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Cuyo

versão On-line ISSN 1853-3175

Cuyo-anu. filos. argent. am. vol.37 no.1 Mendoza jun. 2020  Epub 16-Dez-2020

 

Dossier: filosofía, cultura y comunicación en Vilém Flusser

Informação, conhecimento e educação: desafios para o saber em Vilém Flusser

Información, conocimiento y educación: desafíos para el saber en Vilém Flusser

Information, knowledge and education: challenges for knowledge according to Vilém Flusser

Diogo Andrade Bornhausen1 

1 Doutor e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Diretor de Pesquisas do Arquivo Vilém Flusser São Paulo, Líder de Pesquisa do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia - CISC (CNPq), Professor Fundação Armando Alvares Penteado/SP. Contato: diogobornhausen@gmail.com

Resumo

Na diversidade de temas encontrados na obra de Vilém Flusser, destaca-se sua preocupação acerca das modelizações de pensamento que marcaram as transformações culturais, em especial aquela responsável pela formação contemporânea do funcionário. Conceito fundante do pensamento flusseriano, o “funcionário” permite aprofundar a reflexão sobre a tecnologização do saber, bem como entender as estruturas que o geraram. São sobre estes aspectos que este texto se concentrará, pensando também o modo como Flusser o investigou e apontou caminhos para sua superação, principalmente relacionados aos modelos educacionais, que podem colaborar na emergência de estratégias que lidem com os desafios impostos pela cultural digital.

Palavras-chave: Funcionário; Modelo de pensamento; Educação

Resumen

En la diversidad de temas encontrados en el trabajo de Vilém Flusser, se destaca su preocupación acerca de las modelizaciones del pensamiento que marcaron las transformaciones culturales, especialmente en aquella responsable por la formación contemporánea del funcionario. Un concepto fundador del pensamiento flusseriano, el "funcionario" permite profundizar la reflexión sobre la tecnologización del conocimiento, así como comprender las estructuras que lo generaron. Es sobre estos aspectos en los que se centrará este texto, también pensando en la forma en que Flusser lo investigó y señaló caminos para su superación, principalmente relacionados con los modelos educativos, que pueden colaborar en el surgimiento de estrategias que aborden los desafíos impuestos por la cultura digital.

Palabras clave: Funcionario; Modelo de pensamiento; Educación

Abstract

Among the variety of issues found in Vilém Flusser's work, his concern about thought modeling that marked cultural transformations stands out, especially in that one responsible for the contemporary formation of the official. As a founding concept of the Flusserian thought, the "official" allows to deepen the reflection on technologization of knowledge, as well as to understand the structures that have generated it. This text will focus in these aspects, and will take into account the way in which Flusser researched it and pointed out ways to overcome it. These ways are mainly related to educational models that can collaborate in the emergence of strategies that address the challenges imposed by digital culture.

Keywords: Official; Model of thinking; Education

Quando observada a amplitude da obra de Vilém Flusser e a maneira como nela o autor se manifesta, pode-se perceber três principais preocupações, distribuídas em cerca de 35 mil páginas: Culturologia, Midiologia/Comunicologia e Filosofia. Categorias que formam pontos nodais para diferentes temas e abordagens que revelam um pensador instigante e provocativo, atento em desafiar seus leitores a serem participantes conscientes dos diálogos inusitados que são travados com os objetos e cenários que os cercam. Por meio destas inquietações, Flusser incita a repensar continuamente os ambientes culturais, que para ele constituem-se como modelos de pensamento que regem a vida, os comportamentos e as criações sociais. Sob este aspecto, o olhar sobre estes modelos é fundamental para entender as determinações culturais e como elas estão diretamente relacionadas à forma imposta pelo modelo comunicacional preponderante. Nas palavras do autor, estes modelos são o chão que pisamos, ou seja, assim como os criamos eles também nos modelam, regulando a maneira como vivenciamos nosso mundo, como nele nos engajamos.

Destes modelos, três principais se destacam por serem encontrados com maior recorrência em sua obra. O primeiro denominado como pré-histórico (Flusser, 2008a ), representado pelas imagens tradicionais, figurado no mundo ritualizado e mágico e marcado por um pensamento imaginativo. O segundo, chamado como histórico (Flusser, 2010; 2007e), predominantemente textual e caracterizado pelo pensamento linear e progressivo, quando a humanidade passa a pensar conceitualmente. E por fim o modelo de pensamento pós-histórico (Flusser, 2011c), representado pelas imagens técnicas, resultante da junção dos dois anteriores mas propositor de uma nova relação onde a subjetividade da criação é abstraída e responsabilizada aos aparelhos.

