1. Mulheres: alternativas, independentes
Desde 2013, venho dedicando atenção aos estudos da atuação feminina no campo da edição, começando pelas escritoras brasileiras, em especial as mineiras (Ribeiro, 2013, 2013a, 2016, 2016a, 2016b, 2016c). A partir desses primeiros estudos, passei a me interessar também pela atuação das mulheres editoras, em específico as que se dedicaram a publicar literatura, num país em que a hegemonia, tanto na criação quanto na edição, cabe aos homens (o que não é “privilégio” brasileiro, como sabemos). Seguindo por esta tortuosa senda, foi possível verificar a quase ausência de narrativas sobre mulheres em posição de comando, fundação ou direção como editoras profissionais de literatura. E mesmo as poucas que passaram a atuar como editoras, no sentido mais comumente atribuído a prestigiosos homens, carecem de que contemos melhor suas histórias, colocando-as no devido lugar da historiografia recente da edição brasileira.
Nos últimos três ou quatro anos1, dediquei-me a procurar e estudar as trajetórias de mulheres no campo da edição, em especial quando fundaram e dirigiram (ou dirigem) casas editoriais que constituíram catálogos relevantes, eventualmente nem sempre muito numerosos (Ribeiro, 2019, 2019a; Ribeiro; Karam, 2019). E dado que essas personagens são, infelizmente, incomuns, é possível recuperar a história de suas vidas, de suas empresas e mesmo seus catálogos, o que deve servir de insumo para uma história mais completa da edição e dos livros no Brasil e, por extensão, na América Latina, pelo menos dos anos 1980 em diante, período que tomo por já bastante considerável, num país que tem a impressão autorizada desde apenas a primeira década do século XIX e a ampliação e relativa consolidação de seu cenário editorial apenas no século XX.
As primeiras considerações que desejo tecer aqui dizem respeito: (a) à época comum em que essas mulheres surgem como dirigentes de casas editoriais no Brasil; (b) às linhas editoriais que essas personagens propõem e executam; (c) à quase impossibilidade de que essas editoras, geralmente imbuídas de coragem, paixão e vontade de aprender, sejam outra coisa que não “independentes” ou “alternativas”, conforme uma nomenclatura que se difunde com sentido mais específico, nos estudos da produção editorial, de uns anos para cá2.
1.1. Feminismos
A primeira metade do século XX, no Brasil, viu nascerem algumas editoras e, com elas, livros de autores que se consagraram, como é o caso de Monteiro Lobato, em sua múltipla atuação, incluindo a de escritor e editor; ou de José Olympio, prestigioso editor a quem se atribui a publicação de muitos de nossos mais importantes escritores. Nas cinco primeiras décadas do século passado, as mulheres aparecem em nossa historiografia como autoras de livros, embora em muito menor número que seus pares masculinos. Não aparecem como editoras em casas editoriais, exceto pela rapidíssima menção a Maria José Dupré, nos anos 1940, como o quarto membro diretor da editora Brasiliense, juntamente com Monteiro Lobato e outros (Hallewell, 2005, p. 369).
Já na segunda metade do século XX, em especial após os anos 1970, algumas mulheres passam a tomar o espaço da edição, no comando de casas que elas mesmas idealizaram, criaram e executaram, publicando um catálogo de fortes cores ideológicas, conforme o caso. Surgem algumas empreendedoras nos anos 1980, outras tantas nos 1990 e, na década seguinte, elas passam a ser incontáveis e incontornáveis.
Essa escalada das mulheres como emissoras no campo da edição, menos interrompida e mais visível já quase na virada do milênio, talvez coincida com as consequências da quarta onda do feminismo, conforme propunha Constância Lima Duarte (2003), ou até mesmo com uma quinta onda. No texto citado, Duarte traça uma história do feminismo brasileiro, começando pela luta pela alfabetização e pela escolarização, ao longo do século XIX; as lutas sufragistas e pela ampliação da escolarização, já no fim do século XIX e início do XX; uma terceira onda preocupada com a cidadania das mulheres, no século XX; e a revolução ligada à sexualidade, já dos anos 1960 em diante. Entre cada onda dessas, um intervalo de aproximadamente cinquenta anos era o suficiente para que uma renovação das reivindicações se processasse. Por essa conta, podemos agora estar sobre uma quinta onda, em que novas demandas se evidenciam e os ânimos novamente se acendem.
