SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número121Design para o bem-estar: desafios enfrentados ao projetar para o estímulo a forças de caráterDesign cidadão: abordagenspara a vivência urbana índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación. Ensayos

versão On-line ISSN 1853-3523

Cuad. Cent. Estud. Diseñ. Comun., Ensayos  no.121 Ciudad Autónoma de Buenos Aires ago. 2023  Epub 23-Ago-2023

 

Articulo

Flores do Morro: inovação social por meio do design e da dança

Glaucinei Rodrigues Corrêa1 

Anamaria Fernandes Viana2 

1 Doutor. Escola de Arquitetura - Universidade Federal de Minas Gerais.

2 Doutora. Escola de Belas Artes - Universidade Federal de Minas Gerais.

Resumo

Neste artigo o objetivo foi discutir a inovação social com base nas atividades do projeto de extensão “Flores do Morro: design, dança e arquitetura para o bem-estar so-cial”, da Universidade Federal de Minas Gerais com o Flores do Morro, grupo de mulheres da comunidade do Morro das Pedras - zona oeste de Belo Horizonte/MG, uma região de vulnerabilidade social e com baixo Índice de Desenvolvimento Humano. A proposta, nesse projeto, foi desenvolver com essas mulheres atividades para que pudessem enrique-cer seus trabalhos artesanais, por meio da criatividade, da improvisação e da ludicidade. Os procedimentos metodológicos adotados no projeto valorizaram a relação construída entre os envolvidos no processo, bem como o reconhecimento dos saberes e das potencia-lidades de cada participante. Como principais resultados, pode-se destacar a melhora da autoestima das participantes, a interação dialógica entre a Universidade e a comunidade e, principalmente, o fortalecimento da identidade do grupo. Percebeu-se o impacto social das ações do projeto, tanto em relação ao grupo e à comunidade, quanto às estudantes envolvidas, que tiveram a oportunidade de colocar em prática os conhecimentos adqui-ridos na Universidade e puderam ter acesso a outros tipos de saberes e outras realidades, vivenciando na prática as potencialidades desse tipo de ação.

Palavras chave: design; dança; inovação social.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la innovación social a partir de las ac-tividades del Proyecto de Extensión Flores do Morro: diseño, danza y arquitectura para el bienestar social, de la Universidad Federal de Minas Gerais con Flores do Morro, grupo de mujeres de la comunidad del Morro das Pedras - zona oeste de Belo Horizonte / MG, una región de vulnerabilidad social y con bajo Índice de Desarrollo Humano. El proyecto tuvo como propuesta desarrollar actividades para enriquecer los trabajos artesanales de este grupo de mujeres, por medio de la creatividad, la improvisación y lo lúdico. Los procedi-mientos metodológicos adoptados en el proyecto valoraron la relación construida entre los involucrados en el proceso, así como el reconocimiento de los saberes y de las potencia-lidades de cada participante. Como principales resultados, se puede destacar mejoras en la autoestima de las participantes mujeres, la interacción dialógica entre la Universidad y la comunidad y, principalmente, el fortalecimiento de la identidad del grupo. Se percibió el impacto social de las acciones del proyecto, tanto en relación con el grupo y la comunidad, como con los estudiantes involucrados, que tuvieron la oportunidad de poner en práctica los conocimientos adquiridos en la universidad y pudieron acceder a otros tipos de saberes y realidades, viviendo en la práctica las potencialidades de este tipo de acción.

Palabras clave: diseño; danza; innovación social.

Abstract

This article aims to discuss social innovation from the activities of the Flores do Morro Extension Project: design, dance and architecture for social welfare, from the Fed-eral University of Minas Gerais with Flores do Morro, a community group of women of Morro das Pedras - western zone of Belo Horizonte / MG, a region of social vulnerability and with low Human Development Index. The project had as a proposal to develop with these women activities so they could enrich their crafts, through creativity, improvisa-tion and playfulness. The methodological procedures adopted in the project value the relationship built between those involved in the process, as well as the recognition of the knowledge and potential of each participant. As main results, it is possible to highlight the improvement of the self-esteem of the female participants, the dialogical interaction between the University and the community and, mainly, the strengthening of the identity of the group. The social impact of the project’s actions was perceived, both in relation to the group and the community, as well as in relation to the students involved, who had the opportunity to put into practice the knowledge acquired in the university and could have access to other types of knowledge and other realities, experiencing in practice the poten-tialities of this type of action.

Keywords: design; dance; social innovation.

Introdução

O que tem a ver a Dança com o Design? Talvez o leitor se coloque essa questão ao iniciar a leitura deste artigo. E acrescentamos outras, as quais foram também parte dos desafios do projeto aqui apresentado: seria possível desenvolver um trabalho de inovação social com essas duas áreas do conhecimento interligadas? Como encontrar pontos de interferência e convergência entre essas áreas de forma a somar o conhecimento e nutrir as experiências coletivas em prol de um projeto comum?

Essas questões nos motivaram a iniciar uma parceria inovadora para nós professores e também para nossos estudantes envolvidos.

Em relação à inovação social, Langenbach (2008) argumenta que há várias definições e conceitos sobre o tema e que, genericamente, pode ser compreendida como diversos ca-sos à nossa volta, como os mutirões para construção de casas populares, de enfermeiras comunitárias, dentre outros exemplos, os quais já foram inovadores socialmente e, hoje, fazem parte de um padrão estabelecido. Ainda, segundo o autor,

Todos são exemplos de inovações sociais - novas ideias que buscam suprir as necessidades ainda não atendidas, de modo a melhorar a vida das pessoas. [...] Segundo essa concepção, as experiências inovadoras surgem às margens da so-ciedade e buscam um espaço para se fortalecerem, apontando tendências para o futuro (Langenbach, 2008, p. 13).