Em seu mais famoso livro Filosofia da Caixa Preta, Flusser (2011a ) demonstra claramente o que significa esta modificação. Utilizando o exemplo da máquina fotográfica, indica de que maneira nos transformamos quando o aparelho se torna o produtor das nossas imagens. Em resumo, esta transformação pode ser descrita como o limiar em que o livre arbítrio é transformado em heterodeterminação, ou seja, só é possível querer o que o programa anteriormente quis que quiséssemos.

Com isso, não somente sinaliza o cenário em que nos encontramos como destaca o dilema sobre a Liberdade no qual nos vemos envolvidos. Neste problema dá destaque a um personagem específico, sobre o qual será o objeto desta reflexão, o funcionário.

A modelização do funcionário

De acordo com a definição do autor no glossário que acompanha este livro, o funcionário é a “pessoa que brinca com o aparelho e age em função dele” (ibíd., p. 15) e aparelho “o brinquedo que simula um tipo de pensamento” (ibíd.). Sob estas duas concepções, brincar e agir em função, o funcionário se relacionaria ludicamente e servilmente a um sistema cujas regras são formas específicas de pensar, que na obra personifica-se no fotógrafo que cria suas imagens a partir da decisão do aparelho, da máquina fotográfica, lhe restando somente apertar o botão, brincar, e respeitar as regras contidas no programa do aparelho, que pensará por ele.

Contudo, se consideradas as influências de Flusser para a elaboração deste conceito, estes sentidos ganham maior amplitude e profundidade. Dois autores são fundamentais para entender sua proposição: o primeiro Franz Kafka1 (2017a ; 2017b), e seus famosos funcionários, Josef K. e Gregor Samsa, protagonistas das obras “O Processo” e “A metamorfose”, respectivamente, e a segunda Hannah Arendt (2017), principalmente em seus escritos sobre o julgamento de Adolf Eichmann. Nestes personagens, ainda que tivessem vidas completamente distintas, é possível destacar a estrutura mecânica, apolítica, amoral em que se inserem, agindo de acordo com o que o programa estabelece. Os três personagens de alguma forma acabam sendo triturados, automática e inumanamente pela engrenagem do aparelho, seja ele burocrático ou político.

Se colocadas lado a lado, estas três perspectivas dos funcionários passam a significar um viver, uma ação e um saber que funcionam em favor da indústria, da técnica, a serviço do poder, seja ele burocrático, totalitário ou tecnológico. O funcionário pensado por Flusser ganha neste sentido uma contextualização social mais abrangente e destaca que o aparelho tecnológico não pretende somente regular os gestos, mas principalmente o modo de pensar.

Ao aprofundar de que maneira há esta regulação sobre o pensamento, Flusser (2014) esclarece que ao se projetarem sobre nós, as imagens técnicas produzidas por estes aparelhos se apresentam sob diferentes modelações:

  • Modelos de vivência, portanto estética;

  • Modelos de comportamento, portanto ética/política;

  • Modelos de conhecimento, de consciência sobre a vida.

Para ele as mensagens aparecem a nós como modelos de vivência, estéticas, mas esses modelos não são de vivência, são de comportamento. Atrás desses modelos de comportamento que agora substituem o fazer político e ético, ocultam-se modelos de conhecimento. As pessoas sabem o que sabem e agem como agem graças a esses programas. Portanto, o funcionário é acrítico, não é emancipado, não sabe falar, pois ele é somente consumidor. Esta sobreposição de modelações se esclarece quando pensadas as formas como as propagandas, por exemplo, se apresentam esteticamente, ao proporcionar vivências específicas marcadas pelo consumo, mas que desencadeiam um agir que corresponda a lógica da produtividade mercadológica, o que insere os indivíduos funcionalmente em suas estruturas.

