coloca.

Descobrir e tornar pública a diversidade de suas ideias, expressas em centenas de ensaios, livros, conferências, cursos e correspondências produzidos em mais de quarenta anos de intensa atividade intelectual é o objetivo do Arquivo Vilém Flusser São Paulo. Com cerca de 35 mil páginas disponíveis, além de dezenas de vídeos e áudios, o Arquivo Flusser procura, desde 2012, dar acesso livre aos pesquisadores interessados nas contribuições filosóficas de Flusser. O resultado aqui apresentado, fruto do diálogo com o Instituto de Filosofía Argentina y Americana da Facultad de Filosofía y Letras da Universidad Nacional de Cuyo, pretende promover o debate latino-americano sobre as contribuições realizadas por Flusser para a filosofia, para a comunicação e as ciências da cultura.

Nascido na Tchecoeslováquia como parte da minoria judaica de fala alemã, foi no Brasil que Flusser desenvolveu os fundamentos de sua filosofia, o que o fez assumir esta nacionalidade mesmo depois que retornou à Europa. Esta vivência de trinta anos de sua vida lhe permitiu assimilar intelectualmente as grandes transformações políticas, históricas e culturais que marcaram a América Latina, principalmente pela confluência de inúmeras referências teóricas, culturais e artísticas por ele “devoradas”. Como declarou, tinha como exemplo filosófico as contribuições de Oswald de Andrade e do Movimento Antropofágico como grande interlocução para seu pensamento.

No entanto, Flusser não perdeu jamais o diálogo com suas raízes europeias - Wittgenstein, Schopenhauer, Nietzsche, Cassirer, Heidegger, como alguns exemplos -, de certa forma “antropofagicamente” assimilados e recriados, resultando em um pensamento provocativo e astucioso. Foi a partir desta antropofagia reflexiva que criou seu pensamento, que inclui a análise da técnica como paradigma nodal da atualidade, mas que está preocupado principalmente com os ambientes culturais e os dilemas que cercam as mediações entre o humano e seu universo simbólico.

Este olhar se esclarece no texto desta edição, inédito dentre as publicações de Flusser, intitulado Alguns aspectos filosóficos da automação, escrito em 1969 para a II Bienal de Ciências e Humanidades, aqui seguido de comentários que o contextualizam com algumas de suas principais obras. Por meio da “automação” como principal efeito das tecnologias, Flusser centra este conceito em relação à história e ao homem, dividindo o texto em três partes: a relação do homem com a técnica, as antropologias possíveis em cada um desses momentos e, por fim, perspectivas para se lidar com os desafios impostos por estas novas técnicas.

Em sua abordagem, que alia a ascensão e a onipresença dos instrumentos com os impactos culturais e existenciais gerados no humano, Flusser desenvolve um método próprio que busca observar as diversas camadas de sentido presentes nos fenômenos analisados. Como pensado por Norval Baitello Junior em seu texto Vilém Flusser, as ciências arqueológicas e a filosofia do lixo, Flusser defende a valoração do olhar arqueológico como forma de compreensão dos sentidos atuantes na cultura. Para ele, o avanço técnico e instrumental, para aquém de uma produção exitosa, produziu um reino do lixo, ignorado e desprezado que precisa ser trazido à tona e reconhecido como campo determinante de nossa época.

Dentre tais determinações, destaca-se o poder que as “imagens técnicas” possuem como modeladoras do pensamento e da vontade na cultura contemporânea. Conceito-chave do pensamento flusseriano, tendo sido desenvolvido em diversos momentos de sua obra, é aqui analisado por Rodrigo Petrônio em seu texto As cebolas de algodão. Imagem, ontologia e cosmologia paraconsistentes de Vilém Flusser, onde o autor busca traçar as bases filosóficas que levaram Flusser a refletir sobre a sociedade telematizada.

É também a partir deste conceito que Alex Florian Heilmair desenvolve sua reflexão: Um mapa da comunicologia. Os fundamentos do estudo da comunicação humana segundo Vilém Flusser. Para isso, contextualiza a concepção de imagem dentro da teoria da comunicação proposta por Flusser, que considerava a natureza existencial, antropológica e histórica como aspecto central de toda comunicação. Neste texto, o autor apresenta um mapeamento dos fundamentos - conceitos e métodos - utilizados no estudo da Comunicologia. São considerados dois momentos distintos da obra de Flusser: o primeiro, abrangendo as reflexões da juventude, sintetizadas nos anos 1970 durante o período em que viveu no Brasil; o segundo, abrangendo as reflexões maduras dos anos 1980 e 1990 enquanto viveu na Europa.

O que podem ser consideradas duas formas com que Flusser sistematizou seu pensamento, estas obras em que sua teoria da comunicação é desenvolvida são resultantes das aulas realizadas por ele, que defendia na educação o caminho de emancipação dos modelamentos culturais. Para Flusser, o ensino privilegiou o conhecimento utilitário e técnico e, por isso, vazio. Contra esta fragmentação do saber, propunha em suas aulas uma formação que negasse a submissão aos sistemas condicionantes e que fosse capaz de atuar complexamente diante dos novos desafios que se apresentam. Esta é a questão que Diogo Andrade Bornhausen destaca no último texto Informação, conhecimento e educação: desafios para o saber em Vilém Flusser, onde apresenta e problematiza um conjunto de nove textos em que Flusser propôs pensar os modelos educacionais e o papel que possuem na cultura.

O conjunto de reflexões aqui apresentadas procuram esclarecer a abrangência das preocupações de Vilém Flusser em pensar filosoficamente e antropologicamente a comunicação e a cultura. Naturalmente, muitas outras possibilidades de abordagem e muitos outros objetos tiveram de ser reservados a futuras publicações. O presente dossiê teve a intenção de promover esta primeira aproximação e convidar os interessados na obra flusseriana em continuar estes diálogos para novos desdobramentos e novas explorações.

Boa Leitura.

Recebido: 16 de Dezembro de 2019; Aceito: 07 de Fevereiro de 2020

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