Corroborando com esse conceito, o Centro para Inovação Social (Centre for Social Inno-vation, https://socialinnovation.org/, recuperado em 7 fevereiro 2018), do Canadá, refere-se à inovação social como criação, desenvolvimento, adoção e integração de novos e reno-vados conceitos, sistemas e práticas que colocam as pessoas e o planeta em primeiro lugar. Nessa mesma direção, Manzini (2008, pp. 61-62) aponta que:

O termo inovação social refere-se a mudanças no modo como indivíduos ou comunidades agem para resolver seus problemas ou criar novas oportunidades. Tais inovações são guiadas mais por mudanças de comportamento do que por mudanças tecnológicas ou de mercado, geralmente emergindo através de pro-cessos organizacionais ‘de baixo para cima’ em vez daqueles ‘de cima para baixo’.

A inovação social pode vir, também, de outros setores. Por ser um fenômeno transversal, ela não depende exclusivamente de determinados grupos ou comunidades, pode estar imbuída nas agendas do governo, no setor privado, no terceiro setor ou nas universidades (Barzola & Mendonza, 2018).

Em relação ao Design, o tema “social” vem sendo debatido há algumas décadas, e nos últimos anos têm se intensificado -pelo menos no meio acadêmico- as discussões acerca do papel social do design.

Sobre essa questão do design social, Moura (2018, p. 51) afirma que:

Em princípio todo design deveria ser social, mas a relação com a produção e o mercado capitalista, de alto consumo e de luxo, separou, o design de seu papel diante da sociedade na busca por melhores condições de vida da população, especialmente os menos favorecidos e, também, os denominados, invisíveis.

Neste artigo tomou-se como referência a abordagem de Design Social feita por Araújo (2017), ou seja, um design que coloca a atenção no humano e não no sistema económico e produtivo vigente. Segundo a autora “o modo de ser, de estar, de agir, de se manifestar das pessoas, assim como os desejos, valores, intenções de pessoas e grupos e as interações humanas, desencadeiam o processo de projeto” (Araújo, 2017, p. 23).

Partindo dessa definição, Corrêa (2018) argumenta que o Design Social pode ser compre-endido como o desenvolvimento de projetos mediante três pressupostos: a) participação das pessoas ou grupo no processo de projeto - ou seja, o projeto não é “feito para” deter-minado grupo, e sim “feito com” as pessoas; b) geralmente destina-se a atender demandas de grupos, questões sociais, e não individuais; e c) o foco está no processo e no atendimen-to às necessidades do grupo.

Ao analisarmos esses pressupostos, sugeriremos duas alterações. A primeira é que deve haver uma combinação entre os interesses pessoais com interesses sociais, conforme ar-gumenta Manzini (2008), ao tratar dos casos promissores de inovação social. Ou seja, é preciso combinar as demandas do grupo com os interesses individuais. A segunda seria acrescentar mais um pressuposto à lista: d) deve haver transformação social com base nas ações do projeto. Como será visto adiante, esses pressupostos foram fundamentais para o trabalho junto ao grupo Flores do Morro.

E a dança? Pode-se falar de uma dança social? Sabe-se que a dança é algo inerente ao ser humano, podendo operar uma função de vín-culo social e de valor indispensável para uma comunidade. Mesmo se a profissionalização dessa arte levou-a a ser concebida sob formas de códigos e regras específicas, grande parte dos indivíduos encontra, ainda hoje, nas danças populares como em outras -nas danças urbanas, danças de salão, nas festas raves, etc.- o prazer da partilha de um espaço comum. Essas dimensões da dança -como forma de conexão com o meio, com o outro, com o coletivo- são essenciais no trabalho de diversos artistas espalhados pelo mundo, sendo a americana Anna Halprin, um dos exemplos mais expressivos dessa abordagem.

Vale a pena ressaltar que não existe uma dança nem uma única maneira de pensar a dança. Cada artista, cada professor tem em mãos essa matéria a ser esculpida, trabalhada. Nossa proposta se funda na “dança-sujeito”, ou seja, uma dança que sublima a singularidade de cada participante. Uma dança que não busca moldar, uniformizar, mas, sim, criar espaços do devir para o ser em construção. Sem conferir à dança o papel de “salvadora dos males do mundo” e, tampouco enquadrá-la numa concepção “utilitária” (Strazzacappa, 2002), fazemos a aposta de uma dança que elogia a particularidade de cada um. Uma dança de-senvolvida por meio do imprevisto, do desconhecido, do não saber e que, ao mesmo tem-po, constrói e produz um espaço comum, um espaço de partilha no qual se criam laços sociais. É essa abordagem que funda nosso pensar e fazer de uma “dança social”.

O início das atividades com o grupo

O Flores do Morro é um grupo de mulheres da comunidade do Aglomerado Morro das Pedras, localizado na zona oeste de Belo Horizonte-MG, uma região de vulnerabilidade social e com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Esse grupo se configura como uma rede de apoio à medida que elas compartilham seus problemas, desafios, experiências e vivências pessoais. As atividades desse grupo iniciaram-se em 2011 e eram mantidas, até 2017, com verba pública municipal repassada ao Caritas Nossa Senhora de Fátima1. No início, nos encontros do grupo no salão da igreja do bairro, eram realizadas oficinas artísticas (desenho, bordado e pintura) com a finalidade de promover a supera-ção das diversas dificuldades enfrentadas por essas pessoas em suas vivências pessoais, conjugais e familiares. A partir de 2018, passaram a ter o apoio somente das Pró-Reitorias de Extensão e Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por meio de pagamento de bolsas para as estudantes do projeto.

Os primeiros contatos da UFMG com o Flores do Morro se deram em dois momentos, ambos em atividades de duas disciplinas - uma do curso de graduação em Design e outra do curso de graduação/licenciatura em Dança, ambos no segundo semestre de 2017.

Na disciplina do curso de Design os objetivos foram: estudar o Design Social e suas impli-cações, definir o papel do designer e sua responsabilidade na sociedade e promover o uso do processo de design para contribuir para o bem-estar social.

O Flores do Morro foi um dos grupos com o qual os alunos da disciplina entraram em contato, conheceram, entenderam as demandas, os desejos e as dificuldades e desenvolve-ram (com o grupo) algumas propostas de projetos com o objetivo de melhorar os produ-tos que estavam desenvolvendo naquela época. Ao todo, foram três propostas de projeto para o Flores do Morro, e uma delas merece destaque porque foi com base nela que se deu início ao projeto de extensão aqui apresentado.

