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Cuyo

versão On-line ISSN 1853-3175

Cuyo-anu. filos. argent. am. vol.37 no.1 Mendoza jun. 2020  Epub 16-Dez-2020

 

Dossier: filosofía, cultura y comunicación en Vilém Flusser

Vilém Flusser, as ciências arqueológicas e a filosofia do lixo

Vilém Flusser, las ciências arqueológicas y la filosofía de la basura

Vilém Flusser, archaeological sciences and philosophy of trash

Norval Baitello Junior1 

1Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisador 1ª do CNPq e diretor do Arquivo Vilém Flusser São Paulo. Contato: norvalbaitellojr@gmail.com

Resumo

Vilém Flusser desenvolveu, nos 30 anos de exílio no Brasil, reflexões pouco comuns para as décadas de 50, 60 e 70, sobretudo voltadas para os macro-ambientes da cultura. Dentre elas sua proposta de uma “filosofia do lixo” e de uma “filosofia da gula”, no seio das chamadas “ciências arqueológicas”. Tal filosofia permite rever criticamente conceitos estabelecidos como “sociedade de consumo”, “o papel da mulher” e “a (auto)destrutividade do modelo patriarcal de produção”.

Palavras-chave Filosofia da gula; Filosofia do lixo; Ciências arqueológicas

Resumen

Vilém Flusser desarrolló, en sus 30 años de exilio en Brasil, reflexiones inusuales para los años 50, 60 y 70, especialmente centrado en los macroambientes de la cultura. Estos incluyen su propuesta de una “filosofía de la basura” y una “filosofía de la gula” dentro de las llamadas "ciencias arqueológicas". Tal filosofía nos permite revisar críticamente conceptos establecidos como "sociedad de consumo", "el papel de la mujer" y "la (auto) destructividad del modelo patriarcal de producción".

Palabras clave: Filosofía de la gula; Filosofía de la basura; Ciencias arqueológicas

Abstract

Vilém Flusser developed, in his 30 years of exile in Brazil, unusual reflections for the 50s, 60s and 70s, especially focused on the macro-environments of culture. These include his proposal for a “philosophy of trash” and a “philosophy or gluttony” within the so called “archaeological sciences”. Such a philosophy allows us to critically review established concepts such as “consumer society”, “the role of women” and “the (self) destructiveness of the patriarchal model of production”.

Keywords: Philosophy of gluttony; Philosophy of trash; Archaeological sciences

1. A gula

No ano de 1965 aparece no catálogo das livrarias de São Paulo um livro com o estranho título A história do diabo, publicado pela Livraria Martins. Diferentemente do que se podia deduzir, não se tratava a rigor de uma história, uma diacronia do representante maior do mal no Ocidente, nem sequer era uma história das transformações e variantes deste ser imaginário, sua tipologia ou sua anatomia simbólica. Diferente dos tratados de historiografias diversas, a obra em questão trazia uma colagem sobre o mal, ancorada não no sujeito, mas nas suas obras primas, os feitos malignos maiores deixados pelo diabo na civilização contemporânea, sua face coletiva, sua projeção por assim dizer “industrial”: os pecados, outrora retratados pela teologia cristã e desenhados pelos pinceis de muitos artistas desde a Idade Média, são aqui mostrados em sua versão atualizada para os tempos posteriores às revoluções industriais, nas sociedades de massas, do consumo e da febre do chamado progresso. O diabo aparentemente abandonara as almas individuais para se dedicar a um negócio muito mais rentável, industrial, por assim dizer, imiscuindo-se não mais nos afazeres individuais de cada um, mas na produção do mal em grande escala massiva.

Seu autor, Vilém Flusser - judeu foragido de Praga em 1940 aos 20 anos de idade - já se apresentava ao público leitor da cidade em colunas semanais no Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo. Nelas escrevia suas incomuns percepções sobre o mundo fervilhante dos anos cinquenta e sessenta, sua arte e sua ciência, seus sonhos e seus gestos, sua arqueologia e sua futurologia, seus fracassos e suas promessas, suas verdades e suas mentiras, seus sonhos tecnológicos, seu crescente arsenal de comunicações. Mas, na História do Diabo desenha os desdobramentos dos sete pecados capitais quando estes passam a ser “programas” chamados “civilizatórios”, de movimentos e tendências supranacionais. Assim são tratados a luxúria, a ira, a gula, a inveja, a avareza, a soberba e a preguiça.