É exatamente no momento posterior à quarta onda proposta por Duarte (2003) que se localiza o que vamos, atrevidamente, chamar de boom de mulheres editoras no Brasil.
É justamente entre os anos 1970 e 1990 que surgem casas ou simplesmente iniciativas editoriais fundadas e dirigidas por mulheres, de linha editorial geralmente muito clara, em vários casos ligadas à edição de livros de e para mulheres, em resposta à noção mais consciente de que para elas era mais difícil escrever e publicar, num cenário editorial hegemonicamente masculino. Uma resposta que só foi possível propor quando as mulheres puderam efetivamente atuar como editoras, curadoras e críticas, alcançando a arena da produção literária, se não de igual para igual, ao menos causando algum incômodo. Sem dúvida, essa possibilidade de participação no debate público desde a posição de editoras foi também suportada pela chegada de tecnologias que iam facilitando os processos editoriais, tornando-os mais acessíveis, ágeis e competitivos.
Não considero aqui as editoras de jornais e outros tipos de periódicos. Estas já existiam desde o século XIX, de norte a sul do Brasil, e usaram especialmente jornais para se fazer ouvir. Muitos casos desse tipo foram escavados e narrados por Duarte (2011; 2016), que vem se dedicando à história de personagens femininas invisibilizadas por nossa história literária oficial ou as que “desapareceram excluídas do cânone por uma historiografia e uma crítica de perspectiva masculina, que sistematicamente eliminou as mulheres do cenário das letras” (Duarte, 2011). As editoras de livros continuam, pois, à sombra.
A despeito do atraso histórico/cronológico do Brasil em relação à produção editorial, por exemplo, se comparado à história da imprensa em países latino-americanos, as ondas feministas e a emergência de mulheres como escritoras e, especialmente, como editoras não andou em ritmo muito diferente nas colônias e nas metrópoles. Tanto aqui quanto na Espanha, por exemplo, pesquisadoras dedicadas à história editorial apontam a dificuldade de encontrar personagens femininas no comando de iniciativas ligadas ao livro antes da segunda metade do século XX, como lembra a professora Pura Fernández, ao citar um trecho de um livro da editora Esther Tusquets (Fernández, 2019)3.
“A Lumen foi uma empresa de mulheres”, assegurava Esther Tusquets em Confesiones de una editora poco mentirosa (2012), frente à realidade sociocultural do momento:
Não existiam nos anos sessenta, nem creio que existam hoje, muitas empresas editoriais regidas por mulheres. Há, isso sim, muitíssimas mulheres trabalhando nelas, ocupando inclusive cargos de destaque, mas não na cúpula, onde se tomam as decisões realmente importantes. As decisões realmente importantes são em nosso mundo as que concernem ao dinheiro, e é aí que residem nossas reivindicações. Não se tratava nem remotamente de uns cinquenta por cento, eram apenas uns vinte-estou falando dos anos oitenta, e duvido que a situação tenha mudado muito mas ainda assim superava as outras (Tusquets, 2012 p. 213-214 apud Fernández, 2019, p. 16).
Ao que parece, o machismo estrutural atravessa fronteiras e oceanos inteiros, tempo afora. E parece justo que façamos, como aponta a pesquisadora argentina Daniela Szpilbarg (2018), uma história da edição feminista, mas, concomitantemente, uma história feminista da edição, vez que a perspectiva tanto das pesquisadoras atuais quanto das próprias editoras objeto de registro e análise busca uma perspectiva de gênero diversa daquela à qual estamos acostumadas, isto é, a masculina. Em vários casos, como o de Tânia Diniz aqui focalizado, nascem como edição feminista no sentido de que procuram dar voz e espaço às escritoras, de forma deliberada e política. Este é um dos regimes possíveis de publicação para elas (escritoras e editoras).