No referido projeto, propunha-se fazer o estudo de aplicação da marca2 do grupo e o de-senvolvimento de um manual de técnicas. O estudo para a aplicação da marca foi constru-ído de forma colaborativa com as integrantes do Flores do Morro, com base no estudo das cores, conceitos e referências utilizadas pelo grupo. O manual de técnicas foi desenvolvido para reunir tanto técnicas já aplicadas no Flores do Morro (bordado e pintura) quanto no-vas técnicas de artesanato (estêncil, carimbo e papel machê). Esse manual foi importante porque permitiu a qualquer voluntário colaborar com o grupo, que, até aquele momento, dependia de uma pessoa que dominasse as técnicas para repassá-las ao grupo.

Em relação à disciplina “Poéticas do Tempo: dança e longevidade do curso de Dança”, o contato se deu por meio de alguns encontros, nos quais os estudantes tiveram a oportu-nidade de ministrar oficinas envolvendo movimento e voz (canto) com as mulheres do grupo. Dentre os objetivos dessa disciplina estava a potencialização e a estimulação da criatividade singular própria a cada indivíduo. Essa experiência foi muito apreciada por todos, o que motivou o início da parceria com o curso de Design no semestre seguinte.

Dos contatos iniciais dessas disciplinas nasceu o projeto de extensão “Flores do Morro: design, dança e arquitetura para o bem-estar social”, cuja proposta é desenvolver com essas mulheres atividades que possam enriquecer seus trabalhos artesanais, suas poten-cialidades de expressão criativa e a consciência corporal de cada participante, por meio de propostas envolvendo trabalhos corporais, jogos de improvisação e de ludicidade. Para além de ampliar o repertório artístico e técnico das participantes, o desafio no projeto é desenvolver a autoestima, bem como fortalecer a identidade do grupo.

O projeto conta com dois professores coordenadores -um do curso de graduação em De-sign e outro do curso de graduação/licenciatura em Dança- e quatro estudantes, sendo uma bolsista do curso de Arquitetura e três voluntárias -uma do curso de Design e duas do curso de Dança. O projeto teve início no primeiro semestre de 2018 com continuidade em 2019.

Fundamentação teórica

Dentre os autores que nortearam nosso trabalho se encontram, principalmente, Lave (1991), antropóloga social americana; Freire (1996), educador, pedagogo e filósofo brasi-leiro; Rancière (1987, 2000), filósofo francês; e Ingold (2012), antropólogo britânico.

O conceito da Aprendizagem Situada, de Lave e Wenger (1991) ajuda a entender melhor as relações sociais no cotidiano e a compreender os processos de aprendizagem, princi-palmente por possibilitar um olhar de estranhamento para as práticas cotidianas, às quais estamos habituados a não perceber a aprendizagem, por isso, na maioria dos casos, a tratá-la como inexistente.

Para Lave e Wenger (1991), a aprendizagem é parte da prática social e trata-se de um processo não explícito, um dos motivos que levam à ideia do dom, porque, geralmente, as atividades do dia a dia não são percebidas. A autora descreve a estrutura de organização da prática social cotidiana, que permite às pessoas se engajarem na prática e, nesse processo, como elas aprendem.

Para a autora, não há atividade que não seja situada:

Isso significa uma ênfase na compreensão abrangente que envolve a pessoa inteira, em atividade no e com o mundo; e ver que agente, atividade e mundo se constituem mutuamente, em vez de ver a pessoa como um corpo ‘receptor’ de conhecimento factual sobre o mundo (Lave & Wenger, 1991, p. 33, tradução nossa).

Para a autora, os aspectos individuais do enfoque característico de muitas teorias de aprendizagem parecem concentrar-se somente na pessoa. A Aprendizagem Situada con-centra-se na estrutura da prática social, na participação. O foco da Aprendizagem Situada está na relação. Ou seja, esse enfoque promove uma visão de conhecimento das atividades de pessoas específicas em circunstâncias peculiares, e a pessoa é definida conforme se de-finem essas relações.

Para Lave e Wenger (1991), sempre quando se pensa na aprendizagem, a primeira coisa que se cogita é a relação mestre-aprendiz ou professor-aluno. Mas, na prática, os papéis são surpreendentemente variáveis no tempo e no espaço, e a relação mestre-aprendiz não é uma característica definidora da aprendizagem. Nos casos em que ela estudou, há niti-damente essa variação; em alguns, não há sequer essa relação e, em outros, essa relação (mestre-aprendiz) é que define o “acesso legítimo” dos aprendizes na participação das atividades produtivas.

Como esse conceito de Aprendizagem Situada ajuda nesse projeto de extensão? Por meio da aprendizagem, e não do ensino, é que haverá possibilidades de promover “a interação transformadora entre Universidade e outros setores da sociedade”, bem como estabelecer a “troca de saberes entre as pessoas”3.

Por outro lado, Freire (1996) e Rancière (1987, 2000), na mesma sintonia, ensinam a des-construir estereótipos, a se desfazer de um suposto saber, ajudam a pensar e repensar nosso fazer, a alimentar a curiosidade pelo outro, a lutar contra as relações de poder e construir novos processos de transmissão. São posturas políticas e, mais do que nunca, extremamente relevantes. Esse posicionamento, que demanda uma autocrítica constante, é uma forma de estar no mundo e, sobretudo, de fazer sociedade. Como seres “fazedores da história e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção”, somos também seres condicionados. Mas, ainda assim podemos “ultrapassar nosso próprio condicionamento” (Freire, 1996, p. 80).

Poderíamos, como professores, conduzir nossos estudantes a um fazer formatado, na ex-pectativa de resultados certos, previsíveis, visíveis, sem dar a eles e ao grupo espaços de questionamentos, de hesitações, de erros, de desconstruções. Nesse mesmo sentido, pode-ríamos também instituir verdades e com elas relações de dominação, de poder.

Existem, neste trabalho, duas primeiras formas possíveis de poder: o do nosso suposto saber, como docentes em relação aos discentes, e o das nossas discentes, como professo-ras desse grupo de mulheres, grande parte analfabetas. Outras formas de poder também podem existir, mesmo que sem intenção, por isso é imprescindível cuidar, a todo instante, do nosso fazer. Freire (1996, p. 8) explana: “É no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opinião, que se instaura a necessidade da ética e se impõe a res-ponsabilidade”.