Vamos nos concentrar aqui no pecado da gula, a gula da chamada “civilização”. A voracidade da sociedade industrial tem sido motivo de júbilo, para alguns que dela se beneficiam, e de preocupação e verdadeiras tragédias humanas para massas populacionais que se transformam em matéria prima para as engrenagens deste novo mundo ávido por devorar tudo ao seu redor.

Enquanto a luxuria e a ira formam um pano de fundo para a expansão de uma “realidade fenomenal”, a gula nos obriga a incorporá-la. Assim diz Flusser:

A substância da vida precisa ser “compreendida” por nós, a fim de tornar-se real para nós, pois “compreender” significa incorporar aquilo que compreende. A realidade, a vida o é somente se for por nós incorporada. É preciso devorar, engolir e digerir a vida para que essa mera virtualidade de nossas mentes se torne realidade (Flusser, 1965, p. 118 ).

E, mais adiante:

Fome e digestão são fenômenos da vida, são um aspecto do diabo encarnado. Mas gula, por ser mental, é um fenômeno diferente (ibíd., p. 120).

Assim, Flusser demonstra que a gula “é um pecado idealista” que busca superar a ira da disciplina e do pensamento que acometera a ciência na idade moderna, configurando esta mesma ciência como uma negação da realidade do mundo fenomenal e uma afirmação da realidade do mundo pensante.

Escreve Flusser:

O conhecimento é concebido e experimentado, doravante como um processo paralelo ao metabolismo. O mundo fenomenal é devorado pela mente (estágio do aprender). Em seguida é engolido (estágio do aprender englobante). O próximo passo é a digestão (estagio do compreender), e os detritos são expelidos (estágio da ação transformadora). A natureza passa a ser alimento, matéria prima da mente. E, à medida que se processa o enorme festim da mente, a natureza diminui, e aumentam ao nosso redor os excrementos da mente, os instrumentos. Estes instrumentos são, com efeito, mente tornada sensível. A meta da gula é devorar a natureza toda e transformá-la em instrumentos. Os instrumentos, por terem origem mental, são muito mais reais que os objetos da natureza. Os objetos da natureza são “vir-a-ser” da mente gulosa, estão diante da mão da mente (“vorhanden”). Os instrumentos testemunham a ação devoradora e transformadora da mente, e estão a serviço da mente (“zuhanden”) (ibíd., p. 119).

Em uma de suas colunas semanais publicadas dois anos antes n’O Estado de São Paulo (Suplemento Literário, 7/12/63, p. 3), chamada “A gula”, o autor explicita alguns dos seus conceitos, ainda in statu nascendi:

O homem, como ser faminto, participa do reino animal. Como ser guloso supera a sua condição animalesca. A sua gula assume proporções deveras titânicas. Devora tudo. Devora a superfície e as entranhas da terra. Devora, psicologicamente, as suas próprias entranhas. Devora, hegelianamente, o seu próprio passado. Devora, pela ciência, o seu próprio futuro. Devora, pelo espírito, não somente tudo o que é, mas ainda tudo que é possível. A sua gula é insaciável. Quanto mais devora, tanto mais e mais depressa precisa devorar. Esse devorar insaciável e geometricamente acelerado é chamado de "progresso". Consideremos a fisiologia da gula. O homem devora, por exemplo, a natureza. Primeiro, põe a natureza na boca: apreende a natureza. Segundo, engole a natureza: compreende a natureza. Terceiro, digere a natureza: subjuga a natureza. Quarto, expele os detritos da natureza apreendida, compreendida e subjugada: evacua instrumentos. É neste sentido, um tanto repulsivo, que podemos afirmar que o progresso da civilização humaniza a natureza. A gula humana transforma a natureza progressivamente no excremento chamado "parque industrial". Mas a gula não para neste ponto. Volta-se contra o próprio parque industrial para devorá-lo (Flusser, 1963).

