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Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación. Ensayos

versão On-line ISSN 1853-3523

Cuad. Cent. Estud. Diseñ. Comun., Ensayos  no.92 Ciudad Autónoma de Buenos Aires mar. 2021  Epub 15-Ago-2021

http://dx.doi.org/10.18682/cdc.vi92.3875 

Artículo

A viagem como experiencia sensível. Natureza e sociedade nos escritos de Johann Rengger (1819-1825)

Maico Biehl* 

* Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2018) com a Dissertação intitulada; Natureza, Ciência e História na experiência da viagem: o olhar de Johann Rengger sobre o Paraguai (1818-1835). Possui Graduação em História Licenciatura - pela mesma Universidade (2016).

Resumo

O médico suíço Johann Rengger viajou ao Paraguai no início do século XIX. Ensayo Historico sobre la Revolución del Paraguay y el gobierno dictatorio del Doctor Francia e Viaje al Paraguay en los años 1818 a 1826, publicados, respectivamente, em 1827 e, postumamente, em 1835, são algumas das publicações resultantes desta viagem. Compreendidos como inventários de observações feitas sobre a fauna e a flora e os costumes de uma região visitada, os relatos de viagens são inevitavelmente marcados pela experiência de seus autores com a alteridade e com o espaço percorrido. Vale lembrar que a descrição da natureza e da paisagem por viajantes do início do Oitocentos foi construída em intenso diálogo com expressões estéticas vigentes no período, tais como o sublime e o pitoresco, revelando, no caso de Rengger, um olhar atento e próprio do contexto sociocultural no qual estava inserido. Levando em consideração estes pressupostos, nos propomos a apresentar e discutir as descrições e as avaliações feitas por Rengger tanto sobre a paisagem do Paraguai, à luz das orientações estéticas do período, quanto sobre as relações que seus habitantes mantinham com a natureza.

Palavras chave: Natureza; Paisagem; Teorias estéticas; Paraguai; Johann Rengger.

Resumen

El médico suizo Johann Rengger viajó al Paraguay a inicios del siglo XIX. Ensayo Histórico sobre la Revolución del Paraguay y el gobierno dictatorio del Doctor Francia y Viaje al Paraguay en los años 1818 a 1826, publicados, respectivamente, en 1827 y, de modo póstumo, en 1835, son algunas de las publicaciones resultantes de aquel viaje. Comprendidos como inventarios de observaciones hechas sobre la flora y la fauna y las costumbres de la región visitada, los relatos de viaje son inevitablemente marcados por la experiencia de sus autores con la alteridad y con el espacio recorrido. Vale recordar que la descripción de la naturaleza y del paisaje por viajeros de inicio del siglo XVIII fue construída en un intenso diálogo con expresiones estéticas vigentes en aquel período, tales como lo sublime y lo pintoresco, revelando, en el caso de Rengger, un mirar propio y atento del contexto sociocultural en el cual estaba inserto. Considerando estos presupuestos, nos proponemos presentar e discutir las descripciones y las evaluaciones realizadas por Rengger tanto de sobre el paisaje del Paraguay a la luz de las orientaciones estéticas del período, así como sobre las relaciones que sus habitantes mantenían con la naturaleza.

Palabras clave: Naturaleza; Paisaje; Teorías estéticas; Paraguay; Johann Rengger.

Abstract

The swiss physician Johann Rengger traveled to Paraguay in the beginning of the nineteenth century. Ensayo Historico sobre la Revolución del Paraguay y el gobierno dictatorio del Doctor Francia and Viaje al Paraguay en los años 1818 a 1826, published, re-spectively, in 1827 and, posthumously, in 1835, are some of his publications that resulted from this trip. Comprehended as inventories of observations made on the fauna and flora, and the mores from the visited regions, the voyage reports are inevitably marked by the experience of their authors with the otherness and the space traveled. It is worth mentioning that the description of the nature and the landscape made by travelers from the beginning of the nineteenth century were built in dialogue with aesthetic expressions in force in the period, such as the sublime and picturesque, revealing, in Rengger’s case, a careful look particular to the sociocultural context in which it was inserted. Considering those assumptions, we propose ourselves to present and discuss the descriptions and evaluations made by Rengger on the Paraguayan landscape, in the light of the aesthetic orientations of the period, as well as on the relations that its inhabitants maintained with the nature.

Keywords: Nature; Landscape; Aesthetic theories; Paraguay; Johann Rengger.

Viagens, sensibilidade e narrativas: Introdução

Entre 1819 e 1825, os médicos suíços Joahnn Rengger (1795-1832) e Marcel Longchamp (1791-1861) exploraram o Paraguai do doutor Francia1 com o objetivo de estudar a História Natural da região. Resultado de uma iniciativa pessoal, portanto, não dispondo de nenhum auxílio financeiro de uma academia científica, Estado ou monarca europeu, a medicina foi o meio utilizado por Rengger e Longchamp para se proverem ao longo de sua viagem. Submetidos à autoridade de Francia, Rengger chegou a atuar em determinadas ocasiões como médico das tropas do exercito paraguaio, porém, sua maior dedicação foi com a coleta de espécies naturais, cuja coleção teve que renunciar, contentando-se com poucos exemplares, quando da autorização do ditador para que deixassem o país. De volta á Suíça, em 1826, Rengger ocupouse de sistematizar e de editar os seus escritos, resultando nas obras Ensayo Historico sobre la Revolución del Paraguay y el gobierno dictatorio del Doctor Francia, de 1827, História Natural dos Mamíferos do Paraguai, de 1830 e Viaje al Paraguay en los años 1818 a 1826, de 1835. Vítima de tuberculose, faleceu em 1832 ainda quando preparava a publicação da narrativa de sua viagem.