Como ensina também Rancière (1987, p.p. 15-16, 52),

[...] aquele que quer emancipar um homem deve dialogar com ele como um homem e não como um sábio, para ser educado e não para educar. E somente o poderá fazer aquele que efetivamente não sabe mais do que o aluno, que nunca fez a viagem antes dele, o ‘mestre ignorante’ (tradução nossa).

Na perspectiva de poder, o corpo é visto como um objeto, instrumento de manipulação, de adestramento e submissões. Sustenta-se o discurso de uma classe dominante que re-jeita qualquer desvio e celebra a imagem de um ideal. Tais formas de normatividade, de acordo com Rancière (2000, p. 29), definem as condições segundo as quais uma forma de arte pode ser decretada como boa ou ruim, apropriada ou inapropriada: “divisões do representável e do irrepresentável”.

Outra forma de poder poderia surgir diante da diferença de classe social entre o grupo de professores e alunas e as mulheres envolvidas, todas de baixa renda. Poderiam ser co-locados, aqui, como “fazedores do bem” aqueles que, de cima, dão as mãos àqueles que estão embaixo, sem deixar que os que “estão abaixo de nós” possam de fato subir até nosso suposto patamar.

Como orienta Freire (1996, p. 42),

Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua ‘genero-sidade’ continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A ‘ordem’ social injusta é a fonte generadora, permanente, desta ‘genero-sidade’ que se nutre da morte, do desalento e da miséria. Dai o desespero desta ‘generosidade’ diante de qualquer ameaça, embora tênue, à sua fonte. [...] A grande ‘generosidade’ está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos em gesto de súplica. Súplica de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo.

Outro autor que nos permite pensar e refletir nossas práticas é Ingold (2012). Dentre os conceitos tratados por ele está o improviso, abordado em algumas áreas como antropolo-gia, música, dança e design, e que tem a ver com as surpresas, desafios e, claro, descober-tas que acontecem durante as atividades, nos desenvolvimentos de projetos, na dança, na música, entre outros.

Para Ingold (2012, p. 26), “improvisar é seguir os modos do mundo à medida que eles se desenrolam”. De acordo com o autor, o pintor Paul Klee em seus cadernos, defendia e demonstrava, por meio de exemplos, que os processos de gênese e crescimento que produ-zem as formas que encontramos no mundo em que habitamos são mais importantes que as próprias formas. “A forma é o fim, a morte”, escreveu ele; “o dar forma é movimento, ação. O dar forma é vida.” Em outras palavras, ela não busca replicar formas acabadas e já estabelecidas, seja como imagens na mente, seja como objetos no mundo. Ela busca se unir às forças que trazem à tona a forma. Assim, como a planta cresce de sua semente, a linha cresce a partir de um ponto que foi posto em movimento.

Para o autor, “a vida está sempre em aberto: seu impulso não é alcançar um fim, mas conti-nuar seguindo em frente. A planta, o músico ou o pintor, ao seguirem em frente, “arriscam uma improvisação” (Ingold, 2012, p. 26).

Nesse mesmo sentido, segundo Fuentes (2006), designer uruguaio, não podemos confun-dir improvisação com desordem. Improvisar, segundo esse autor, é escolher os conceitos e materiais específicos do projeto no qual se está trabalhando, identificados, analisados e pesquisados à exaustão. Para ele, o que o designer faz -assim como o músico de jazz, ou o dançarino, quando improvisam- é abrir sua paleta e escolher. Decidir quais de todos aqueles elementos vão participar da encomenda de trabalho, e de que maneira.

Durante o desenvolvimento de projetos os problemas aparecem e, às vezes (ou muitas ve-zes), mudam o rumo daquilo que se planejou. E esse é o fascínio do trabalho que envolve o Design e a Dança: o acaso, o imprevisto elaborado. O acaso tem a ver com as soluções encontradas ao longo do caminho. Essas soluções são frutos da experimentação -quanto mais as pessoas experimentarem, mais chances terão de encontrar soluções criativas, ino-vadoras e, assim, obter as melhores descobertas.

Esse acaso, de certo modo, permeou boa parte do desenvolvimento das atividades nesse projeto de extensão. Com a mente aberta, lidamos com o improviso e nos preparamos para ele. À medida que os problemas apareciam (e não eram poucos), caminhos foram re-feitos, possibilidades repensadas e buscadas alternativas que atendessem as participantes, os parceiros, as estudantes, aos objetivos e às metas estabelecidas com o órgão de fomento.

Os caminhos do projeto

Os procedimentos metodológicos adotados no projeto valorizaram a relação construída entre os envolvidos no processo, bem como o reconhecimento dos saberes e das poten-cialidades de cada participante. O desenvolvimento das atividades aconteceu de forma coletiva e rompeu com a ideia tradicional de professor e aluno, conforme apontou Lave e Wenger (1991), proporcionando um aprendizado mútuo e enriquecedor tanto para as estudantes e professores quanto para o grupo de mulheres.

Inicialmente, foram previstas as seguintes etapas para o desenvolvimento do projeto:

Etapa 1 - consistiu em um contato inicial entre as alunas e o grupo Flores do Morro, para que as alunas pudessem conhecer a história de vida daquelas mulheres. Nesse primeiro momento o objetivo foi entender o contexto da comunidade na qual as participantes estão inseridas.

Etapa 2 - pesquisa bibliográfica sobre a produção artesanal para produtos, economia so-lidária, métodos de criação, dinâmicas de grupo, dança e projetos sociais, dentre outros assuntos necessários à realização do projeto. Nessa etapa, ao mesmo tempo em que se rea-lizariam pesquisas sobre o assunto, semanalmente haveria reuniões para discutir os textos pesquisados e selecionados sobre temas relacionados às atividades do Projeto.

Etapa 3 - preparação dos estudantes para o trabalho com a comunidade. Para lidar com esse tipo de público-alvo -pessoas normalmente excluídas, de alguma forma, da socieda-de- há necessidade, em primeiro lugar, de um treinamento que dê conta de esclarecer as formas e maneiras de lidar com este grupo. Assim, o objetivo com essa etapa foi preparar os alunos de modo a elucidar quem são essas pessoas, os possíveis problemas que iam enfrentar e, principalmente, os modos para lidar com essa situação.

