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Cuyo

versão On-line ISSN 1853-3175

Cuyo-anu. filos. argent. am. vol.37 no.1 Mendoza jun. 2020  Epub 18-Dez-2020

 

Textos

Comentários a Alguns aspectos filosóficos da automação

Comentarios sobre Algunos aspectos filosóficos de la automatización

Comments on Some Philosophical Aspects of Automation

Diogo Andrade Bornhausen1 

1Doutor e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Diretor de Pesquisas do Arquivo Vilém Flusser São Paulo, Líder de Pesquisa do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia - CISC (CNPq), Professor Fundação Armando Alvares Penteado/SP. Contato: diogobornhausen@gmail.com

Alguns aspectos filosóficos da automação, escrito em 1969 para a II Bienal de Ciências e Humanidades, é um texto inédito dentre as produções de Vilém Flusser. Resgatado para esta edição, revela sua atualidade ao propor a reflexão sobre os desafios antropológicos e filosóficos da automação, tão emergente em época marcada por sistemas algoritmos de modelação de pensamentos e comportamentos sociais. A distância temporal de 50 anos demonstra também que as instigantes provocações de Flusser estiveram à frente de seu tempo e percorrem temas complexos que abrangem campos de pensamentos como telemática, filosofia da mídia, filosofia da imagem e filosofia da cultura.

Neste sentido, este ensaio figura-se a partir desses entrecruzamentos analíticos, revelando um autor não satisfeito ao rigor disciplinar, mas explorador das variadas possibilidades existentes nos fenômenos. Esta característica, presente em toda sua obra, é posta especialmente em destaque neste texto, pois, 1969, é também a época em que Flusser transita entre a primeira fase de seu pensamento, brasileiro, com o que desenvolveria nos anos seguintes na Europa, responsável por sua notoriedade internacional. Suas principais diferenças estão nos interesses ligados às teorias da cultura, do conhecimento e da linguagem, desenvolvidos nos trinta anos em que residiu no Brasil (1940-1973), direcionados à atenção sobre a teoria e filosofia da mídia, apresentados por exemplo em seu famoso livro Filosofia da Caixa Preta, publicado na Alemanha em 1983.

Quando escreveu Alguns aspectos filosóficos da automação, Flusser já detinha posição privilegiada como pensador no círculo intelectual que se formara, principalmente a partir da década de 50, em São Paulo. Sua interlocução com o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), fundado por Miguel Reale, filósofo de direito - e que contava com a participação dos pensadores Milton Vargas e Vicente Ferreira da Silva -, se intercambiava com os diálogos que mantinha com poetas e artistas plásticos e com os textos que escrevia para importantes cadernos de cultura dos jornais. Estas experiências somavam-se ainda à influência autodidata que teve de pensadores como Immanuel Kant, Ernst Cassirer e Martin Heidegger, principalmente.

Ao pensar a questão da automação, demonstra-se, portanto, um autor cujo repertório se compunha com estas variadas influências, o que repercute-se no modo como o texto é desenvolvido. Aberto a diferentes leituras possíveis, Flusser centra a “automação” em relação à história e ao homem, dividindo o texto em três partes: a relação do homem com a técnica, as antropologias possíveis em cada um desses momentos e, por fim, perspectivas para se lidar com os desafios impostos por estas novas técnicas, ou sobre como se poderia pensar em outros caminhos antropológicos.

Ao relacionar sua filosofia com a antropologia e com a técnica coloca sob reflexão o diálogo entre esses campos teóricos, ao mesmo tempo em que a partir deles desenvolve provocativamente os desafios advindos com a automação e como sua condição reconfigura os modelos de pensamento da atualidade. O poder de decisão, tão caro às narrativas transhumanas e humanistas, parece se deslocar a novos eixos propostos pela ascensão tecnológica, o que impõe ao homem a necessidade de repensar sua própria antropologia.

Estes desafios, em verdade, se estendem em diversos momentos da obra de Flusser. Sua atenção ao modo como o homem é lançado à “falta de fundamento” (Bodenlosigkeit) e nela obrigado a estabelecer seus modelos marcou sua biografia, como exilado judeu-tcheco no Brasil após a invasão nazista em Praga, e sua teoria, em que recorre à “absurdidade” do mundo como expressão desta falta, em diálogo com o existencialismo camusiano. Alguns aspectos filosóficos da automação pode, portanto, ser entendido também em sentido amplo, colocado em diálogo com a maneira como Flusser desenvolveu sua concepção de “antropologia” e de “técnica” e de como pensou os cenários envolvidos nestas transformações. Neste sentido, destacam-se duas reflexões que permeiam suas ideias e que colaboram na elucidação sobre como pensava as condições desencadeadas pela automação.