Em meio às descrições das expedições pelo interior do Paraguai e da sua fauna e flora, Johann Rengger fez questão de registrar o cotidiano após as jornadas diurnas. Nesse pequeno capítulo de Viaje al Paraguy, a noite e o descampado formam o cenário em que o viajante e seus acompanhantes procuram se recuperar do dia passado no interior das matas. Conforme Rengger, “Estas horas nocturnas se cuentan entre las más inolvidables de mi vida, al igual que la estadía en los despoblados sobre todo, y me ofrecen los recuerdos más reconfortantes de mi viaje en Paraguay” (Rengger, 2010, p. 194). Solidão, saudade e medo são alguns dos sentimentos que agiam nessas horas noturnas sob o médico suíço. A escrita do diário -prática realizada por Rengger nos momentos de descanso- implicava em lembrar as ações do dia, os seus desafios, as belas paisagens vistas, o descobrimento e o contato com uma nova espécie animal ou, mesmo, com um grupo nativo. Estas situações, igualmente, despertavam sensações e pensamentos que, seja pela serenidade ou pela inquietação, recordavam ao viajante que se estava no espaço do Outro. Indistintamente do período, aqueles que tomaram a decisão de viajar realizaram um exercício de sensibilidade a partir do contato com o real até então desconhecido.

Nesse processo de contato os sentidos são fundamentais por estabelecerem a primeira relação com a nova realidade2, da qual, para Sandra Pesavento (2007), decorrem as sensações, ou seja, uma reação que altera a relação entre o ser o mundo. Ainda segundo a autora, as sensações são seguidas da percepção, “[...] ato pelo qual o indivíduo organiza as sensações que se apresentam, interpretando e complementando por imagens, lembranças e experiências” (Pesavento, 2007, p. 12), encerrando, assim, a etapa anterior a atividade mental da reflexão, esta própria da produção de sentimento. Portanto, antes da atividade reflexiva racional, as sensações, advindas de uma nova relação estabelecida, são qualificadas por valores e avaliações pela percepção, confluindo no sentimento, então, como uma expressão racional e “[...] sensível mais durável que a sensação, por ser mais contínua, que perdura mesmo sem a presença objetiva do estímulo” (Pesavento, 2007, p. 13).

Ainda que o estilo narrativo de cada época tenha muito a contribuir com o aumento ou o recuo da presença e da importância das sensibilidades nos relatos3, entendemos que as narrativas de viajantes foram significativos canais de manifestações de sensibilidade, na medida em que ambos configuramse como dispositivos de tradução da realidade visitada, conformando um discurso sobre o Outro4.

Destacando a associação entre a viagem e o ato de criação e, por conseguinte, o viajante como um criador a partir da escrita do relato de viagem, Juan Pimentel (2003) coloca em evidencia o potencial de produção de conhecimento que a experiência da viagem proporciona. Para o autor o momento da escrita, “es entonces cuando el viajero se hace autor, cuando la geografía de los lugares visitados se convierte en su obra” (Pimentel, 2003, p. 35). Tal processo de conversão das imagens das terras exploradas em texto implica na manipulação de duas variáveis importantes pelo autor do relato: o tempo e a narrativa. O primeiro informa a respeito da diferença entre a viagem, os apontamentos, a obra e sua publicação. Após a viagem- portanto, em um contexto espacial e temporal diferente -os registros e as impressões deles decorrentes são retomados e reorganizados em vista da publicação, o que para Andrea Reguera (2010) faz destes materiais verdadeiros atos de memória praticados pelos viajantes. Ainda segundo a autora, a relação “[...] entre la memoria propiamente dicha y la reminiscencia, significa que se recuerda ‘sin las cosas’ pero ‘con el tiempo’ [...] Esto significa la imagen presente de una cosa ausente que sucedió con anterioridad y cuya dinámica consiste en el recuerdo” (Reguera, 2010, p. 16). A segunda variável consiste na forma e na expressão que o autor dará a essas representações e lembranças no relato, ou seja, como descrevêlos e seguindo quais princípios. Dentre as narrativas produzidas por viajantes-naturalistas entre a segunda metade do Setecentos e as primeiras décadas do Oitocentos, observamse relatos que priorizam as descrições taxonômicas das espécies e os aspectos da geográfica física do lugar explorado. A essa descrição mais laboriosa somou-se uma preocupação literária e estética, cuja representatividade é atribuída às obras de Humboldt. Influenciado pelo movimento romântico suas publicações expunham uma descrição científica e estética revelando a fluidez entre a Ciência, a Arte e a Literatura no período. Informando dos avanços e debates científicos, os relatos dos naturalistas encontraram na arte uma “expressão privilegiada para dar conta das sensações visuais experimentadas”, conforme destaca Lorelai Kury (2001a, p. 866), mas não somente as ilustrações, o próprio texto, a partir da arte do bem narrar, deveria ser capaz de apresentar ao leitor os lugares visitados e as sensações que deles emanaram. Nesse sentido, a filósofa francesa Anne Cauquelin (2007) destaca que a paisagem teve um impulso inicial por meio da literatura e suas diversas expressões (poemas, romances, meditações e relatos de viagens), no entanto, atribui às imagens, a representação pictórica, uma maior persuasão, um poder de convencimento quanto à existência do retratado e as emoções anteriormente descritas5.

Vistas da natureza: a paisagem no relato de Johann Rengger

A partir do anteriormente comentado sobre a relação texto, imagem e paisagem, fica evidente que esta última não se restringe a um simples inventário de elementos naturais e artificiais. A paisagem é produto de um enquadramento de uma cena, da descrição e organização dos elementos naturais e criados mediados por olhares e percepções que os elaboram e os avaliam. Tal processo para o geógrafo inglês Denis Cosgrove (2002) implica em reconhecer a paisagem como uma construção cultural e social, na qual a figura do observador é fundamental, pois, seu olhar não é desinteressado, nem tampouco autônomo, mas sim, condicionado pelo ambiente cultural que o cerca. Seus sentidos -principais instrumentos da observação- são educados por noções artísticas e estéticas, enfim, noções coletivas que orientam o entendimento a respeito da paisagem6.