Etapa 4 - preparação do material didático para o projeto. Os alunos prepararam o ma-terial a ser utilizado na capacitação das oficinas de Design e de Dança, no qual. foram abordados temas que os ajudariam a entender melhor o funcionamento do projeto. A princípio os temas poderiam contemplar: criatividade e desenvolvimento de produto; es-tudo da cor e da forma; propriedades e processos dos materiais; embalagem. No que diz respeito à dança, os temas poderiam estar relacionados aos limites físicos ou especifici-dades psicológicas das participantes, o contexto social delas, o espaço físico atribuído à atividade, dentre outros.

Etapa 5 - oficinas de Dança e de Design. Ao longo de seis meses as estudantes trabalha-riam diretamente com as mulheres que participam das oficinas de artesanato sobre os temas definidos juntamente com a comunidade.

Etapa 6 - desenvolvimento e fabricação dos produtos. Nessa etapa as estudantes iam auxi-liar as participantes no desenvolvimento de seus produtos artesanais.

Logo que iniciamos as atividades com o grupo Flores do Morro, em abril de 2018, altera-mos grande parte do que havíamos planejado e, de certo modo, já estávamos contando que essas alterações seriam necessárias, para as quais necessitávamos iniciar as atividades para conhecer melhor o grupo e poder ouvir as demandas daquelas pessoas, para assim construirmos juntos o projeto.

A primeira alteração foi promover maior integração entre as atividades relacionadas à dança e ao design. Inicialmente, algumas atividades estavam pouco integradas e as oficinas (de dança e de design) aconteceriam em momentos diferentes. Mas, ao entender melhor as reais necessidades do grupo, compreendemos que não faria sentido realizar as ativida-des separadamente. Além disso, entendemos também que seria ótima oportunidade para somar experiências e, assim, descobrir os pontos de interferência e convergência entre as duas áreas. Portanto, no início das atividades com o grupo, todas as ações foram repen-sadas e reelaboradas, tendo como desafio criar atividades que abarcassem as duas áreas simultaneamente.

As atividades foram divididas em dois momentos: o primeiro seria processual, mais rela-cionado ao trabalho de base, de introdução. O segundo momento foi o de elaboração de produtos. A etapa processual, que se estendeu ao logo do primeiro semestre de 2018, foi aquela em que foram estudados conceitos de design, como cor, forma e composição, sem ter em mente um produto como objetivo. Isso permitiu maior aproximação da dança, e esses conceitos foram trabalhados com o corpo no espaço, de forma mais abstrata e espontânea. Nem era possível distinguir se a atividade estava relacionada à Dança ou ao Design.

A etapa de elaboração de produtos, que começou no segundo semestre de 2018 e se esten-de até o momento, foi muito mais desafiadora. Tivemos de lidar com as expectativas de produtos “bem acabados” e experimentar muitos tipos de produtos para entender o que funcionava melhor no contexto de uma produção coletiva, em um grupo muito heterogê-neo e com limitações físicas e motoras diversas. O trabalho começou a fluir melhor quan-do percebemos que poderíamos ter atividades processuais em um momento da oficina e aplicar os conceitos trabalhados, em um segundo momento, nos produtos. Além disso, outro ponto que ajudou no desenvolvimento dos produtos foi apostar na autoria coletiva, momento em que as mulheres passaram a se dividir para as etapas de produção de acordo com seus desejos, interesses e limites.

Outra alteração foi em relação às atividades das oficinas. Com o objetivo de estarmos mais perto dos desejos e necessidades das participantes, percebemos, após alguns encontros, que o planejamento das ações deveria ocorrer à medida que as oficinas aconteciam. Desse modo, as estudantes e a coordenação se reuniam com frequência para repensar as ativida-des, bem como, analisar e avaliar as ações do projeto.

Outra alteração necessária, também, foi a de proporcionar maior autonomia às estudantes para que tivessem liberdade de propor as atividades semanais das oficinas e alterá-las, caso houvesse necessidade. Com essa decisão, elas se sentiram mais motivadas, mais autôno-mas e com maior interesse no desenvolvimento do projeto.

Foi necessário, também, alterar a maneira como havia sido planejada a etapa de prepa-ração das estudantes. Inicialmente previu-se fazer o treinamento com elas para depois irem a campo. Essa etapa, porém, aconteceu concomitantemente, e não anteriormente às oficinas. Ou seja, aprenderam a lidar com o grupo durante o próprio processo.

Uma das alterações mais significativas relacionou-se com os temas das oficinas. Confor-me demonstrado, havíamos pensado em temas referentes aos produtos artesanais que o grupo produzia. As estudantes, porém, com a autonomia que tiveram, ao compreenderem o grupo, bem como as necessidades e os desejos dele, rapidamente propuseram outros temas que estavam mais de acordo com a realidade das participantes. Os principais temas abordados nas oficinas, portanto, foram: trajetórias, linhas, desenho, forma, síntese, com-posição, cores, modulação, memória e produtos para casa.

Sobre as alterações ao longo do percurso, vale registrar, ainda, o planejamento do tempo, principalmente no início do projeto, quando ainda não conhecíamos o tempo específi-co daquele grupo. Estimávamos um período para trabalhar determinado tema e sempre nos prolongávamos muito mais do que o imaginado. Depois de certo tempo, percebemos que o motivo de o grupo se reunir é justamente o de estar junto, compartilhar histórias e vivências, o que nos integrou mais às participantes e nos permitiu trocas muito mais significativas.

Nos primeiros encontros as atividades estiveram relacionadas diretamente ao corpo, mas sempre seguindo para algum registro gráfico. Em geral, começávamos com algo bem abs-trato, percebendo algum conceito no corpo e no espaço, depois seguíamos para um re-gistro gráfico, que surgia por meio de movimentos corporais, e, por fim, fazíamos uma atividade de aplicação do conceito trabalhado.