1.2. Fim do século XX
No Brasil, em especial fora do eixo Rio-São Paulo, surgem, após os anos 1980, iniciativas determinadas e contundentes, como é o caso da Mazza Edições, em Belo Horizonte, em 1981. O objetivo da editora Maria Mazzarello Rodrigues era e é publicar autores e autoras negros, o que vem fazendo até os dias de hoje. Na mesma linha, com livros sobre culturas negras e a diáspora africana, nasce em Salvador a editora Corrupio, em 1979, tendo como editora Arlete Soares. Em Florianópolis, Santa Catarina, um grupo de professoras liderado por Zahidé Muzart funda a editora Mulheres, com a finalidade de publicar estudos feministas nacionais e estrangeiros, além de trazer à tona, novamente, as escritoras esquecidas de outros tempos. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, quase no mesmo ano, a editora Rose Marie Muraro, no centro do debate político, funda a Rosa dos Tempos, também uma casa de caráter feminista, ligada a um dos maiores grupos editoriais do país, o Record, o que dá à sua editora um caráter um pouco diferente das outras iniciativas. Além delas, podem ser citadas algumas outras, como Rejane Dias (Belo Horizonte), Anette Baldi (Porto Alegre) ou Ivana Jinkings (São Paulo).
Além de terem suas existências seladas do final dos anos 1970 até os anos 1990, essas casas editoriais fundadas por mulheres, que hoje podem ser consideradas pioneiras no Brasil, têm geralmente objetivos estético-políticos muito bem delineados. São emblemáticos os casos da Mazza e da Corrupio, que nascem para responder à inexistência ou invisibilidade de obras escritas por negros/as ou sobre eles/elas. E ao darem essa resposta, inserem-se na ágora pública, com o alcance que conseguem ter, mesmo sendo empresas de pequeníssimo porte. Também é digno de nota o caso de Ivana Jinkings e sua Boitempo Editorial, nascida com o objetivo de publicar livros de esquerda no país, no que é muito bem sucedida; ou os casos da Mulheres, de Zahidé Muzart, já extinta e da Rosa dos Tempos, de Rose Marie Muraro, reativada em 2017 pela Record, mas sem o mesmo ânimo de quando sua fundadora ainda estava viva. Neste artigo, quero trazer também à cena o trabalho de Tânia Diniz, escritora e editora, responsável pela fundação e pela execução, desde 1989, do mural poético Mulheres Emergentes. O periódico, que existe até hoje, apresenta peculiaridades quanto ao seu objetivo de publicar escritoras, ao seu formato, à sua estratégia de distribuição, à abordagem recorrente do erotismo (em vozes femininas) e à eventual extensão como editora de livros, sob o selo Mulheres Emergentes.
1.3. Alternativas
Diante do cenário exposto, ainda que vagamente, é possível compreender que para as mulheres a “independência” foi sempre uma condição genuína, mesmo obrigatória. Embora, nos tempos que correm, os sentidos dessa “independência” venham sendo discutidos com fervor, parece óbvio que, ao existir sempre por fora dos espaços hegemônicos (inclusive sendo ignoradas por quem neles está), as mulheres só puderam editar, de fato, à margem dos grandes grupos, fora dos círculos de maior prestígio (em sua maioria esmagadora, ao ponto de parecerem inexistentes), sob a liderança de outra mulher, muitas vezes atuando sozinha ou dentro de um coletivo com outras mulheres, desenhos empreendedores que até hoje se fundam desta maneira, como é o caso, por exemplo, das Edições Quintal4, em Belo Horizonte, selo publicador de autoras dirigido por Carol Magalhães e Ludmila Fonseca desde 2015, e da recente Edições Carolina5, que, sob a liderança da professora e pesquisadora Regina Dalcastagné (Universidade de Brasília), publica livros virtuais de literatura contemporânea, desde 2017, com especial atenção à periferia e à situação feminina no campo. A preocupação maior com a qualidade e a relevância, deixando o lucro em segundo plano, assim como o senso de colaboração que erige e mantém vários desses projetos de editoras mulheres estão muito acordes com os princípios de independência elencados por vários estudiosos, a começar por Gilles Colleu (2008)6, reafirmado, por exemplo, por Thompson (2013), quando este trata da “economia de favores”, em seu livro dedicado à edição em escala maior.