Partindo da definição acima citada, a leitura do relato de viagem de Johann Rengger revela uma escrita despreocupada em informar aos leitores sobre as paisagens do Paraguai, o que, por sua vez, não significa que o médico suíço não se ateve a observálas. Inicialmente devemos considerar o fato de Rengger não ter concluído o seu relato, cujas consequências não apenas se referem a capítulos faltantes, como sobre a vegetação, mas igualmente, a uma redação que não pôde ser revisada e detalhes que não puderam ser informados. Por fim, a própria estrutura da narrativa ao separar em capítulos distintos a descrição do relevo, da hidrografia e do clima efetuou uma decomposição das cenas observadas. Nesse sentido, a publicação de parte do diário de viagem do autor ao final do seu relato é que melhor evidencia a atenção de Rengger em olhar, selecionar, organizar e descrever os elementos naturais e artificiais que avistou ao longo de suas viagens pelo Paraguai.

Em seus primeiros dias na cidade de Assunção, Rengger foi até o ponto mais alto de uma colina da capital e contemplou o seu entorno. Dessa observação resultou um extenso registro em seu diário daquilo que seus sentidos lhe informavam e, ao finalizar sua reflexão sobre a paisagem, o médico suíço faz as seguintes observações:

La vastedad del río, la exuberante vegetación que lo circunda, el salvajismo del terreno en un orilla y el cultivo incipiente por todas partes en la otra, la innumerable cantidad de pájaros que vuelan hacia arriba y abajo sobre el agua en bandadas, los rebaños de caballos y vacunos que pacen, que animan la comarca por doquier, hacen de este panorama uno de los más bellos que yo haya visto en el interior de un país. Además de ello, se transforma, por así decirlo, a cada hora del día. Juvenilmente bella es la salida del sol, una vez que todas las plantas han sido bañadas por el rocío nocturno; al mediodía, cuando los vapores se han elevado del suelo caldeado, la comarca aparece como envuelta en un transparente velo blanco y, cuando el sol poniente tiñe de rojo el cielo y su arrebol se refleja en la masa vaporosa, el paisaje está como rodeado por una atmosfera ardiente (Rengger, [1835] 2010, pp. 299-300).

A sensação de deslumbramento que Rengger consegue transpor para as linhas de seu diário justificase pelo conjunto que compõe aquilo que seus olhos observaram. Nesse sentido, é possível identificar na narrativa do viajante a utilização de um padrão paisagístico formado pela presença de elevações -quer como um ponto de observação, quer como elemento referencial da paisagem-; pela variedade dos elementos naturais e/ou artificiais constituintes da cena e pela visão extensa e animada devido ao movimento de pessoas e animais. Tais aspectos são insistentemente procurados por Rengger na composição de paisagens aprazíveis (Biehl, 2017). Na passagem supracitada encontramos presentes todos estes aspectos. A vista do alto de uma colina permite a busca por um panorama, uma visão ampla sobre todo o entorno do observador, um olhar totalizador, como sugere Certeau (1996), capaz de tudo olhar e registrar. A partir destas cenas, passase à organização dos elementos naturais, com o rio Paraguai e sua verde mata ciliar assumindo centralidade e se tornando um divisor entre as terras dos índios payaguás à esquerda e os cultivos dos assuncenos à direta. Ademais, os elementos, tanto da flora e da fauna, como as construções humanas garantiam a variabilidade e a dinamicidade da paisagem tão desejada por

Rengger. Esta é cuidadosamente descrita através da presença e da circulação de animais, e, muito especialmente, do próprio ciclo diário da natureza, traduzido no amanhecer, no meiodia e no anoitecer. Tais transformações afastavam qualquer monotonia do horizonte ou outros lastimosos sentimentos, como a inquietação que Rengger sentiu ao viajar pelo bosque de Caaguazú, entre as cidades de Villa Rica e Yhú, em cuja “[...] selva extensa y espesa, no se ve ni se oye a ninguna criatura viviente, fuera del raro sonido de un ave” (Rengger, [1835] 2010, p. 323). Tampouco as estimadas vistas extensas do alto de uma colina, que o permitiram ver por cima do bosque outras elevações com gramíneas, aliviaram o viajante, para quem “[...] esta escena tenía para mí poco atractivo; más bien se entristece en desiertos donde ni un animal da vida a la escena” (Rengger, [1835] 2010, p. 323). A ausência da ação humana, evidenciada nos campos cultivados tão ao gosto de Rengger, e de pujança da fauna e da flora, formavam, assim, uma triste realidade para o médico suíço. As primeiras impressões das viagens que Rengger fez no território paraguaio, e que se encontram em seu diário, apontam para uma mescla entre regiões belas e outras pouco atrativas. Estas diferenças foram, no entanto, suavizadas, e a natureza paraguaia foi apresentada como sendo plural em sua flora e fauna, dotada de uma farta hidrografia e de belas selvas e planícies. Homogeneizadas as diferenças, elas passaram a ser sinônimo de positividade; as descrições, no entanto, continuaram respeitando o padrão paisagístico instaurado pelo autor.

Para Rengger, a faixa composta por cidades e que se estendia desde Assunção, passando por Pirayú até Villa Rica -região central- formava o território que oferecia “[...] los lugares más bellos del Paraguay, entrecortado por vales muy pintorescos como los de Tapuá, Limpio, Paraguarí, etc.”, sendo que o último vale constituía para o viajante um modelo para os demais, razão pela qual passou a descrevêlo (Rengger, [1835] 2010, p. 52). Ao informar as coordenadas geográficas do vale e sua largura, que findava em uma cadeia montanhosa coberta irregularmente de bosques, o que permitia ver de tanto em tanto a sua formação rochosa, o viajante não deixa de destacar a presença de um arroio cruzando o fundo plano do vale, que, por sua vez, “[...] ostenta una hermosa vegetación” (Rengger, [1835] 2010, p. 52). Todo esse entusiasmo com a região de Pirayú e Pirebebuy, manifestado por Rengger em seu capítulo sobre o solo do Paraguai, já havia sido objeto de registro em seu diário. Ao não destacar as dificuldades com que se deparava nos deslocamentos, o viajante acabava por ressaltar a beleza natural, pois, segundo ele, “[...] el camino es muy agradable, pues constantemente se marcha junto a un encantador arroyo del bosque que serpentea entre las cadenas de colinas” (Rengger, [1835] 2010, p. 319).