Um dos modos como refletiu sobre as modificações pelas quais o homem passou em sua história foi aliar os diversos modelos de cultura às formas como o mundo era pensado e apreendido em seus diferentes estágios. Conhecida como “escada da abstração” (Treppe der Abstraktion), sua formulação pressupõe o permanente recuo do homem diante de seu mundo, a fim de controla-lo. Para ele, antes do processo de hominização, concebia-se o mundo a partir de três categorias: o comestível, o copulável e o perigoso. Nesta situação, a vida era uma existência sem interesse, tal como os demais animais vivenciam suas realidades.

A principal marca da transição desta realidade é a capacidade abstrativa do homem, um primeiro recuo tido em relação ao mundo da vida (Lebenswelt). A vida deixa de ser sem interesse, se torna objetiva, pois a partir dela o homem toma consciência do seu entorno. Flusser explica esta condição quando, diante do natural, o homem o transforma em dado, em informação. O objeto passa inicialmente a servir o homem, dar-lhe função às suas ações. Este mundo no qual está inserido, esta realidade-objeto, torna-se modelo de significado.

É um processo extraordinariamente questionável, porque pressupõe uma abstração do mundo em que se vive e, consequentemente, um estranhamento do ser humano para com o mundo da vida. É tão correto dizer que é humano armazenar informações em objetos como também é correto dizer que o fato de armazenar informações em objetos é que primeiro faz de nós seres humanos (Flusser, 2014, p. 122 ).

Sob este sentido, como apresentado em Alguns aspectos filosóficos da automação, a modelação desses objetos os transforma em instrumentos, simulantes extensões das necessidades físicas. Suas eficácias, em resposta, reconfiguram o próprio agir, os “instrumentos contra-atacam” tornando o homem sujeito de suas vontades.

Como consequência, Flusser observa um outro degrau na abstração, onde o mundo só poderá ser compreendido por um olhar que toma distância dele, ocasionando um novo afastamento. A capacidade de imaginar o mundo, de produzir imagens dele, significou uma nova mudança, deixando a tridimensionalidade do mundo da vida para bidimensionaliza-lo nas superfícies imaginativas. Este recuo, que para o autor possui a mesma dialética do mundo objetivo, se intensifica quando as imagens que representam (vorstellen) os objetos, passam a se apresentar à frente (stellen sich vor) deles. O mundo das imagens também contra-ataca, o que, nas palavras de Flusser, significará uma outra forma de sujeição. “Em vez de reconhecer o mundo na imagem, começo a reconhecer a imagem no mundo. Em vez de me orientar no mundo objetivo com ajuda da imagem, começo a me orientar na imagem com a ajuda do mundo objetivo” (Flusser, 2014, p. 129).

Em resposta a esta “idolatria”, uma outra consciência é observada por Flusser, um pensar antimágico e antimítico, portanto, um outro degrau da abstração. O pensamento histórico, figurado não mais nas imagens, mas sim na escrita, caracteriza-se pela capacidade de codificar o mundo conceitualmente. Abstrai-se a realidade não mais em planos, mas em linhas, o terceiro recuo é marcado pela “unidimensionalidade”. Como apresentado em Alguns aspectos filosóficos da automação, a manipulação e a convencionalização dos modelos se estabelecem pela abstração reflexiva, o pensar teoricamente e cientificamente a realidade em prol de uma dimensão progressiva histórica.

A práxis serve tão somente para a elaboração de novas teorias que se repercutem em nova práxis. O mundo pensado teoricamente e progressivamente avança, sob o cálculo e sob os diversos instrumentos/máquinas que tornam-se simulantes de um agir e um pensar. Sua crescente abstração se encarregará do último estágio de recuo, a “nulodimensão”. As máquinas não operam mais a partir das “coisas” (mundo objetivo e instrumental), mas como criadora das “não-coisas (a realidade imaterial das informações, dos dados e dos softwares).