Independentemente do tema, para todos os encontros foram planejadas atividades iniciais que pudessem integrar as pessoas, como alguns exercícios de respiração, de alongamento, massagem e automassagem, dentre outros, assim como as próprias atividades de desenho que tinham etapas bem coletivas e de integração do grupo.

Além das oficinas, foram realizadas, também, atividades diferentes em alguns momentos -por exemplo, fizemos uma visita à Companhia de Dança do Palácio das Artes de Belo Horizonte. Em outro momento as mulheres do grupo participaram das apresentações desse projeto na Escola de Arquitetura da UFMG e no Centro de Atividades Didáticas da UFMG. Elas também participaram de uma aula da disciplina Dança e Longevidade do Curso de Graduação/Licenciatura em Dança da UFMG. Outra atividade diferenciada foi a produção das embalagens para a troca de presentes para a festa de encerramento do projeto em 2018. O filme “Território do Brincar”, produção da Maria Farinha Filmes, foi exibido para trabalhar o tema das brincadeiras da infância e da cultura popular.

Para todos os encontros com o grupo houve relato escrito contendo as atividades planeja-das, avaliação sobre o processo das atividades realizadas e os resultados alcançados. Além disso, foi feito registro fotográfico.

As oficinas

Foram muitos encontros com o grupo para a realização das oficinas e de outras atividades, que tiveram duração de fevereiro a dezembro de 2018 e reinício em fevereiro de 2019. No primeiro semestre, foi um encontro por semana e, a partir do segundo, dois encontros semanais, perfazendo um total de aproximadamente 60 encontros em 2018.

Alguns temas tiveram de ser abordados em mais de um encontro, outros precisaram de quatro ou cinco para que elas dessem conta de entender e realizar todas as atividades. A seguir apresentamos algumas atividades realizadas durante as oficinas com o grupo a par-tir dos registros das nossas estudantes.

Uma das atividades da primeira oficina foi trabalhar a identidade e o pertencimento ao grupo. Para isso, uma das mulheres se deitou no chão e as outras registraram seu contor-no, coletivamente. Depois, cada uma escolheu uma cor que representasse como estava se sentindo naquele momento e fizeram o registro na silhueta desenhada.

Foram vários encontros e atividades nas oficinas sobre linhas. Uma delas consistia em ca-minhar pelo espaço rabiscando as placas que estavam penduradas no pescoço das outras participantes. Em muitas atividades, o simbolismo do gesto foi focado, como essa em que as participantes literalmente deixavam “marcas” nas outras ao longo de suas trajetórias. Os registros finais desses rabiscos foram pendurados para que ficassem expostos e fossem entendidos por elas também como trabalhos artísticos.

Em outra atividade trabalhou-se com as linhas no corpo. Cada participante colocava pe-daços de fita adesiva colorida em três partes do corpo e, em dupla, estudava quais as pos-sibilidades de conexão dessas fitas nos dois corpos envolvidos. Depois, em duplas, cada hora uma participante se movia como se puxasse barbantes invisíveis de partes do corpo da outra. A outra se movia como se realmente estivesse sendo puxada.

A oficina sobre trajetórias também se desenvolveu em vários encontros e foram muitas atividades praticadas com o grupo. Um dos exercícios foi desenhar as trajetórias em du-plas. Uma pessoa andava e a outra registrava, no papel, a trajetória feita pela colega. De-pois, ainda na mesma dupla, uma fazia uma trajetória com os braços, no ar, e a outra desenhava no papel. Essa atividade, assim como nas demais, exemplifica um tema tratado pelas três áreas (Dança, Design e Arquitetura) ao mesmo tempo, linhas no papel e no corpo, conexões entre as linhas no papel, no corpo e no espaço. A noção espacial foi forte-mente exercitada, uma vez que se propôs o esforço de transpor uma trajetória no espaço para uma representação gráfica, assim como o desenho de um mapa.

Em outro exercício, trabalhou-se com a construção de um mapa afetivo. O objetivo era que cada uma desenhasse sua trajetória de casa até o Flores do Morro. Os desenhos fo-ram feitos primeiro em papel, depois passados para o tecido americano cru, por meio de pintura. O mapa afetivo virou um painel que fica pendurado na parede no local dos encontros do grupo.

Nas oficinas de desenho e síntese também foram feitas diversas atividades com o grupo. Uma delas consistia em desenhar o contorno das folhas (de árvores) e colocar a folha em-baixo do papel e passar o giz para perceber a figura e a textura, depois passar tinta na folha e fazer um carimbo com a própria folha.

A oficina de cores também foi desenvolvida com muitas atividades diferentes e em vários encontros. Em um dos exercícios elas tinham de fazer movimentos relacionando as cores frias aos movimentos mais lentos e cores quentes, aos movimentos mais agitados. Em ou-tra atividade deu-se início ao estudo das cores no papel. As participantes não conheciam os termos relacionados às cores, por isso, antes de começar, foi necessário utilizarmos ana-logias como o fogo, o sol, a água do rio, a mata. Depois, com um papel colado na parede, procurou-se entender a ordem do círculo cromático, antes mesmo de vê-lo. Uma pessoa começava um traço e a outra continuava com a próxima cor, de forma intuitiva. Em se-guida, pegamos o círculo, comparamos com nossos traços e percebemos que a atividade anterior contribuiu para essa, pois elas já sabiam separar as cores frias das quentes. A atividade seguinte foi pensada para entendermos como se formam as cores. Usamos apenas aquarelas amarela, vermelha e azul (cores primárias) para fazer as pinturas.

Em outro momento foram abordadas as cores de maneira diferente. Em duplas, segura-vam o papel com algumas tintas derramadas sobre ele. Elas tiveram de misturar as tintas apenas com os movimentos do corpo, para verem as novas cores surgindo.

Em outra oficina trabalhou-se com composição e elaboração de padrões dos estêncis já produzidos por elas com base nas atividades com os desenhos das folhas. Posicionamos os estênceis de forma a deixar metade para fora do papel, para que a figura se formasse ao juntar os papéis, conforme pode ser observado na Figura 1.

Vale destacar que antes da execução desses exercícios de síntese e composição percebeu-se que seria necessário abordar alguns conceitos utilizando o desenho no papel e também o corpo, como os de simetria e equilíbrio.