Sendo uma “perversão da fome”, a gula se transforma em geradora de detritos em grande escala, excrementos que se tornam eles mesmos devoradores do seu entorno e também de seus produtores. Tal devoração retrógrada apontada por Flusser vai ser também objeto da ira e da soberba da ciência. Assim surge na idade moderna a necessidade de lidar com o destino do lixo que determina o destino do homem e da natureza. E para lidar com as grossas camadas de excrementos, produtos e instrumentos mal digeridos, nascem as “ciências arqueológicas”, dentre elas uma “filosofia da gula”. Nas palavras de Flusser:

Urge portanto uma "filosofia da gula". Urge uma apreciação ética, estética e principalmente existencial da gula. Urge um reexame da angústia e do nojo existencial, estes característicos da nossa época, sob o signo da gula (ibíd.).

2. Os excrementos, os instrumentos e o lixo

Quase duas décadas depois, em 1972, já partindo para um segundo exilio, Flusser publica na revista Comentário, do Rio de Janeiro, um longo artigo com o título “A consumidora consumida”, no qual trata novamente, ao lado dos temas “consumo”, “ciências arqueológicas” “o papel da mulher na sociedade de consumo”, o tema do “lixo”. O texto datilografado, existente no Arquivo apenas com o título “A consumidora”, alterado possivelmente pelo editor da revista, oferece uma amostra do que ocuparia as preocupações do autor em suas últimas décadas europeias. Um conjunto de temas, aparentemente díspares entre si, são entrelaçados ao longo do ensaio.

Sua proposta de estudo do lixo, em seu sentido mais amplo, conforme veremos posteriormente em sua correspondência , incluindo o lixo cultural, ou seja não apenas o lixo material, mas também o lixo daquilo que Flusser chamará mais tarde de “não-coisas” (Undinge), revela-se de extrema atualidade nos dias de hoje, marcados pelo recrudescimento do obscurantismo mundo afora. Sua formulação “em prol de uma coprologia” (em 8/6/1983), proposta como palestra, enfatiza a expansão da natureza excremental na civilização humana. A proposta de uma antropologia coprológica coaduna com outros conceitos propostos por Flusser em sua obra madura, tais quais os conceitos de “aparelho”, “funcionário”, “pós-história”, “catástrofe-sem-nome” (cf. Baitello, 2010), revelando um pensamento crítico ao fundo de uma visão aparentemente otimista dos desenvolvimentos tecnológicos e sociais do homem.

3. A funcionalização da mulher

Em primeiro lugar o autor analisa criticamente a relação perversa entre o “feminino” e o “masculino”, na qual este, tipicamente patriarcal, funcionaliza as mulheres como agentes que têm o papel de otimizar o consumo em uma sociedade que produz excessivamente e não consegue consumir tudo o que produz. Assim fazendo, como a mulher é a forma côncava que molda a figura convexa do masculino, ela perde sua capacidade de gerar símbolos da fertilidade e produz uma ferida no equilíbrio da relação masculino-feminino. Tal ferida apenas alimenta o espírito titânico da sociedade de consumo como produtora de mais lixo, o excedente não consumível de sua produção. Problematiza-se aqui a própria denominação de “sociedade de consumo”, inadequada a uma realidade que demonstra que se trata de uma sociedade incapaz de consumir o que produz, gerando um desequilíbrio para o planeta, o feminino maior, a chamada “mãe-terra”. A fúria do masculino, que se fere a si mesmo em sua manifestação patriarcal e destrutiva, volta-se contra o feminino maior na forma de ódio ao feminino que, em última instância significa um ódio à mãe, à terra e ao corpo (Cf. Baitello, 2018).

4. Os três reinos: natureza, cultura, lixo

A sociedade industrial, chamada incorretamente “sociedade de consumo”, em sua fúria produtiva, devora a natureza para produzir “cultura” na forma de instrumentos e ferramentas. Focada apenas na produção, não se preocupa com o uso racional dos recursos nem tampouco com o uso durável dos produtos, aproveitando ao máximo seu potencial. Esta atitude acaba por criar um terceiro reino, o reino dos produtos descartados em massa, obsoletos precocemente, mal utilizados. Este reino se torna onipresente e avassalador, bloqueando a ação humana em favor da vida do planeta. Uma “filosofia do lixo” aponta para a emergência de uma ciência capaz de lidar com os temas gerados por este terceiro reino que surge com a sociedade industrial: o reino do lixo, ao lado do reino da natureza e do reino da cultura. A cultura e seu modelo assim se apresentam na definição flusseriana:

(...) a história da humanidade nos oferece o seguinte modelo de cultura: a cultura é um processo que devora a natureza (produzindo bens), excreta a natureza (consumindo bens) e que cresce apesar da natureza (poupando). Produzir significa: arrancar pedaços à natureza e dar-lhes valor e forma. Consumir significa: gastar valores e formas e devolver os pedaços desvalorizados e desinformados à natureza. Poupar significa: armazenar valores e formas (Flusser, 1972, p. 36 ).

E tal atividade febril de “acumulação” de valores e formas, a grande meta da cultura, nas palavras de Flusser, “a síntese da cultura é pois a armazenagem crescente de valores e formas”, gera um labirinto de produtos materiais e imateriais. Segue Flusser:

Em todos os cantos do labirinto está se amontoando lixo, isto é: restos inconsumíveis. E é este lixo que merece uma atenção mais apurada, porque tende a ser a parte mais determinante da condição humana. O lixo que está inundando a cultura na forma de produtos mal digeridos e vomitados, (produtos materiais e ideais), não apenas perturba os passos dos homens que perambulam no labirinto, corta as plantas dos seus pés com seus cacos, infecta com as bactérias de podridão os seus pulmões e suas mentes, mas ainda atrai os homens com sua moleza informe de lodo (ibíd.).

5. As ciências arqueológicas

Para lidar com o crescente reino do lixo a ciência começa a desenvolver ramos investigativos diferenciados, voltados para a “grossa camada” de detritos, entulhos, restos, descartes que se acumularam ao longo da historia. Tais ramos de investigação tornam-se ciências com a vocação especifica de escavar, classificar e entender o lixo, as ciências “arqueológicas”.

Tais “ciências arqueológicas” são aquelas que lidam com os restos não digeridos - crescentemente onipresentes - em nossas sociedades ocidentais. Dentre elas, enumera Flusser, a Psicanálise, a Etimologia, a Arqueologia, a Ecologia, a Mitologia. Tornaram-se tão mais necessárias quanto mais onipresentes se tornaram os restos não digeridos do consumo humano, uma vez que o lixo se transformou em fator determinante ou em obstáculo obstrutivo dos destinos humanos. As ciências arqueológicas seriam o auxiliar principal para o desenho de cenários futuros, uma vez que nos ancorariam em um passado trabalhado e metabolizado.

Assim justifica Flusser a necessidade das ciências arqueológicas:

Somos muito mais condicionados por carcaças de automóveis jogados fora, por radioatividade atmosférica de energias gastas, por comportamentos tribais há muito recalcados, por nacionalismos e ideologias recentemente consumidos (...) Já que o passado recalcado e consumido nos condiciona muito mais que o passado histórico e apresentável, estamos perdendo o interesse pela historia e adquirindo o interesse pela arqueologia (que é a pesquisa do lixo). Não apenas pela arqueologia sensu stricti, que pesquisa lixos esporádicos e periféricos, mas também por arqueologias mais penetrantes como a ecologia, a psicanalise, a etimologia, a mitologia etc, que pesquisam lixos mais atuantes (...). Como as ciências da natureza nos libertam do determinismo natural, e como as ciências da cultura pretendem nos libertar do determinismo cultural, assim as ciências arqueológicas devem libertar-nos do determinismo do lixo (Flusser, 1972, pp. 39-40 ).

6. O “filosofo como lixeiro”

O tripé construído por Flusser em seu artigo “A consumidora”, ao associar a sociedade que não consome, a mulher como “lata de lixo” da sociedade patriarcal e o terceiro reino, o reino do lixo a ser compreendido pelas ciências arqueológicas, oferece um diagnóstico raro e sombrio do mundo presente, demonstrando quão fundamental seria uma “filosofia do lixo”. Sua entrevista concedida nos anos 80 ao jornalista J. C. Ismael, republicada em 14/12/1991 n’O Estado de São Paulo, poucos dias após sua trágica morte em 28/11/91, traz o titulo “O filosofo como lixeiro”.