As editoras fundadas por essas mulheres pioneiras, já passados 30 ou quase 40 anos, podem ter alcançado posições de destaque, com catálogo robusto, respeitado e certa visibilidade, como é o caso da Boitempo Editorial (desde São Paulo, o que não é um elemento desprezível de sua história) e da Autêntica (de Belo Horizonte, com catálogo mais eclético); ou podem ter chegado, por razões político-econômicas e mesmo por influência de mudanças legais e educacionais, a uma situação menos precária e bastante profissionalizada, caso da Mazza, em Belo Horizonte; ou podem ter sido extintas, em especial após o falecimento de suas idealizadoras, caso da Mulheres, de Florianópolis, que publicou mais de cem títulos relevantes ao longo de 15 anos de atuação. De qualquer maneira, essas mulheres certamente enfrentaram dificuldades, nos níveis simbólico e financeiro, que as editoras mulheres do século XXI talvez sequer imaginem (é comum que nem conheçam suas predecessoras).
2. Mulheres Emergentes: edição nos anos 1980 e acervo atual
“Mulheres Emergentes: o sensual em cartaz” é o nome do periódico de que tratarei aqui. Seu número 0 foi publicado em 19897, em tamanho grande, razão pela qual ele é considerado um “mural” (cartaz ou pôster), sendo este seu formato editorial de escolha. De periodicidade inicialmente trimestral, o ME era colado em paredes e pilares de espaços de trânsito de pessoas, incluindo o saguão de instituições de ensino. Segundo sua idealizadora e editora, a poeta Tânia Diniz:
Ele tem o formato de pôster, então ele é colado em paredes, em todos os lugares possíveis, até um poste, de repente. Eu mandava pro mundo. Eu acho que a gente tem que ir onde o povo está. Todas as possibilidades. Aonde eu ia, eu andava sempre “armada”, sempre o jornal na mão, um livro, aí eu colava na parede, oferecia para a pessoa, às vezes a pessoa já conhecia, queria. Deixei em pontos de venda, muitas livrarias, lojas, por muito tempo. Fiz assinaturas anuais, fiz de tudo. Só que, em dado momento, eu tive um problema de saúde, ficou mais complicado. Então eu cortei tudo isso. Eu mesma é que trabalho: se a pessoa quiser comprar ou quiser qualquer coisa, é comigo mesma (Entrevista à rádio Inconfidência, 2019).
O ME, como é chamado, publica, há mais de trinta anos, a poesia de mulheres do Brasil e do exterior, sob a curadoria da poeta Tânia Diniz (Dores do Indaiá/MG, 1945)8, sua editora e mantenedora há décadas9. Há espaço para homens, mas a prioridade do projeto é a publicação de mulheres e a descoberta de novos talentos, apresentados ao lado de escritoras já consagradas.
Do ponto de vista de sua idealização e fundação, Tânia Diniz é a única responsável, trabalhando ao lado de colaboradores/as discretos, inclusive quanto aos patrocínios que puseram o mural de pé, nos primeiros anos de existência. O contexto de fundação do ME é assim narrado por Tânia Diniz, em entrevista:
Era um momento de reivindicações femininas muito fortes também, como agora também é, de uma outra forma. Mas então as mulheres reivindicavam todos os direitos... igualdade, não sei quê, respeito, claro, e até o direito ao prazer. E eu já escrevia um pouco ali pelo sensual, meio tímida e tal, mas fui descobrindo um monte de mulheres fazendo a mesma coisa e até muito melhor do que eu. Eu descobri também como poeta a dificuldade de publicar nos jornais, nas revistas, nas editoras, e como mulher, principalmente. Então, de repente, me deu aquela louca e eu cismei: vou fazer o meu espaço, para mulheres, onde elas não vão ter nada além de... tem de ter um valor literário. (...) Eu enfatizo o feminino nas artes e a sensualidade, mas não só. Porque se o trabalho é muito bonito, se diz de um outro momento da vida da gente, uma outra parte, uma situação às vezes que a pessoa nem pensa, isso também entra, desde que seja dito com arte, com beleza (Entrevista a Flávio Henrique Silveira, no programa Bazar Maravilha, na rádio Inconfidência, FM 100,9, 29 março 2019).
Aspectos ligados ao feminismo de fundo, mas propulsor das mulheres escritoras, são evidenciados pela editora, que decide, diante da oferta ampla de poetas sem espaços onde publicar, ou da escassez de espaços possíveis para poetas atuantes, fundar um periódico de circulação ostensiva, isto é, um cartaz de grande dimensão, que estivesse à altura dos olhos de quem transitasse por diversos espaços da cidade (do país e do mundo). A completar o desenho de sua linha editorial, Tânia Diniz dava preferência à sensualidade, tema afim com as reivindicações femininas e feministas da época.