Outro desafio foi desenvolver as dobraduras na oficina de origami. Essa atividade foi feita utilizando o corpo e os papéis. Utilizou-se o origami modular para que fosse possível retomar o tema da composição e das cores, já trabalhados anteriormente. Começamos com atividades com o corpo, que envolvem nossas “dobras” e articulações. Percebemos as “dobras” pequenas, como as dos dedos, e as grandes, como as da perna. Também do-bramos e amassamos pedaços de papel com diferentes partes do corpo e comparamos os vincos e marcas com as nossas rugas e cicatrizes. Depois disso, fizemos um trabalho com encaixes com os corpos, como se cada pessoa fosse uma peça de um grande origami modular corporal.

Finalmente, seguiu-se para o trabalho com papel e foram produzidas várias pirâmides coloridas para formar composições.

Todas essas oficinas e atividades serviram de base para que as participantes fossem, aos poucos, aprendendo e lidar com algumas técnicas para utilizá-las em seus produtos ar-tesanais. Além disso, serviram também para integrar as participantes, melhorar a relação entre as estudantes e as mulheres do grupo.

Produtos foram desenvolvidos com o grupo aproveitando objetos que tinham em mãos - por exemplo, tampinhas de garrafas. O trabalho consistia em costurar um fuxico e colocar uma tampinha dentro dele. Assim, seria possível elaborar alguns produtos utilizando essas peças - por exemplo, descanso para panela, suportes para mesa, dentre outros.

O estudo das composições foi retomado já pensando nos possíveis produtos que pode-riam ser desenvolvidos, como panos de prato e bolsas, por exemplo. Para isso, utilizamos a técnica do estêncil, já bastante trabalhada pelo grupo. Os testes de cores e composições no papel foram iniciados, para depois serem aplicados no tecido. Decidiu-se por fazer um exercício um pouco mais guiado, para que elas experimentassem composições diferentes do que estavam acostumadas. As participantes foram estimuladas a colocar apenas metade do estêncil no papel, mostrando que as estampas das nossas roupas também têm partes cortadas. Incentivou-se o uso mais completo do papel, já que algumas participantes esta-vam acostumadas a colocar apenas uma ou duas figuras centrais no papel.

Figura 1 Criando padrões e composição com estêncil. 

Figura 2 Criando padrões com a técnica de estêncil. 

Importante destacar que nos esforçamos para pensar em produtos que integrassem a pin-tura e o bordado, técnicas que elas já praticavam no Flores, antes de dar início às ativida-des com elas. Além disso, também houve tentativa, por parte das estudantes, de aprender com elas, já que nenhuma delas tinha contato com essas técnicas.

Nas últimas oficinas de 2018, dedicou-se à produção das embalagens para a troca de pre-sentes no amigo oculto, na festa de encerramento do projeto em 2018. Para os presentes foram utilizados os próprios produtos feitos por elas. Para isso, foram utilizados os papéis das primeiras atividades nas oficinas. Assim, as embalagens ficaram todas diferentes umas das outras, com riscos e rabiscos abstratos.

Para dar alguns exemplos para o leitor da importância desse projeto para as pessoas que dele participam, são apresentados a seguir alguns relatos das mulheres do grupo, bem como das estudantes que participam do projeto.

Ao ser questionada sobre a importância do projeto, Luci relatou: “Às vezes saio de casa triste e quando chego aqui é só alegria, e a gente esquece dos problemas.” Ana Cristina disse: “Esse projeto está sendo bom para minha saúde”. Para Jacqueline

A importância desse projeto vai desde a alegria do grupo, a forma como as pessoas lidam com as outras, me faz ficar mais feliz, com vontade de fazer as coisas. Esse projeto mudou muita coisa na minha vida, melhorei minha coor-denação, melhorei meu humor, melhorei minha percepção.

Para Júlia Passos, estudante do curso de Arquitetura e bolsista do projeto, as atividades ajudaram-na a pensar a arquitetura mais abrangente uma vez que criamos espacialidades com nossos corpos, trabalhamos nossa percepção espacial, nosso pertencimento ao grupo e ao território. Segundo ela,

O maior aprendizado no Flores é o de trabalhar realmente em grupo e pelo grupo, o que muitas vezes não se consegue atingir em trabalhos de disciplinas da graduação. É muito nítido o quanto é rico trabalhar as três áreas de forma integrada. Cada uma das estudantes envolvidas acrescenta aos temas que estão sendo trabalhados a sua perspectiva, que muitas vezes, é complementar a das outras.

Para Jéssica, estudante do curso de Design e voluntária no projeto, o processo colaborativo e a troca que sempre tentamos realizar com o grupo faz com que as integrantes se unam mais pela causa que defendem e fortalece também o sentimento de pertencimento e iden-tidade. Para ela,

O fazer colaborativo está presente em todos os momentos das nossas ativida-des, integrando as áreas de Design, Dança e Arquitetura. Buscamos entrelaçar os exercícios para que não fique algo rígido, mas, sim, fluido e adaptável com a demanda e personalidade de cada integrante do grupo. Além disso, os projetos de extensão buscam fazer essa ponte da academia com a comunidade e pro-curam tornar o processo mais humanizado, o que é essencial. Fazer com que as pessoas participem e opinem faz com que elas se integrem mais e se sintam também corresponsáveis por aquilo que está sendo feito.

Luana, estudante do curso de Dança e voluntária no projeto, ao tratar das atividades nas oficinas relata que observou que cada uma, com a própria bagagem, teve conquistas in-dividuais. Observa também que a ludicidade foi uma maneira encontrada para trabalhar com as mulheres e que hoje elas se mostram mais receptivas “aos possíveis inacabamentos da criação” e às propostas “sem finalidades bem definidas”. Percebe “um pouco mais de confiança e de reconhecimento sobre os próprios saberes” das participantes:

Esses movimentos são sutis e acontecem em graus diferentes, no tempo de cada uma. Para mim, o exercício de levar a atenção para esses detalhes é um es-tímulo a estar em contato também com movimentos próprios. Afinal, a busca por mais liberdade para brincar, falar, criar e confiar é também minha.