À pergunta de J. C. Ismael “Para onde a filosofia ainda pode nos levar?” responde Flusser:

Bacon dizia que o papel da filosofia é o do lixeiro. Deus e Diabo, na nomenclatura irônica do meu livro, são termos que conotam dúvida ontológica ou loucura. A sentença contida na sua pergunta procura dizer que, por mais que duvidemos, resta um finzinho de fé que pode ser exterminado apenas pela dúvida filosófica, não pela existencial e sofrida.

Em sua correspondência explicita melhor a razão por que devemos nos ocupar com o lixo:

Pois acontece que tal terreno do lixo não pode ser definido como simplesmente dos valores em decomposição, porque se infiltra nos terrenos dos valores, da cultura. Deve ser definido como terreno dos anti-valores. O lixo é como não deve ser porque problematiza os valores realizados em cultura. Todos estes sapatos deformados, essas garrafas plásticas na praia, todo este kitsch, essas ideologias mal digeridas, estes complexos mal reprimidos se afiguram como monstros que devoram valores em vez de voltarem para a natureza, ex. nazismo (S. d-1, p. 41).

7. A ecologia como ciência arqueológica

A menção da Ecologia como ciência arqueológica não é retomada nem aprofundada no artigo “A consumidora”. No entanto, em sua correspondência com o ativista ecológico e paisagista Rodolfo Geiser, nos anos 80, encontram-se novas postulações e aprofundamentos sobre o tema, demonstrando que Flusser estava ainda elaborando novos posicionamentos a partir dos movimentos e ativismos que sugeriam mudanças de hábitos e inclusão de uma pauta ecológica nas políticas nacionais e supranacionais.

O depoimento de Geiser a respeito da circunstância em que se encontraram para discutir temas ecológicos (que anos mais tarde se transformaram em grandes catástrofes ecológicas:

Flusser também me brindou com sua amizade. Guardo ainda algumas cartas suas sobre ecologia e paisagem cultural. Certa vez, reunimo-nos em minha casa para conversar sobre o significado das crateras deixadas pela mineração em Itabira, MG, e que motivaram o Poeta (Carlos Drummond de Andrade) a abandonar sua cidade natal. Uma das cavas mede cerca de 1.200 x 2.500 metros de extensão e uns bons 400 metros de profundidade (…) Estávamos: Mira, Flusser e sua esposa, Milton Vargas, Maria Lilia Leão, José Resende e Valdemar, um engenheiro cujo sobrenome me escapa à memória. A natureza e sua transformação, o trabalho humano, a técnica, a apropriação e a devastação do progresso (…) (Geiser, 2014).

Em recente entrevista concedida a Roberta Dabdab, Geiser reitera o tema na abordagem flusseriana:

(...) o que mais Flusser me ensinou foi a importância de se pensar através de modelos. Seriam: modelos de pensar. Vale para todas as áreas do pensamento humano. E nesta mesma mensagem reforçou que continua discutindo com seus colegas da Associação dos Engenheiros Agrônomos de São Paulo, a necessidade de se substituir o modelo de agricultura sustentável por um modelo de agricultura marcada pela resiliência. Enfatizou que: “resiliência, não é palavra da moda. Resiliência é modelo de pensar tudo no que tange o homem e o globo terrestre” (Geiser, 2020).

Em 1983, a convite de Geiser, Flusser estaria no Brasil para proferir uma serie de palestras na Sociedade Brasileira de Paisagismo. Os títulos das palestras foram sugeridos por Flusser:

Razões, características e rumos do movimento ambiental: 1. Reflexões sobre o lixo, (em prol de uma coprologia) 2. Reflexões sobre a reciclagem, (modelos circulares) 3. Reflexões sobre o ambiente, (para uma proxêmica) (Correspondência 8/6/83)

Por falta de patrocínio as palestras não se realizaram.

Bibliografia

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Geiser, Rodolfo. Mira Schendel: a amiga e uma visão de sua obra. Blog de Rodolfo Geiser, 2014. Disponível em: https://rodolfogeiser.com.br/blog/2014/08/30/mira_schendel/Links ]

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Recebido: 16 de Dezembro de 2019; Aceito: 04 de Março de 2020

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