Em sentido amplo, estas modelações podem também ser pensadas a partir do cotidiano tecnológico, como os celulares, aplicativos, televisões, cada vez mais velozes, cada vez mais precisos, cada vez mais mágicos, empregando em seus consumidores uma enorme atração, a ponto de delegarem a eles suas próprias capacidades, cognitivas principalmente. Para Flusser (1988) , isto acontece pois os aparelhos possuem estrutura complexa, são impenetráveis, não se sabe como funcionam, como seus programas operam. Por isso o comportamento diante dele, seu uso, é simples, bastando apertar os botões ou arrastar os dedos. Para o autor este uso é idiotizante, emburrecedor. O funcionário não pensa, ele simplesmente opera. Não há conhecimento, não há criação. Os modelos de vivência, comportamento e conhecimento possuem, portanto, maior facilidade para se irradiarem e atuarem sobre o social.

Em contraponto, se o conhecimento for compreendido como processo pelo qual se entra em relação com um objeto ou uma informação, visando obter um saber novo. De que conhecimento se distingue do mero reconhecimento, porque implica busca, a partir da própria experiência, de um saber ainda não produzido, pode-se dizer que a relação do funcionário está longe da geração efetiva de conhecimento. O conhecimento não é uma simples informação, porque implica uma qualificação existencial do pensamento frente à realidade. Por esta razão inclusive, Flusser não denomina o funcionário de homem, já que para ele a humanidade pressupõe existência (ek-siste, ou seja, superação de algo, criação) (Flusser, 2002). Algo que o funcionário não tem, pois não age criativamente.

De todo modo, Flusser não é totalmente crítico a este processo. Quando explica sobre a estrutura complexa do aparelho faz uma outra relação paralela, a de estruturas simples que por serem simples possuem usos complexos, como o jogo de xadrez, fácil em relação às suas regras, ao seu funcionamento, mas desafiante cognitivamente. Para ele estes usos não são dependentes de suas estruturas e que por isso se poderia hipoteticamente ter um uso complexo, criativo, que gere o conhecimento em estruturas complexas, como os aparelhos tecnológicos.

Ainda que tangencialmente, Flusser possibilita interrogar em quais circunstâncias tais ações criativas efetivamente seriam possíveis e por quais razões insiste-se atrativamente por esta usabilidade simples. Sob estas questões elucida-se, portanto, contradições que permeiam o cotidiano de consumo de conteúdos, que, sob a égide da formação de uma sociedade da informação, oblitera o pensar criativo em favor da condição idiotizante, como diz o autor.

Modelos educacionais e a crise do saber

Flusser não traz uma resposta clara e definitiva sobre estas questões, mas indica razões para isto ocorrer e caminhos para superar. Quando vivenciamos, conhecemos, valorizamos e agimos no mundo em função das imagens técnicas, demonstramos, como funcionários, uma servidão ao modo como as informações nos chegam. Aceitamos seu funcionamento, sua velocidade, sua quantidade e suas verdades.

Para ele isto revela um condicionamento que acompanha o funcionário, que pela facilidade no uso dos aparelhos, opera com a informação a partir de sua simplicidade e de sua utilidade. Diante da imensa quantidade de informações acabamos cedendo diante de um sistema utilitarista de construção do saber e delegando a terceiros a decisão sobre o que abordar e como valorar os conteúdos ofertados.

Neste sentido, é importante destacar que embora Flusser seja severamente crítico ao aparelho, ele não observa somente no aparelho a culpa por esta simplificação, mas sim indica que parte desta responsabilidade também recai sobre o uso que temos destes conteúdos, pela maneira como nos colocamos diante dos modelos que nos são transmitidos.

Em nove textos3 pouco conhecidos de sua obra Flusser procura localizar a raiz deste condicionamento e desta redução criativa diante dos conteúdos. Defende que esta crise do conhecimento reflete uma crise mais profunda, uma crise dos nossos modelos de cultura e dos modos como os temos mantido.

Como para ele cultura é a forma como os seres armazenam, processam e transmitem informações (Flusser, 2014), localiza a origem desta crise no momento em que, na construção da sociedade industrial, se objetivou a formação humana fundada nas práticas objetivas e funcionais de produção, onde a construção do conhecimento dá lugar a um saber cuja única proposta é o acúmulo de dados necessários e úteis às tarefas técnicas. Este modelo é o que sustenta, para o autor, a formação do funcionário, e que consiste fundamentalmente na maneira como fomos e somos educados, tanto pelas instituições de ensino, mas também, por consequência, pelos meios de comunicação.