A ideia de que Rengger segue um padrão paisagístico em suas descrições e, especialmente, que procura visualizálo nas terras do Paraguai, fica evidenciado não somente em suas avaliações positivas sobre o meio, mas, igualmente, quando se deparava com paisagens que o impressionavam negativamente. Resultado do confronto entre a expectativa e a realidade que a experiência da viagem proporciona, os registros em negativo da paisagem evidenciam um olhar armado previamente por “[...] uma rede de relatos, descrições, páginas e páginas de viajantes [...]”, que em seguida é desarmado pelo contato com o real, como afirma Flora Süssekind (1990, p. 32). O mesmo é sustentado por Anne Cauquelin (2007, p.

ao afirmar “[...] que as operações que nos auxiliam a reconhecer a forma da paisagem por meio de ‘tropos’ da linguagem figurativa já estão instaladas em nosso saber implícito: uma ‘bela paisagem’ satisfaz, para nós, condições que são comuns a nossa cultura”. Nesse sentido, um exemplo singular provém das viagens que Rengger fez em torno das cercanias da cidade de Villa Real, região produtora de ervamate e que tem seu relevo marcado pela presença da cordilheira de Mbaracayú ao leste. O contato que o viajante suíço teve com uma parte desta cadeia montanhosa resultou em um relato marcado por contrastes:

Sin embargo la cordillera de Mbaracayú ofrece un aspecto oscuro nada pinto-resco. Las laderas, casi a pico, de roca viva parcialmente descompuesta y cuyos restos se acumulan al pie, así como los desastres ocasionados por las torrentes que en tiempo de las lluvias bajan por todos lados, son impropios para alegrar la vista. Inclusive subiendo a las cumbres más altos no se modifican la escena. Como las cimas son boscosas y los vallecitos demasiado angosto para ser vistos desde lejos, el conjunto aparenta ser una inmensa selva. Bajando desde allí hacia el Sur, este aspecto salvaje disminuye a medida que los vallecitos se ensanchan y las cimas de las montañas se transforman en masetas, que en partes están cubiertas de bosques y en parte de pastizales. Aun así, como todos estos montículos se parecen por su altura, por su forma y por su vegetación, el paisaje es aún bastante monótono. Sin embargo, cuando en la parte meridional de la región se llega a los grandes valles ondulantes, en medio de los cuales se eleva aquí o allá alguna formación cónica aislada y cuyos bordes están surcados por un gran número de arroyuelos, junto a una vigorosa vegetación; cuando uno se ve esos valles limitados por amplias masetas con pendientes suaves y vivificadas por surgentes frecuentes, entonces se goza de una visión tan alegre cuanto extensa (Rengger, [1835] 2010, p. 54).

Se, em direção ao sul, aproximando-se da região central, a paisagem apresentava condições capazes de alegrar o médico suíço, na cordilheira de Mbaracayú, no entanto, a natureza apresentava-se como severa, devido às fortes chuvas que interferiam nos elementos naturais, arrastando detritos à base das montanhas; os estreitos vales impediam a adequada entrada da luminosidade solar, de modo que, nem do alto, o viajante suíço conseguia ter uma vista aprazível, apenas um conjunto selvagem. Ao sul da cordilheira, a mudança se dava paulatinamente. As colinas apresentavam uma vegetação, ora mais rala, ora mais densa. Já a monotonia produzida pela ausência de alterações na paisagem só cessaria ao serem avistados os vales ondulados, com várias e distintas montanhas entre arroios e uma cobertura vegetal mais pujante.

As passagens até aqui citadas da obra de Johann Rengger deixam claro que a paisagem não era apenas constituída por meio da observação meticulosa do viajante, tendo em vista a elaboração de um relato científico, mas, também, pelas expressões de sensibilidade que ela suscitava. Alegria, tristeza, conforto, inquietação, encantamento, reprovação, tranquilidade e satisfação são algumas das expressões que Rengger manifesta ao contemplar as paisagens do Paraguai. Ao mesmo tempo, seu estado d’alma não pode ser desvinculado do imponderável e do fatigante que acompanham uma viagem dessa dimensão. Marasmos em meio dos rios ou a parada para o descanso noturno sob a luz da lua eram momentos em que a nostalgia se avizinhava e cedia a outros sentimentos. Contudo, o ambiente descrito caracterizavase pela novidade, e Rengger reagia ao novo com olhos ambientados à paisagem europeia. Não é de se estranhar, portanto, que comparações tenham sido estabelecidas, tanto como uma forma de tradução do que havia sido visto, como parâmetro de valorização do observado, como se percebe no comentário que faz sobre os vales de Pirayú: “La comarca es, para Paraguay, muy bella, una verdadera serranía, parecida a los contrafuertes del Jura en mi país natal o a la región de Suabia” (Rengger, [1835] 2010, p. 318)7. Assemelharse ao conhecido, neste caso, o europeu, é sempre positivo para o viajante.

No caso de Johann Rengger, suas descrições do meio natural revelam uma escrita não muito preocupada com as formas estéticas de seu texto. Na comparação com relatos de outros viajantes do período, Rengger produz um discurso que podemos denominar de equilibrado, tanto em relação aos detalhes científicos, como sobre a vivacidade estética da natureza, ainda que, no conjunto de suas obras, seja possível apontar certa predisposição à narrativa científica. Apesar de toda a importância e influência que os escritos de Humboldt tiveram nesse processo de confluência de um discurso científico e estético, nem todos os viajantes o praticaram de forma tão consciente. Rengger é um exemplo de autor que conhecia a obra do viajante prussiano, no entanto, não pode ser considerado um humboldtiano convicto. Enquanto um expoente do paisagismo romântico, Humboldt consagrou paisagens nas quais a interferência humana era despercebida, os lugares desabitados revelavam o protagonismo da natureza com toda sua carga dramática, inacessível e grandiosa, além de destacar as origens e a história das regiões como elementos importantes para o futuro desenvolvimento natural e humano (Martín, 2000). Inseridas em uma concepção cósmica de natureza, as descrições de Humboldt são, para Mary Louise Pratt (1999), influenciadas pela estética do sublime.