Este movimento interessará a Flusser especialmente pelo modo como estes programas tornam-se responsáveis pelo que entende como “automação”. Para ele, sob esta escalada que culmina nas máquinas como simulantes de decisões, toda compreensão filosófica e antropológica deve ser revista, pois, sob antigos paradigmas o homem não terá condições de entender suas transformações. Quando explicava a “escada da abstração” nos diversos cursos que dava, Flusser ilustrava esta retirada de camadas em sua performance, em que a cada abstração dava um passo para trás, sinalizando a perda de um tipo de vivência. Sob a “nulodimensão”, chegava ao limite, não havia mais para onde recuar. Ao mesmo tempo em que o mundo se via completamente abstraído, e por isso completamente manipulável, também se retirava dele a existência corpórea.

O absurdo desta condição, denominada em Alguns aspectos filosóficos da automação como uma “antropologia sem nome”, é recorrida pelo autor em outra alegoria utilizada com destaque em sua obra. Para ele, o inominável se constitui como a terceira grande catástrofe da cultura, que traz consigo novas condições espaciais, temporais e existenciais impostas ao homem.

Expostas com profundidade quando Flusser participou dos Seminários do Celeiro (Kornhaus), organizados pelo mediólogo alemão Harry Pross, suas Reflexões Nômades similarizaram as abstrações às catástrofes pelos quais o homem passou e que lhe obrigaram a reconfigurar seu estar no mundo. A primeira, “hominização”, é marcada pelo nomadismo, onde o homem toca e apreende seu mundo, como a tridimensionalidade do Lebenswelt. A segunda, “civilização”, se constitui pela sedentarização, em que sua apreensão de mundo se estabelece pela representação de sua vida, em imagens e na escrita. E a terceira, “sem nome”, se caracteriza por um novo nomadismo, em que a apreensão do mundo não acontece pelo corpo que descobre, mas pelo espírito que viaja pelos ventos trazidos pela informação.

O vento, este intangível fantasmagórico, que impulsiona o nômade a seguir em frente e a cujo chamado este obedece, é uma experiência que para nós se tornou representável como cálculo e computação. Começamos a nos tornar nômades não apenas porque o vento sopra pelas nossas casas perfuradas, mas sobretudo também porque ele penetra em nós (Flusser, 1997, p. 156 ).

Em suma, é possível destacar que, aliada às ideias apresentadas em Alguns aspectos filosóficos da automação, o pensamento de Flusser é marcado pela tentativa de relacionar as modificações históricas pelas quais o homem passou em paralelo com outras modelações, principalmente antropológicas, comunicológicas e filosóficas. Este empreendimento resulta, por um lado, em uma análise complexa da condição humana e, por outro, em um esclarecimento sobre as contradições inerentes a este processo.

É sob esta contradição que Flusser se direciona ao finalizar este ensaio, pois, se considerada a tecnologia como resultado da objetivação do mundo e como processo simulante para sua melhora, são destes aparelhos que surgem a “nulodimensão” e “catástrofe sem nome”, que colocará o homem em outra condição de absurdidade. Entre um caminho potencialmente criativo ou de nulidade e sujeição diante das decisões do aparelho, Flusser propõe que tal antropologia deva ser pensada a partir do jogo e da ascensão do homo ludens.

Para tanto, defende que este jogo deva ser pensado em sentido inverso ao até agora estabelecido. Se historicamente o pensamento é marcado pela objetivação do mundo, que compreende a realidade tão somente para modifica-la, seria necessário um pensamento que não se expanda para fora, mas contra si mesmo. Para Flusser, o jogo se refere à capacidade de assumir o absurdo, transvalorizando as modelações ao pensar e agir criativamente, ou seja, concebendo o jogar à própria ideia de liberdade.

O fato é que no futuro não teremos mais de tomar decisões, mas preservaremos o direito de revogar as decisões tomadas automaticamente: o direito do ‘não’, do veto. Ora, pois é precisamente este direito de dizer ‘não’, o de vetar, que constitui a liberdade - porque ‘decidir’ não é dizer ‘sim’ para determinada alternativa, mas dizer ‘não’ a todas as demais alternativas. No fundo dos fundos, é o ‘não’ (antigamente chamado ‘espírito’) que é decisivo (Flusser, 2008, p. 124 ).

Bibliografia

Flusser, Vilém (1997). Nomadische Überlegungen. In: Medienkultur. Frankfurt a. M: Fischer. [ Links ]

Flusser, Vilém (2008). O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume. [ Links ]

Flusser, Vilém (2014). Comunicologia: reflexões sobre o futuro: as conferências de Bochum. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]

Recebido: 16 de Dezembro de 2019; Aceito: 14 de Fevereiro de 2020

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