É interessante notar que nestes textos Flusser não propõe propriamente uma teoria ou um método pedagógico, mas acentua por meio deles justamente esta crise dos saberes. Segundo ele, a afirmativa da crise fundamental da nossa cultura implica a afirmação da ruptura da nossa educação. A educação atualmente em curso representaria, de acordo com tal ideia, a tentativa de transmitir modelos esvaziados. Ao observar os sentidos que levaram a este esvaziamento, destaca as sequentes inversões que o modelo industrial sustentou como prática e construção dos saberes.

Evidencia que o modelo original, a Paideia Ocidental, foi fundada e por muito tempo mantida por meio de uma estrutura piramidal, (1) a vida econômica; (2) a vida política, lugar da produção de obras; e (3) a vida contemplativa, lugar de contemplação das ideais imutáveis. Nesse sentido, a escola (skholé, ócio), “é o estado em que uma pessoa se abre para o sagrado”4, sendo por isso uma meta de vida e o principal meio de formação do homem em sua cultura.

Mas com a revolução burguesa tal pirâmide é transformada. Os burgueses assumem o governo, a escola passa a sustentar a política. A escola não mais contempla teoricamente, mas faz teorias que servem à produção de obras. O propósito do Estado burguês não mais é sabedoria, mas atividade produtora. A degradação da escola do primeiro para o segundo lugar na hierarquia existencial, é consequência de reformulação do conceito “teoria”. Não mais contemplação de ideias imutáveis, mas elaboração de ideias aperfeiçoáveis. Em resumo: conhecer é mudar o mundo.

Para Flusser isto se evidenciaria no modo como este modelo escolar divide-se em níveis:

Em nível primário, lugar de adestramento para a vida econômica, da vida com máquinas e seu eterno retorno. Em nível secundário, lugar de preparação para vida política, a que produz e distribui as obras. Em nível superior, lugar da elaboração das teorias e das técnicas que permitam a produção progressiva de obras (...) Em tal sentido, toda escola burguesa é “politécnica”, e é a técnica que a caracteriza”5.

Neste sentido, a escola burguesa busca formar agentes, isto é: para ela, o homem é “homo faber”. O seu ideal é a transmissão dos modelos de funcionamento por parcelas recortadas em disciplinas, achando-se pois a totalidade desses modelos disponível à cultura repartida entre vários professores e alunos. Converte-se, portanto, em a ascholia (negação do ócio, negócio), o ensino esvazia-se como modelo ao privilegiar o fazer utilitário em detrimento do conhecimento contemplativo.

Esta transformação objetiva trará uma série de impactos danosos tanto a estas instituições como àqueles que nelas convivem. Um dos principais danos é o cerceamento do livre pensar em prol de funcionalidades específicas. O resultado ideal de um tal ensino é o profissional, o funcionário e o especialista.

Diante deste cenário, Flusser indica duas consequências da mencionada crise. Por um lado, uma estrutura comunicacional específica, na qual os conhecimentos são transmitidos de um emissor (professor) para serem armazenados por um receptor (aluno). Ou seja, uma comunicação evidentemente discursiva, hierárquica, de transmissão de ideias inertes e assimiladas de forma passiva.

Por outro, este mesmo modelo burguês que criou a fragmentação do saber fez gerar também um distanciamento entre a ciência e o cotidiano técnico, que é agravado quando percebido em correspondência com o cenário midiático anteriormente citado, que retira o fundamento do saber dos espaços consagrados, como a escola, para disponibilizar informações simultaneamente.

Em resumo, Flusser esclarece nestes textos que a crise do saber, responsável pela inércia cognitiva produtora do funcionário, nasce e se reproduz por meio do modelo de ensino. Este modelo, do qual todos somos testemunhas, privilegia o conhecimento utilitário e técnico. Este modelo, e por consequência todas as formas com que lidamos com as informações, estão demonstrando, nas palavras de Flusser, serem “supérfluos, inoperantes e antifuncionais”6.

Para ele, o desafio trazido por este novo modelo de pensamento, em que os aparelhos realizam melhor do que nós a capacidade de acúmulo e disponibilização dos conteúdos, requer de nós e de nossas estruturas de transmissão e ensino também uma nova atitude. Uma ação que não gere mais a submissão aos sistemas condicionantes, mas que seja capaz de atuar complexamente aos novos desafios que se apresentam.