Tanto o sublime quanto o pitoresco foram duas correntes da filosofia da arte fundamentais entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Tributárias de movimentos como o Pré-Romantismo e o Romantismo, o desenvolvimento das duas categorias estéticas ocorreu em um contexto marcado por uma nova relação do homem com a natureza, como adverte Karen Lisboa (1997). Menos sacralizada, a natureza para a autora, “Deixou igualmente de servir de ‘modelo universal’ e passou a ser um ‘estímulo’ diante do qual os sujeitos reagem diferentemente; também não era mais tida como ‘fonte de todo saber’, mas como ‘objeto de pesquisa cognitiva’” (Lisboa, 1997, p. 97). Ainda assim, como adverte Márcia Naxara, as noções de belo, de sublime e de pitoresco “Remetem a sentimentos e sensações que, embora tendo singularidades que os definam, muitas vezes como opostos, frequentemente se interpenetram, tornando difícil o estabelecimento de barreiras claras entre eles” (Naxara, 2004, p. 69)8. No que tange ao contato com a natureza, tais categorias moldaram as descrições textuais de muitos viajantes, dando forma a um repertório de sensações e sentimentos constantemente reiterados nas narrativas. No caso do pitoresco, os relatos informam sobre uma natureza acolhedora, mais modesta, caracterizada pelas formas rústicas, irregulares e variadas, imprimindo uma sensação de conforto em seus observadores. Já a influência do sublime apresentava linhas carregadas por uma natureza hostil, austera e grandiosa, capaz de provocar ansiedade e solidão em quem lhe apreciava. Enfim, uma “[...] realidade transcendental”, como afirma Lisboa (1997, p. 98). Ao analisarmos as descrições presentes no relato de Rengger, o que se percebe é que, para além do juízo particular e subjetivo do belo, que, por vezes, as paisagens do Paraguai lhe suscitavam, a natureza observada nem sempre se apresentava como positiva e clara, como no ideal clássico, mas, às vezes, era também agressiva e enigmática, ao estilo romântico (Argan, 1992).

No entanto, as semelhanças com o paisagismo romântico não são tão marcantes. Rengger tinha uma verdadeira repulsa pelas paisagens escuras e sem movimento; o desabitado não lhe satisfazia. Nestas condições, nem mesmo a vista de uma cachoeira -aprazível para tantos viajantes- foi capaz de lhe sensibilizar. Ao dissertar sobre o rio Aguaray, cujo leito corre pela cordilheira de Mbaracayú e é um afluente do rio Jejuy, Rengger destaca que em seu curso havia “[...] una de las cascadas más altas que se conocen, pero encontrándose hundida en una garganta y completamente rodeada de selva, no ofrece ninguna atracción. Es más bien un espectáculo triste y salvaje, en medio de una naturaleza oscura y desierta” (Rengger, [1835] 2010, p. 79).

Reforçando a necessidade de uma presença, humana ou não, para animar a paisagem, Rengger deixa transparecer seu alinhamento com o ideal iluminista que defendia a interferência na natureza, a necessidade de o homem corrigir e modificar o meio de acordo com suas necessidades (Argan, 1992). Nessas circunstâncias, nas quais a paisagem não confere com o seu ideal, Rengger descreve os elementos naturais pelo viés do sublime, apresentando-os como selvagens e hostis. Contudo, a maior parte das suas descrições paisagísticas, nas quais se evidencia uma influência estética, está orientada pela noção de pitoresco, especialmente, quando as paisagens são avaliadas de forma positiva, como atrativas, agradáveis, exuberantes e formosa. Conforme Giulio Carlo Argan (1992, p. 12), “para o ‘pitoresco’, a natureza é um ambiente variado, acolhedor, propicio, que favorece nos indivíduos o desenvolvimento dos sentimentos sociais”. Ainda que diante da vastidão das planícies ou das alturas das montanhas, a natureza instava os homens a refletir, quer sobre sua origem e funcionamento, quer sobre as angústias humanas, instigandoos, também, a interagirem com o meio e a modificálo.

O meio natural e o habitante do Paraguai

Ao refletir acerca da interação e das modificações efetuadas no ambiente, a narrativa de Johann Rengger ultrapassa as dimensões físico-material -elementos naturais e artificiais-, e cognitiva-cultural -percepções e interpretações-, da paisagem para colocar no centro da discussão a relação dos paraguaios com o seu meio natural. Nesse sentido, as práticas agrícolas foram uma chave interpretativa importante para as observações de Rengger.

Considerando que a agricultura era percebida como uma aplicação da botânica e, de forma geral, da História Natural, coube a Rengger, não como naturalista, mas como alguém interessado em seu estudo, o trabalho de identificar as distintas formas através das quais os produtos naturais eram transformados, quais cultivos eram propícios para cada região e qual seu potencial comercial (Kury, 2001b). Para o viajante, a agricultura era “Una de las principales ocupaciones de los habitantes de Paraguay [...] Esta aún, sin duda, en una suerte de infancia, pero lo que falta en empeñosidad, experiencia y destreza, lo suple el suelo mediante su fecundidad” (Rengger, [1835] 2010, p. 139). Nesse sentido, a qualidade do solo assegurava a produtividade dos cultivos, que poderia, facilmente, ser multiplicada por meio do aprimoramento das técnicas e de um maior empenho dos campesinos. Segundo as reflexões do geógrafo Milton Santos (2006, p. 16), “As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”, ou seja, é um elemento constituinte do meio e a principal relação estabelecida entre o homem e a natureza (Santos, 2006). Nesse sentido, se o espaço é uma consequência das técnicas, estas seriam, sob a perspectiva de Michel de Certeau, as operações capazes de conectarem e retirarem de sua estabilidade e isolamento os objetos que compõem o lugar, convertendo-o em espaço, um lugar animado pelas práticas, enfim, “[...] um lugar praticado”, como afirma o autor (Certeau, 1996, p. 202). Assim posto, o comentário do médico suíço carrega consigo a comparação entre duas naturezas distintas. Uma delas, típica de regiões europeias, em que a industrialização já havia avançado, e a outra, composta, majoritariamente de pequenos arrendatários e proprietários, ambos em fase de estruturação9.