Para manter esse projeto vivo, a editora e poeta obteve patrocínio por vários anos, item perdido com a morte do patrocinador. Ela mesma então passou a buscar financiamentos, o que incluiu um edital da lei de incentivo à cultura, pelo qual foi contemplada apenas uma vez. Tânia Diniz declara sua dificuldade pessoal em movimentar esse tipo aparato a fim de obter fundos para o ME, algo que diz só ter conseguido com a ajuda de um amigo. Em decorrência desse tipo de dificuldade, o ME teve de deixar de ser regularmente trimestral, o que ainda se agravou após Tânia obter um diagnóstico de câncer, contra o qual luta até os dias atuais. Mesmo atravessando problemas de saúde, a poeta e editora tratou de resolver as questões de periodicidade do ME com a publicação de números que valessem por um ano ou por seis meses, conforme o caso, não deixando de publicá-lo.
O mural Mulheres Emergentes, ao longo de suas três décadas, alcançou alguns países e teve repercussão noutras línguas, com resenhas e estudos sobre a poesia ali publicada. Do projeto original, derivaram outros, como prêmios literários e livros, publicados pela ME Edições Alternativas. Segundo o blog Mulheres Emergentes, são cerca de 26 títulos, parte deles da própria Tânia Diniz, outra parte antologias (como as comemorativas dos 18 anos do periódico) e resultados de prêmios organizados pelo ME10. Segundo Tânia Diniz, tal repercussão era surpreendente e inesperada, mas muito bem-vinda11. Interessante notar que tal repercussão diz respeito principalmente à circulação dos livros, suporte menos perecível e mais portátil do que os murais ME. A combinação de produtos editoriais resulta produtiva, nesse sentido.
Conforme apontado por Colleu (2008) e por diversos/as editores/as em Cuiñas e Martínez (2017), a edição independente não combina com a aridez do preconceito. Ao falar sobre seus critérios de publicação no ME, Tânia declara:
A coisa se equilibra. Eu recebo muito, sempre recebi, mas eu também vou garimpar porque eu gosto de descobrir autoras novas, especialmente. Eu já publiquei pessoas que escreveram um poema, mas tão lindo que está ali. Mas depois ela me disse que nunca mais fez nada. Eu garimpo autores novos, não só mulheres, claro, mas especialmente. E coloco junto daqueles já conhecidos. E não importa: vivo, morto, atual, nacional, estrangeiro, todos. O que importa é a beleza do trabalho. (Entrevista a Flávio Henrique Silveira, no programa Bazar Maravilha, na rádio Inconfidência, FM 100,9, 29 março 2019).
Enquanto se equilibram o garimpo e a abertura ao novo e ao risco, o ME, dirigido e executado por Tânia Diniz, sobreviveu a muitas intempéries, sendo alentado pelo objetivo de sua editora, qual seja: o de abrir espaço para a diversidade, em especial para as escritoras e para o texto sensual, àquela altura.
Conforme a própria editora confessa, há estreita relação entre o projeto ME e a vida dela mesma (“Ela vai falar sobre o jornal e um pouquinho sobre mim, porque as coisas se misturam, né?”12), o que a narrativa sobre o jornal denota, o tempo todo. Numa perspectiva histórica, não é de se desprezar que uma iniciativa editorial como o Mulheres Emergentes, cujos tentáculos se expandiram como jornal, mas como editora, prêmios e eventos, tenha alcançado as três décadas de existência e, sem dúvida, resistência. A apuração da própria Tânia Diniz é positiva, em relação a isso, quando ela, em entrevista à rádio Inconfidência, declara sobre o ME: “Ele já se tornou histórico, sempre foi considerado pioneiro, então é uma alegria para mim poder festejar”. Alegria que se espraia para todas e todos as/os alcançados pela iniciativa, ao longo dos anos.
Do ponto de vista de sua sobrevivência tecnológica, o ME continua sendo um jornal mural, produzido para ser afixado em espaços de trânsito de pessoas. Paralelamente, há vários anos é encontrável em um sítio eletrônico (http://www.mulheresemergentes.com/), cujas funcionalidades permitem não apenas a comunicação da editora por meio de um blog, mas também abas com a história do ME, além de todas as suas edições para download. Trata-se, pois, de uma espécie de acervo digital importante para a visibilidade e o acesso ao projeto.