Superação e criação

Para tanto, o autor reflete que o caminho para vencer esta condição estaria na superação da especialização pela universalização do saber, evidenciando que isso significaria uma mudança “por completo das atitudes da humanidade com relação a modelos”7. Nela priorizaríamos mais o acúmulo das informações, já que tudo está disponível, mas sim nos concentraríamos no como podemos lidar com elas.

Foi o que Flusser buscou concretizar em seu projeto com Miguel Reale no planejamento da Faculdade de Comunicação e Humanidades da FAAP, em São Paulo, e no seu diálogo com Milton Vargas, a quem substituiu na disciplina Filosofia do Conhecimento da Escola Politécnica da USP. Denominado inicialmente de Studium Generale, similar com o modelo renascentista do uomo universale, que visava a integralidade do conhecimento e a superação da separação entre ciência, política e arte, este ideal de religação dos saberes vinha sendo pensado pelas universidades europeias no pós-guerra na tentativa de elaborar soluções alternativas para as questões que este período trouxe com sua racionalidade tecnológica. Foram expoentes no diagnóstico e na proposta de soluções: Ernst Cassirer, Max Bense, Arnold Gehlen e Günther Anders8.

A originalidade do projeto de Flusser foi justamente conjugar o Studium Generale europeu com o contexto trazido pelas tecnologias da comunicação. Para ele, contudo, não se trata de replicar o modelo renascentista, mas sim aproveitar-se dos dados programados e disponibilizados pelos aparelhos para criar um conhecimento universalista que não preza a modelação, mas sim a estratégia. Se a crise dos valores não for resolvida, o ensino passará a ser tarefa de televisões e aparelhos”9. Em carta a Miguel Reale, quando pensavam a proposição deste ensino, Flusser esclarece suas ideias:

Em suma: acredito que é possível superar a nefasta separação da arte, da política e da ciência, tão tipicamente burguesa e que resultou em arte pela arte, em política enquanto ideologia, e em ciência enquanto “pesquisa objetiva”, somente depois de ter superado a pretensa “subjetividade da inspiração” tanto quanto a pretensa “objetividade do conhecimento científico”. E isto é possível somente se admitirmos que toda arte tem dimensão autenticamente epistemológica, toda política tem dimensão estética e epistemológica, e que ciência é um fazer artístico e político que visa conhecer o mundo afim de torná-lo melhor e mais belo. Isto é: se admitirmos a intersubjetividade de todo fazer humano, o fato de ele estar no mundo com outros, e de estar no mundo por nele estar com outros10.

Sua questão desse modo recai sobre a relação entre a educação com os sistemas comunicativos, onde a primeira deveria converter “a formação fundada em muitos dados e poucas regras, por uma com poucos dados e muitas regras”11, ou seja, transformar o saber tecnocrático por um saber engajado. À Comunicologia caberia articular uma consciência universalizada, capaz de participar de uma multiplicidade de disciplinas (de jogos) e de operar sinteticamente as várias camadas de significado de um fenômeno vivenciado. Para isso, atuaria recusando modelos estabelecidos para articular dúvidas, propondo diálogos capazes de “provocar zonas de subversão intelectual” (Flusser, 2007d, p. 269 ) para reformular o ambiente comunicológico da sociedade. Em sua conciliação da dúvida com o jogar, o conhecer subtrai do filosofar o fundamento tranquilizador e se projeta ou lança ludicamente a realidade na falta de fundamento através da constante experimentação com regras. A partir dessa posição não se pergunta prioritariamente pelo necessário, mas pelo possível, o que torna o jogo o fundamento de um pensamento das probabilidades e dos cenários de potencialidades.

Nesse sentido, centra na necessidade de substituição do homo faber moderno pelo homo ludens. Este novo homem se projetaria ou se lançaria ludicamente a realidade na falta de fundamento através da constante experimentação criativa. O importante é notar que este caminho abandona a noção de autor individual e de seu modelo discursivo para privilegiar a produção de diálogo criativo. O propósito da nova escola seria permitir criatividade dialógica, e neste sentido intersubjetiva.