Seguindo na mesma lógica comparativa, Rengger concentrase nas ferramentas utilizadas pelos campesinos paraguaios destacando a rusticidade dos instrumentos empregados, tais como enxadas, pás, arados e ancinhos, sendo que nem todos eram feitos de ferro, como no caso de algumas pás construídas a partir de ossos de boi e arados de madeira. Partindo de uma concepção do meio natural como recurso, a forma rudimentar com que o homem paraguaio se relacionava com seu ambiente implicava em um retorno modesto para Rengger. De acordo com Luciana Murari (2015, p, 272), “[...] podemos compreender a ferramenta como um aperfeiçoamento da força e da habilidade do homem, o que nos conduz a compreender que a técnica e a natureza se criam e se alimentam reciprocamente”. Considerando-se as ferramentas enquanto uma extensão do sujeito, a utilização de instrumentos simples reforçava a ideia defendida por Rengger de que o homem americano necessitava de auxílio para o seu pleno desenvolvimento. Existiria, portanto, segundo ele, uma relação de acomodação entre os habitantes e o seu meio natural.

No entanto, nem tudo estaria, na ótica do médico suíço, equivocado na relação dos paraguaios com seu meio natural. O conhecimento acumulado e as técnicas aplicadas na escolha e no preparo do solo não foram contestadas pelo viajante. Segundo o médico suíço, os paraguaios evitavam áreas de planície, devido ao fato de o solo ser muito arenoso e argiloso, suscetível a alagamentos e exposto aos ventos, preferindo, portanto, “[...] talar una porción de monte, cuyo suelo siempre contiene mucha tierra vegetal, y disponen allí sus plantaciones, al amparo de los árboles, o las preparan en la ladera de una colina, donde el agua no puede acumularse” (Rengger, [1835] 2010, p. 139). Reconhecendo a validade do conhecimento utilizado pelos paraguaios em seus roçados, o viajante informa que partes das árvores derrubadas eram utilizadas no cercamento das plantações e as demais eram queimadas, resultando em quantidade de cinzas, que, juntamente, com a terra vegetal, ao serem removidas, tornavam o solo extremamente fecundo. A prática das queimadas era usual, conforme assegura Rengger, sendo realizada tanto em áreas novas, como em replantios. Por vezes era adotado um rodizio de terras, com vistas à recuperação de sua qualidade, mas normalmente, o procedimento utilizado era eficaz, dispensando, inclusive, o uso de adubo animal e de irrigação. Em síntese, para Rengger:

Por lo demás, una preparación del suelo, como en Europa, es innecesaria en Paraguay. La tierra vegetal es fácil de remover, y sus capas no son muy gruesas, de modo que mediante una arada profunda sólo se revolverían y traerían a la superficie las capas inferiores del suelo, que se componen de arena y arcilla. Puesto que además el clima de Paraguay es cálido y al mismo tiempo húmedo, la sequía persistente es rara; ya que casi todas las noches cae bastante rocío y ya que finalmente, todas las partes muertas de las plantas se pudren y descomponen en tierra, por el fuerte calor y por la humedad, el abono y el riego de las plantaciones son completamente superfluos (Rengger, [1835] 2010, p. 140).

Dadas as condições tão propícias para o desenvolvimento da agricultura, Rengger retoma sua crítica à falta de cuidado e de industriosidade demonstrada pelos campesinos, cujo resultado era a incapacidade em agregar valor ao produto produzido. Um exemplo dessa situação pode ser encontrado no cultivo do trigo. Plantado na região das missões, em virtude do clima mais ameno, a produção segundo Rengger, apenas atingiria o sêxtuplo do possível, em razão da sua exposição a fungos danosos, sendo que “[...] nadie piensa en prevenir este daño mediante el remojo de la semilla en una solución de sulfato de cobre u otras soluciones salinas” (Rengger, [1835] 2010, p. 152). Ainda de acordo com o viajante, a farinha produzida a partir desse trigo era de qualidade inferior e mais escura do que a importada de Buenos Aires, o que se devia tanto à má qualidade dos grãos como à moenda realizada. Tais observações manifestam a inquietação de Rengger diante da relação que os homens mantinham com o meio natural, transparecendo em seu discurso a constante necessidade de reafirmar que o ambiente natural era um recurso não explorado em sua plenitude pelos habitantes do Paraguai.

Além dos cultivos agrícolas, podemos identificar outros dois aspectos da relação dos paraguaios com seu meio que chamaram a atenção de Rengger. O primeiro referese aos poucos jardins encontrados. Mesmo na capital Assunção, o médico suíço observou que “Es muy poco frecuente encontrar un jardincito junto a una casa, y, si hay uno, está mal cuidado y lleno de malezas” (Rengger, [1835] 2010, p. 101). Valorizada desde o início do século XVIII, a jardinagem, inicialmente, tida como uma prática aristocrática, desenvolveuse em todas as ordens da sociedade europeia, como afirma Keith Thomas (1996, p. 279), expressando uma forma pela qual “[...] as pessoas humildes podiam aspirar a um certo respeito. O cultivo de flores, acreditava-se, tinha efeito civilizador sobre os pobres trabalhadores. Ligava o homem ao lar e difundia o gosto pelo asseio e pela elegância”. Assim como nos campos cultivados, a falta ou a inadequada conservação dos jardins indicava um juízo estético, que apontava para o uso adequado do solo, seja para fins produtivos ou de satisfação e bem-estar pessoal. Na avaliação de Johann Rengger, domínio, uso e estética deveriam orientar as relações entre o homem civilizado e o meio natural.