3. Considerações finais
Ao longo de obras como a de Gilles Colleu (2008) ou de Cuiñas e Martínez (2017), os adjetivos “independente” e “alternativo” são às vezes intercambiáveis. De fato, as editoras de que tratamos aqui desejam, na maioria dos casos, ser uma alternativa aos grandes grupos. Alternativas para autoras e autores que desejam publicar, mas que ficam no filtro estreito e misterioso das casas maiores, que são, afinal, poucas e cada vez mais oligopolizadas. Alternativas também para seus próprios idealizadores e idealizadoras, que as fundam justamente a fim de abrir caminhos, para si e para outras/os. Segundo Cuiñas e Martínez (2017, p. 13-14), “as editoras independentes são um canal indispensável para a defesa dos interesses de certos setores minoritários e para a construção de novos espaços políticos, culturais e de pensamento em nossa comunidade”13, algo de que Tânia Diniz, três décadas atrás, tinha forte noção. E não apenas ela, mas a maioria, senão todas as, das idealizadoras e executoras de projetos editoriais como este e como outros, com diferentes níveis de ousadia e esforço. Para Cuiñas e Martínez (2017, p. 14), “editar de forma independente significa reapropriar-se da leitura como criadora de significados para que o livro seja não só um objeto comercial, mas também fundamentalmente um bem cultural”, mirando portanto menos no dinheiro, no lucro e na “best-sellerização”. Assim como fez e faz Tânia Diniz, atrás de eventuais patrocínios, esforçando-se pessoalmente e mesmo eliminando o maior número possível de agentes intermediários:
Estas editoras independentes compartilham um modelo de trabalho a pulmón no setor, isto é: com recursos escassos, na base da autogestão (na distribuição e na promoção dos livros), na contracorrente da globalização e apesar das estratégias de concentração dos grupos mais potentes (Cuiñas; Martínez, 2017, p. 15).
Segundo as autoras espanholas, “na origem de toda editora independente há sempre um leitor insatisfeito” (p. 26), o que, no caso do Mulheres Emergentes e suas derivações, que incluem a edição de livros, também pode ser entendido como a insatisfação de uma escritora, que, como muitíssimas, não encontrava espaços onde desaguar seus textos. Essa é, aliás, a história de muitos editores independentes, em especial de muitas mulheres que passam a editar a si mesmas e a outras. A escritora e editora goiana Larissa Mundim, dona do selo independente NegaLilu, na região central do Brasil, assim respondeu à questão sobre a origem de sua casa editorial, quando interpelada em um evento literário em Belo Horizonte14: “A gente começa se autoeditando e depois edita os outros”, trajetória comum a muitas de suas antecessoras e, provavelmente, de colegas que agora nascem como agentes da edição.
As questões de gênero são ponto muito especial para o trabalho de escavação, narrativa e análise dos casos de casas editoriais brasileiras. Cuiña e Martínez estão atentas à questão em seu país, em especial quanto às editoras alternativas, assim como estamos no Brasil. Mais do que isso, estamos atentas às questões geográficas e a uma invisibilização que passa por outros elementos, para além do gênero.
(...) É necessário deter-se no trabalho desempenhado pelas mulheres em um âmbito, o do livro, em que abundam por tradição, chegando a ocupar altos cargos executivos. Como no resto do país, o número de editoras donas de seu próprio selo continua sendo, sem dúvida, inferior ao de homens. É mais necessária do que nunca, por isso, a revisão do verdadeiro papel que elas têm exercido profissionalmente dentro de algumas de nossas maiores editoras, muitas vezes na sombra (Cuiña; Martínez, 2017, p. 19).
Os casos que as autoras abordam dizem respeito às casas independentes andaluzas, isto é, na Espanha fora do eixão Madri-Barcelona, situação semelhante, nesse sentido, ao olhar que podemos ter por aqui, em relação ao desenvolvimento de iniciativas editoriais importantes e relevantes, a despeito de estarem fora (e talvez por isso mesmo, aliás) do eixo Rio-São Paulo. Talvez seja menos difícil tirar da sombra as mulheres editoras que atuam a alguma distância dos espaços de mais opressão e hegemonia tradicionalmente masculina. Enfim, são mais questões a provocar investigações.