Conclusão

Diante destas questões, é importante destacar que as propostas de Flusser, para além de um projeto encerrado, ajudam mais a contextualizar e colocar em discussão temas emergentes para esta época. Absorvidos como estamos pelos sistemas de comunicação e suas possibilidades, por vezes negligenciamos o poder desta comunicação como construtora de nossa realidade. Ignoramos o funcionamento destes modelos e consequentemente o que causam em nós.

Nesse sentido, as contribuições de Flusser colaboram na compreensão sobre as falibilidades destes modelos e na necessidade de haver novas formas de engajamento sobre seus desafios, mais dialogantes com as diversidades de pensamentos que se projetam sobre nós.

Estas questões apresentadas apontam, portanto, para as problemáticas que nos cercam por meio dos modelos educacionais e de suas responsabilidades na construção desta comunicação, recusando um método, mas sim permitindo-nos repensar o nosso lugar e o nosso fazer neste ambiente comunicativo.

Referências

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Flusser, Vilém (1988). On writing, complexity and the technical revolutions. Interview by Miklós Peternák in Osnabrück, September 1988. DVD. We shall survive in the memory of others. Universität der Künste Berlin. [ Links ]

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Flusser, Vilém (2011b). A dúvida. São Paulo: Annablume . [ Links ]

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1 Assim como Flusser, Kafka nasceu em Praga e influenciou diretamente o pensamento de Vilém, tanto por suas percepções da cultura europeia, quanto por seu estilo, como pelos personagens de seus romances. Diversos textos de Flusser dedicam-se a explorar estas características, principalmente pelo modo como Kafka retrata a não humanidade e a questiona acerca dos costumes e crenças arbitrários.

3Por não terem sido ainda publicados são aqui acompanhados das referências como encontradas no Arquivo Vilém Flusser São Paulo. São eles: Ensino (M8-FSP=PZ-12_262), Ensino Superior (M8-FSP=PZ-13_263), Para uma escola do futuro (M7-UNESP-01_158), A questão do ensino superior ([SEM REFERENCIA]_848), Da crise da educação (M3-39_389), Ensino estético ([SEM REFERENCIA]_2677), Nossa escola (1-PHP2-19_1008) e Ensino Multivalente ([SEM REFERENCIA]_3059).

4Nossa escola (1-PHP2-19_1008).

5Para uma escola do futuro (M7-UNESP-01_158).

6Ensino (M8-FSP=PZ-12_262).

7Ensino estético ([SEM REFERENCIA]_2677).

8Suas ideias, em verdade, estabelecem-se na corrente do cenário europeu pós-Segunda Guerra Mundial, compreendida também como uma complicação da racionalidade técnica, em que emergiram na pauta acadêmica das grandes universidades da Europa vários conceitos provenientes da alvorada da história das universidades, conhecidos por Studium generale ou fundamentale. Desse modo, obteve como influência as elaborações de Ernst Cassirer (2004), que já em 1942 apresentou uma proposta para a ciência da cultura integrada às ciências exatas, naturais e da tecnologia; a tese de doutorado de Max Bense, defendida em 1937, intitulada Quantenmechanik und Daseinsrelativität [Mecânica Quântica e Relatividade do Ser-aí]; as discussões de Arnold Gehlen (1960) sobre a nova posição do ser humano em uma natureza confrontada e imposta pela técnica, assim como de Günther Anders com seu estudo Die Antiquierheit des Menschen. Über die Seele im Zeitalter der zweiten industriellen Revolution [A Obsolescência do Homem: Sobre a alma na época da Segunda Revolução Industrial] (2011).

9Ensino. S/p. M8-FSP=PZ-12_262.

10Correspondência localizada na pasta Cor_34-Faculdade de Artes Plásticas da Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado [FAAP] e outras faculdades da Universidade de São Paulo 2 de 3. Referência de acordo com localização do documento no Arquivo Vilém Flusser São Paulo.

11Da Crise da Educação. S/p. M3-39_389.

2Hannah Arendt possui forte presença no pensamento de Flusser, ainda que não tenha sido explicitada. Ambos viveram os traumas do Holocausto e ambos se preocuparam com a questão da liberdade, do acriticismo e dos efeitos dos totalitarismos. Sobre ela, Flusser ministrou o curso “Hannah Arendt” em 1966 na Biblioteca São Paulo, cujo manuscrito encontra-se disponível no Arquivo Vilém Flusser São Paulo.

Recebido: 16 de Dezembro de 2019; Aceito: 16 de Março de 2020

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