Compondo a paisagem das ruas de Assunção, dos vilarejos no interior e das estâncias produtoras, o segundo aspecto destacado por Rengger diz respeito aos animais domésticos. Em seu diário, o médico suíço registrou a violência que caracterizava as relações com estes animais:

La costumbre de ver diario derramar la sangre de distintos animales o de derramarla en persona puede, si no disculpar, al menos explicar, la inclinación a la crueldad tan generalizada que se advierte en los moradores de algunas provincias de Sudamérica. El trato brutal de los animales en general, por ejemplo los de tiro y carga, seguramente también tiene influencia sobre el modo con que se tratan los humanos. Es digno de mencionar que justamente las mujeres son las más ávidas por presenciar el espectáculo, tan inhumano, de las corridas de toros (Rengger, [1835] 2010, p. 328).

As críticas feitas por Rengger não chegam a ser originais e, tampouco as práticas relatadas se opõem às praticadas na Europa. Conforme o estudo de Keith Thomas sobre as relações entre o homem e o ambiente natural na Europa Moderna:

[...] não havia nada de novo na ideia de se condenar a crueldade desnecessária com os animais. Tal opinião foi sustentada por muitos moralistas clássicos; foi avançada pelos escolásticos medievais, e reiterada no inicio do período moderno. Mas ela não nascia de qualquer consideração particular para com os animais; ao contrário, se os moralistas condenavam os maustratos aos bichos, era geralmente por pensarem que tinham um efeito brutalizante sobre o caráter humano, tornando os homens cruéis entre si (Thomas, 1996, p. 179).

Dois aspectos merecem ser destacados das considerações de Thomas e utilizadas na análise dos comentários feitos pelo médico suíço. Primeiramente, Rengger recorre a uma antiga tese de que a crueldade cometida contra os animais seria um indicativo do grau de violência praticado pela sociedade. O segundo aspecto relacionase com a ideia de que a humanidade no trato dos animais não deve ser compreendida como uma mudança somente em termos de sensibilidade. Ao analisar os discursos produzidos sobre os animais entre os séculos XVI e XIX, o autor defende que estas bases intelectuais eram estimuladas pelas transformações sociais (Thomas, 1996). Ou seja, para ele, “O triunfo da nova atitude esteve estreitamente vinculado ao crescimento das cidades e à emergência de uma ordem industrial em que os animais se tornaram cada vez mais marginais ao processo de produção” (Thomas, 1996, p. 217). Nesse processo de consolidação e readequação das ordens sociais, as relações com os animais não eram iguais dentro da sociedade europeia, existindo inúmeras sensibilidades, o que não passou despercebido pelo autor, que observou como o movimento foi apropriado internamente pela burguesia emergente, ao final do Setecentos, e aplicado na comparação com outros povos. Nesse sentido, segundo Thomas (1996, p. 224), “Não surpreende que a crueldade para com os animais fosse tantas vezes descrita como ‘selvagem’. A piedade, a compaixão e a relutância em infligir dor, fosse em homens ou em bichos, eram identificadas como emoções características dos civilizados”. Portanto, Rengger, ao observar os maus tratos aos animais no Paraguai, não apenas alude à antiga tese da brutalidade humana, como efetua uma distinção entre a América do Sul e o seu continente de origem. Logo, identificamos nas linhas do diário de Rengger a conformação da imagem de uma Europa sensível e preocupada com os animais e de uma América do Sul formada por províncias, nas quais as relações eram marcadas pela brutalidade com os animais, reforçando o pensamento que defendia a ausência de sensibilidade entre os americanos.

À guisa de conclusão

O interesse de Johann Rengger pelo estudo da História Natural, razão de sua viagem ao Paraguai, revelou-se muito mais na dedicação a coleta e análise de espécies naturais do que no estudo detalhado da paisagem. Ainda assim, a leitura do relato de Rengger a partir dessa categoria analítica não apenas evidenciou um ideal de paisagem para o médico suíço, como colocou em relevo suas interpretações acerca das relações que os paraguaios mantinham com seu ambiente, seja por meio de cultivos agrícolas, ornamentais ou com o trato com os animais. Nesse sentido, as descrições das paisagens no relato apresentam-se como um caso profícuo para a análise de um modo de ver, sentir, perceber e descrever do viajante, em que se articulam expressões de sensibilidade e manifestações artísticas, como por exemplo, a estética do pitoresco presente na narrativa de Rengger.

Ainda que essas descrições objetivem o melhor reconhecimento pelos leitores daquilo que foi visto pelos viajantes, elas transparecem em muito o arcabouço cultural e social destes últimos, enfim, suas crenças e valores. Longe de uma indiferença, as avaliações do médico suíço sobre o meio natural do Paraguai e o modo com que seus habitantes interagiam com o ambiente indicam as potencialidades do país a serem exploradas, quer para o avanço da ciência a partir do estudo de sua diversificada fauna e flora, quer para o seu desenvolvimento civilizacional. Os comentários de Rengger tanto sobre a natureza, quanto às precárias técnicas utilizadas pelos paraguaios no trato com o solo é um exemplo de como as recentes repúblicas americanas foram sendo descritas pelos europeus e inseridas em um discurso que legitimava sua presença na região.

Organizadas no relato estas expressões artísticas e sensíveis, suscitadas pela experiência da viagem e seu contato com o novo, informam sobre o desconhecido para um público variado, em sua maioria europeu composto desde homens de ciências até leitores interessados pelo gênero, incidindo sobre as representações já existentes acerca da América platina. Registradas, editadas e publicadas, as memórias de viagem suplantam o esquecimento, informam, produzem conhecimento e entretêm, quando não raro, instigando os seus leitores a tornarem-se novos viajantes.

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1 José Gaspar Rodríguez de Francia (1766-1840), natural de Assunção, obteve o grau de doutor em Direito Civil e Canônico pela Universidade de Córdoba. Em seu retorno ao Paraguai, exerceu advocacia e ocupou cargos na administração colonial. Envolvido no processo de independência em 1811, atuou como membro da Junta Superior Governativa, após como Cônsul e por fim como Ditador até 1840. A respeito do governo de Francia ver os trabalhos de Cardozo (1988) e Areces (2010; 2011).

2Como resultados de um deslocamento realizado, as narrativas de viagens conferem à visão, como uma percepção não mediada, a importância de ser o principal sentido para a obtenção de um conhecimento seguro. Os demais sentidos -audição, palato, tato e o olfato- foram em muitas ocasiões subvalorizados pelos viajantes, ainda que sempre presentes em seus relatos, à disposição da escrita para informar sobre a realidade observada. Fora do âmbito das narrativas de viagens, o que se percebe é que, nem sempre, a visão suplantou os demais sentidos, como observa Lucien Febvre (1950, p. 14-15), “[...] os sentidos menos intelectuais, o tato, o olfato e audição, eram no século XVI os sentidos mais importantes”. Para o autor, a música, a prédica e as leituras coletivas eram exemplos da destacada importância da audição na sociedade Quinhentista. Nesse sentido, e, retornando às narrativas de viagens, Laura de Mello e Souza (1986) destaca que a importância do ouvir no imaginário do início da colonização da América Portuguesa foi tão importante que “[...] os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer; tudo quanto se via era filtrado pelos relatos de viagens fantásticas, de terras longínquas, de homens monstruosos que habitavam os confins do mundo conhecido” (Souza, 1986, p. 21-22).

3Aqui podemos refletir acerca da mudança entre os relatos de naturalistas-viajantes da segunda metade do século XVIII, pautados pelo ideal classificatório lineano da flora e da fauna, e as narrativas da primeira metade do Oitocentos, influenciados pelo estilo narrativo científico e estético presente nas obras de Alexander von Humboldt (1769-1859). Os escritos do naturalista prussiano promoveram uma significativa mudança no estilo narrativo dos relatos de viagens, dando novo vigor à publicação e difusão de tais obras. Sua aversão aos relatos puramente narrativos da viagem resultou na combinação de um estilo que aliava o estético ao detalhe científico, cujo objetivo seria “[...] reproduzir no leitor ‘esse prazer que a mente sensível recebe da contemplação imediata da natureza’” (Pratt, 1991, p. 155).

4O entendimento do relato de viagem enquanto uma tradução da alteridade e de seu espaço é explicado por Michel de Certeau (2011). Para o autor, a escrita da narrativa é marcada por ausências e diferenças que se evidenciam no encontro cultural entre aquele que viaja e o que passa a ser pesquisado e observado. Será, portanto, a partir da falta de características e costumes estimados pela cultura do observador que este organizará a sua narrativa, em que, “[...] a diferença é, ao mesmo tempo, o princípio gerador e o objeto em que acreditar” (Certeau, 2011, p. 236). É com base no corte entre as culturas, que o viajante, como detentor do poder da escrita sobre o outro, realiza um constante jogo de ida e de retorno do outro para o mesmo. Uma economia da tradução que visa reduzir o outro ao mesmo no intuito de formar um discurso compreensível sobre uma cultura e um ambiente distinto do qual o relato será destinado (Certeau, 2011). Nesse sentido, a importância das sensibilidades na economia da tradução devese justamente por serem “[...] formas pelas quais os indivíduos e os grupos se dão a perceber, a si e ao mundo. A sensibilidade é, pois, a capacidade humana, que fundamenta a apreensão do real; é uma habilitação sensorial que marca a capacidade se ser afetada pelo mundo ou de reagir a estímulos físicos ou psíquicos por meio das sensações” Pesavento (2001, p. 224).

5Conforme as próprias palavras da autora: “Porque, se a descrição poética, romanesca, geralmente vem por primeiro na ordem dos fatos, a imagem pintada ou o desenho especializado vêm, ambos, por primeiro na ordem da afirmação de uma realidade. Passamos, sem nos dar conta, de uma para outra para chegar a estabelecer uma existência até então ignorada. Por um efeito de retorno, quase uma anamorfose, a imagem, então, parece tomar a dianteira: é o relato que parece seguir a representação pictórica...” (Cauquelin, 2007, p. 94).

6Com relação à dimensão social da paisagem, Anne Cauquelin (2007, p. 94) adverte para o fato de que “Parece que só se pode ‘ver’ aquilo que já foi visto, isto é, contado, desenhado, pintado, realçado”, o que, portanto, a leva a concluir “[...] que o território é um ‘palimpsesto’, continuamente escrito e redesenhado”.

7Nesta passagem, Rengger referese à cordilheira do Jura, que se situa ao norte da Suíça, além de se estender por partes da França e da Alemanha, atingindo os 1720 metros de altitude. O viajante refere ainda, a região histórica da Suábia, na Alemanha, próxima da fronteira com a Suíça, cujo nome deriva do ducado homônimo estabelecido entre os anos de 915 e 1313. Atualmente, a região situase entre os estados da Baviera e de Baden-Württemberg.

8Os principais estudiosos que se dedicaram a refletir teoricamente as categorias estéticas do sublime, do belo e do pitoresco foram o irlandês Edmund Burke e o prussiano Immanuel Kant. Dentre as divergências dos autores, destaca-se o entendimento de Burke de que a apreciação do sublime -juntamente com a categoria do belo- seriam faculdades universais e inatas dos homens, o que não eliminaria as variações resultantes de uma maior sensibilidade ou de uma observação mais apurada, como destaca Márcia Naxara (2004). Já para Kant, ainda segundo a autora, as sensações não partiam somente da natureza do observado, mas deviam estar presentes igualmente no observador, ou seja, estes deviam possuir um “sentimento do sublime” e um “sentimento do belo” para que pudessem sentir as impressões (Naxara, 2004, p. 71).

9O governo de Francia procurou desenvolver a agricultura no Paraguai realizando a distribuição de utensílios e animais aos camponeses, mas, especialmente, a redistribuição de terras por meio de arrendamento. Para tanto, Francia valeuse da política de incorporação de terras ao Estado dos proprietários que não apresentassem os títulos de suas propriedades (Galeano, 2011).

Recebido: 01 de Dezembro de 2017; Aceito: 01 de Março de 2018; : 01 de Julho de 2019

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