Esses depoimentos denotam que essa iniciativa fortalece o laço social entre as participan-tes, assim como a autoestima dessas mulheres que se dizem excluídas e estigmatizadas. É uma transformação social relevante e que se deu por meio das ações do projeto.

Os testemunhos mostram, também, como as estudantes tiveram a oportunidade de colo-car em prática os conhecimentos adquiridos na Universidade e, além disso, puderam ter acesso a outros tipos de saberes e outras realidades, vivenciando na prática as potenciali-dades que esse tipo de projeto oferece.

Nesse mesmo sentido, Mello, Gomes, Maffini e Pichler (2011) argumentam que a extensão universitária é um meio de agregar à formação acadêmica do aluno a experiência pro-fissional necessária para sua melhor qualificação e o atendimento das demandas sociais.

Conclusão

Ao refletir sobre as atividades realizadas durante o projeto e o impacto das ações no grupo e na comunidade, remete-se ao papel da Universidade perante a sociedade. Conforme ar-gumenta Corrêa (2017, p. 165), “por estarmos em uma instituição pública, temos o dever de dar algum tipo de retorno para a sociedade” e a realização dessa iniciativa é um exem-plo, dentre tantos outros, do que podemos fazer.

Baseando-se nesse fato, alguns aspectos relacionados a esse projeto merecem ser refletidos. O primeiro deles tem relação direta com um dos resultados alcançados, que foi proporcio-nar bem-estar às pessoas do grupo. Percebeu-se isso pelos relatos e pelo envolvimento das pessoas nas atividades no dia a dia do projeto. Esse bem-estar tem relação com as habili-dades que essas mulheres conseguiram desenvolver, com a sinergia do grupo e, principal-mente, com a autoestima delas. As participantes, em sua maioria, sentiram-se valorizadas e importantes ao participarem das atividades, de fazerem parte do grupo, de terem tido a oportunidade, também, de ensinar e, sobretudo, por terem sido ouvidas e compreendidas. Outro aspecto tem relação com a troca de saberes. Ou seja, tem relação com a interação dialógica entre a Universidade e a comunidade, como pode ser observado no documento de Política Nacional de Extensão Universitária (2012, pp. 17-18), o qual “orienta o desen-volvimento de relações entre Universidade e setores sociais marcadas pelo diálogo e troca de saberes, superando-se, assim, o discurso da hegemonia acadêmica”.

Ao vivenciar experiências como essa, fica evidente a importância que se deve dar aos sabe-res já existentes. É valorizando esse saber que se pode minimizar as relações de poder entre o meio acadêmico e a sociedade -sobretudo da classe socioeconômica baixa, como foi o caso desse projeto. E também, como já posto, o poder e hierarquia entre docentes e discen-tes. Tudo isso remete ao cuidado com nosso fazer, uma ética de trabalho que culmina em um espaço de trocas e partilha. Assim, pode-se dizer que esse projeto foi um encontro de saberes para todos nós, encontro de indivíduos, com a própria vida, suas histórias, limites e capacidades. E, como em qualquer encontro, cada um traz e oferece ao outro o que tem. Aprendemos uns com os outros e continuamos a aprender.

Um terceiro aspecto tem relação com o processo de desenvolvimento desse projeto, que pode se tornar mais rico de possibilidades do que os próprios resultados. Ao se referir ao processo, está-se também dando destaque à riqueza das atividades realizadas, da in-tegração entre as áreas, bem como ao empenho daquelas mulheres, que, apesar de todas as adversidades do cotidiano, levaram as atividades do projeto a sério, com empenho, dedicação e entusiasmo.

Essa questão da valorização do processo tem a ver, também, com o que argumenta Bonsie-pe (2010, p. 72), segundo ele, uma das formas de lidar com grupos é promover a inovação, de modo a advogar “a autonomia dos artesãos para melhorar suas condições de subsis-tência”. No caso desse projeto, uma das metas é tornar o grupo autônomo para que, com o tempo, não mais dependam das ações da Universidade. Por isso, o processo, nesse caso, revela-se tão importante quanto os resultados alcançados.

Esse projeto foi premiado na “Semana do Conhecimento 2018”, da UFMG, como destaque na categoria “Trabalho”. Essa premiação, além do reconhecimento do trabalho, serve tam-bém para divulgar o grupo Flores do Morro.

Para finalizar, pode-se afirmar que foram encontrados pontos de interferência e conver-gência entre as áreas de Design e da Dança -incluindo também a de Arquitetura-, o que permitiu somar os conhecimentos, nutrir as experiências coletivas em prol do grupo Flo-res do Morro e promover a inovação social.

Referências

Araújo, R. (2017). “Um olhar sobre o design social e a prática do design em parceria”, em Alfredo, J. O., Carlo, F. & Chiara, D. G. (Orgs.). Ecovisões projetuais: pesquisas em design e sustentabilidade no Brasil (livro eletrônico). São Paulo: Blucher. [ Links ]

Barzola, M. V. & Mendonza, M. (2018). “Políticas de Estado para la innovación social a través del diseño”, em Cuaderno del Centro de Estudios en Diseño y Comunicación [Ensayos]. Universidad de Palermo (83), 15-23. [ Links ]

Política Nacional de Extensão Universitária. Manaus-AM (2012). Recuperado em 7 de feve-reiro, 2018, de https://www.ufmg.br/proex/renex/images/documentos/Pol%C3%ADtica-Nacional-de-Extens%C3%A3o-Universit%C3%A1ria-e-book.pdf. [ Links ]

Rancière, J. (2000). Le maître ignorant [Collection Fait et cause - édition, 1987]. Paris: Faillard. [ Links ]

Strazzacappa, H. & M. Morandi, C. (2002, 2010). A formação do artista da dança. Campinas - SP: Papirus. [ Links ]

1Associação sem fins lucrativos, fundada em 1964, cuja finalidade é exercer atividades de assistência social.

2A marca do grupo foi desenvolvida por uma designer, mas não havia ainda um estudo de aplicação.

3A Política Nacional de Extensão Universitária (2012) prevê algumas diretrizes para as atividades dos projetos de extensão. As frases entre aspas foram extraídas desse documento.

Recebido: 01 de Junho de 2020; Aceito: 01 de Agosto de 2020; : 01 de Setembro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons