1. Introdução
A aptidão cardiorrespiratória pode ser definida fisiologicamente como consumo máximo de oxigênio (VO2máximo, i. e. a mais alta taxa de utilização do oxigênio pelas células musculares para fornecimento de energia), e, em crianças e adolescentes, é mais indicado o uso do termo VO2pico (Rowland, 2008). Essa capacidade tem sido utilizada na área da saúde com o objetivo de relacionar a aptidão física ao desenvolvimento de riscos cardiovasculares, por outro lado, na área do treinamento esportivo, o VO2pico é uma medida norteadora para a prescrição do exercício e avaliação de programas de treinamento (Rowland, 2008), sendo, portanto, o VO2pico um importante marcador de saúde em crianças e adolescentes (Cadenas-Sanchez, Lamoneda y Huertas-Delgado, 2021).
Nesse sentido, Oliveira e Guedes (Oliveira y Guedes, 2016), realizaram uma revisão sistemática e observaram uma associação significativa entre baixos níveis de atividade física e comportamento sedentário (maior que 2 horas de tempo de tela/semana) com o desenvolvimento de síndrome metabólica na adolescência. O que demostra uma importante relação entre nível de atividade física/comportamento sedentário/saúde.
Para tanto, a Organização Mundial da Saúde recomenda a prática de 300 minutos/semana de atividade física de moderada a alta para crianças e adolescentes (World Health Organization, 2010). No Brasil, o futebol é a principal modalidade praticada entre os meninos na adolescência, haja vista o número de escolinhas de futebol que surgiram nos últimos anos no cenário nacional como opção de formação de futuros desportistas e como políticas públicas para o desenvolvimento do esporte e, que foram se adaptando no decorrer do tempo (Oliveira, Elson Aparecido, Grunennvaldt, 2015).
Sabe-se que o futebol é dependente de uma boa composição corporal, VO2pico, velocidade, força e potência muscular, neste sentido Rebelo et al. (2013) observaram valores especificamente melhores dessas variáveis de acordo com o nível de competição (i. e. praticantes recreacionais, nível amador e de elite). Portanto, é possível inferir que a prática do futebol de campo pode desenvolver a aptidão física em crianças e adolescentes, tanto para o desempenho, quanto para a saúde, dependendo do nível em que é praticado com influência positiva na melhora do VO2pico.
Porém, ao avaliar o VO2pico nessa população, deve-se observar que, no período da infância e adolescência ocorre um aumento progressivo dos componentes determinantes dessa capacidade, portanto, a capacidade aeróbia mensurada por meio do VO2pico depende dos componentes cardiovasculares, respiratórios e musculares (Rowland, 2008). Na puberdade, o aumento do VO2pico nos meninos, decorre do anabolismo da testosterona, como consequência, os valores absolutos aumentam conforme o crescimento (Rodriguez et al. 2006) e, portanto, requer análises que possam observar as mudanças que ocorrem durante o crescimento nas variáveis de composição corporal e sistema cardiovascular influenciadas pela maturação (Armstrong y Welsman, 2020).
O VO2pico pode ser expresso em valores absolutos (litros/minuto) ou em valores relativos a massa corporal (mililitros/quilogramas/minuto), sendo este último, o mais utilizado comparações entre sujeitos com diferenças de massa corporal, massa corporal magra, estatura e percentual de gordura (Rowland, 2008).
Dessa forma, a análise da composição corporal deve ser considerada ao mensurarmos o VO2 pico em crianças e adolescentes, pois, parte das respostas biológicas observadas no esforço físico, está associada às dimensões corporais, assim, uma das maneiras de ajustar a proporção corporal para analisar essa capacidade, é a utilização da escala alométrica (Chamari et al., 2005), que é representada por uma equação que indica o comportamento de uma variável fisiológica Y em relação à variável massa , onde . é o coeficiente alométrico (constante) e b é o expoente alométrico ou escalonável (Tartaruga et al., 2010).
Assim, entender como o futebol pode alterar as respostas cardiorrespiratórias de adolescentes em diferentes níveis de prática pode auxiliar na compreensão de seu desempenho aeróbio, tanto para a competição quanto para a saúde. Além disso, a literatura demostra que ajustes realizados como a divisão pelo peso (e.g. ml. min-1. kg-1), apresenta uma vantagem aritmética para os indivíduos menores em relação aos maiores, sem apresentar diferenças na variável fisiológica (VO2pico) (Welsman et al., 1996). Dessa forma, a hipótese do presente estudo é que o aumento do nível de exigência física de treinamento do futebol de campo pode promover aumentos significativos no VO2pico em adolescentes praticantes.
Portanto, o objetivo do presente estudo foi verificar o VO2pico entre os adolescentes praticantes de futebol de campo de dois níveis (esporte educacional e categorias de formação de base) e não praticantes antes e após o ajuste pelo tamanho corporal.
2. Metodología
2.1 Casuística
A amostra foi composta por 116 adolescentes do gênero masculino, com faixa etária entre 12 e 15 anos, dividido em três grupos; a) o Grupo de Educação Física Escolar Regular [(GED; n= 45), i. e. adolescentes que frequentam as aulas de Educação Física regular do ensino fundamental da rede municipal de Campinas-SP], com frequência de duas aulas semanais (150 minutos por semana); b) o Grupo de Treinamento de Futebol no Esporte Educacional [(GEE; n=45), i. e. com o treinamento de futebol duas vezes na semana (150 minutos) mais as duas sessões de educação física regular (total = 300 minutos) e; c) o Grupo de Categorias de Formação de Atletas de Futebol [(GAF; n=26), i. e. integrantes da base de formação um clube de futebol que disputa o Campeonato Paulista, além de duas sessões de educação física (>900 minutos por semana)].
Os critérios de inclusão foram: a) não apresentar deficiências físicas; b) não ter algum tipo de lesão; c) para o grupo 1 e 3, não realizar outra atividade física; d) para o grupo 2 ter pelo menos seis meses de participação nos treinamentos, e; e) para o GAF ter pelo menos um ano de treinamento.
Todos os participantes foram devidamente informados dos procedimentos experimentais e desconfortos possíveis associados com o estudo. Os adolecentes participantes assinaram o termo de assentimento e os responsáveis assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido para autorização. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual da Unicamp (CEP 045/2011).
2.2 Antropometria e composição corporal
A estatura foi medida por meio de um estandiômetro (Personal Caprice Sanny® ES2060) graduado em milímetros com precisão de 0,1 cm e a massa corporal foi avaliada numa balança da marca Acqua® (SIM 09190), com carga máxima de 180 kg e divisões em 100 g. Para as medidas de espessura das dobras cutâneas do tríceps (TR), e subescapular (SE), foi utilizado um compasso de dobras da marca Lange (Cambridge Scientific Instruments, Maryland, USA) com precisão de 1 mm. Todas as medidas seguiram técnica padronizada (Lohman, Roche y Martorell, 1988). Foi utilizada a equação:
Onde, ∑=Somatória das dobras (triciptal + subescapular); C = constante por gênero e idade, proposta por Lohman et al. (1992) para calcular o percentual de massa gorda (%MG). Com base nesses dados, a massa de gordura (MG) foi calculada por . A massa livre de gordura (MLG) foi calculada subtraindo a massa de gordura da massa corporal. Todas as medidas antropométricas foram realizadas pelo mesmo avaliador (RC).
2.3 Aptidão Cardiorrespiratória
A capacidade de resistência aeróbia foi avaliada por meio do protocolo Yo-yo intermitente recovery test nível 1 (YYIRTI) proposto por Bangsbo, Iaia e Krostrup (2008) calculando o VO2pico estimado pela equação. Antes do Teste de VO2pico foi realizado um período de aquecimento de 10 minutos em uma intensidade moderada e individualizada. O teste incremental exaustivo consistiu no percurso de corrida vai-e-vem em 20 metros com um recuo de cinco metros para descanso de cinco segundos. O teste iniciou-se após um sinal sonoro através de um aparelho de som com velocidade determinada. O teste foi encerrado quando o atleta entrasse em exaustão voluntária ou realizasse duas falhas não conseguindo percorrer os 20 metros na velocidade determinada pelo estágio. Embora a determinação do VO2pico de forma indireta seja subestimada quando comparada com avaliações diretas, o estudo de Lizana et al. (2014) apontam uma correlação significativa entre os valores de VO2pico obtidos de forma direta e indireta. As avaliações foram realizadas em campo gramado nos respectivos locais de educação física e treinamento.
2.4 Análise estatística
O tratamento estatístico das informações foi realizado mediante o pacote computadorizado SPSS 17 (Statistical Package for the Social Sciences) utilizando-se dos procedimentos da estatística descritiva média, mediana, mínimo, máximo e desvio padrão. Para verificar a distribuição dos dados, foi utilizado o teste de normalidade de Kolmogorov-Smirnovª. Para análise inferencial, foram utilizados a ANOVA (one way) e o teste de Kruskall-Wallis. O teste Levene foi empregado para verificar a homogeneidade das variâncias e, para determinar as diferenças intergrupos utilizou-se o teste Post Hoc de Bonferroni. Para o ajuste do VO2pico pela massa corporal foi utilizada a escala alométrica com expoente de 0,67 (Chamari et al., 2005), utilizou-se da equação: ; onde a é constante, b é a o expoente, e x é a massa corporal, transformada em uma função linear usando-se a transformação logarítmica:. O nível de significância adotado foi de p<0,05
3. Resultados
A Tabela 1 apresenta os resultados descritivos de média, desvio padrão, mínimo e máximo das variáveis estudadas divididas por grupo.
%MG: percentual de massa gorda; MG: massa de gordura; MLG: Massa Livre de Gordura; * diferença significativa em relação ao GC [ANOVA (Bonferroni); p<0,001]; # diferença significativa em relação ao GEE [ANOVA (Bonferroni); p<0,001].
Fuente: Elaboração própria
A Tabela 1 apresenta as diferenças entre as médias e IC 95% entre os grupos para as variáveis idade e de composição corporal. O GAF apresentou idade significativamente superior [F (2, 113) = 52.44; p<0,0001] em relação ao GED (p<0,0001) e GEE (p<0,0001). Como esperado, o GAF apresentou valores significativamente superiores ao demais grupos nas variáveis relacionadas ao desempenho como a estatura [F (2, 113) = 27.77; p<0,0001] em relação ao GED (p<0,0001) e ao GEE (p<0,0001), para a massa corporal [F (2, 113) = 27.770; p<0,0001] sobre o GED (p<0,0006) e o GEE (p<0,0001) e do GED sobre o GEE (p<0,0002) e da MIG [F (2, 113) = 46.17; p<0,0001)] sobre o GED (p< 0,0001) e o GEE (p<0,0001). Já, com relação as variáveis associadas ao componente de gordura, observou-se o oposto, com valores superiores do %MG [F (2, 113) = 24.660; p<0,0001] do GED sobre o GEE (p<0,0001) e o GAF (p<0,0001) e da MG [F (2, 113) = 9.087; p<0,0002] apenas em relação ao GEE (p<0,0001).
Estes resultados, confirmam a necessidade de, ao se avaliar o VO2pico, levar em consideração as diferenças relativas ao tamanho corporal. Assim, optou-se por ajustar o VO2pico alometricamente, os resultados são apresentados na Tabela 2.
VO2pico = Pico de consumo máximo de oxigênio; * diferença significativa em relação ao GC [ANOVA (Bonferroni); p<0,001]; # diferença significativa em relação ao GEE [ANOVA (Bonferroni); p<0,001].
Fuente: Elaboração própria
Com relação ao VO2pico relativo, o GEE apresentou valores significativamente superior [F (2, 113) = 26.58; p<0,0001] ao GED (p<0,0001) e ao GAF (p<0,0001). Após o ajuste alométrico o GAF apresentou valores superiores [F (2, 113) = 27.79; p<0,0001] ao GEE (p<0,0001) e GED (p<0,0002), e o GED obteve valor significativamente maior ao Grupo GEE (p<0,0006).
4. Discussão
O objetivo do presente estudo foi verificar o VO2pico entre os adolescentes praticantes de futebol de dois níveis (esporte educacional e categorias de formação de base) e não praticantes antes e após o ajuste pelo tamanho corporal.
Os resultados mostraram que, a prática do futebol pode promover alterações positivas na composição corporal dos adolescentes, como observado nos resultados superiores de estatura (176,25±6,71; p<0,05), massa corporal (61,62±8,27; p<0,05) e MLG (54,98±5,92; p<0,05) do GAF e relação ao GED e GEE, o que pode ser caracterizado pela própria seleção de talentos e pelas diferentes rotinas de treinamentos realizadas entre os grupos. Em adição, com relação aos resultados do VO2pico foi possível observar que o tamanho corporal tem influência na análise desse parâmetro cardiorrespiratório, pois, quando avaliado o VO2pico relativo, o grupo que apresentou melhore resultado foi GEE com diferenças significativas somente para o GED (44,83±3,45 e 39,44±3,58; p<0,0001, respectivamente). Entretanto, após o ajuste alométrico, os resultados foram diferentes, com VO2pico significativamente superior do GAF (175,13±25,22) para o GED (143,89±36,58; p<0,0001) e do GAF e GED sobre o GEE (119,26±26,44; p<0,0001).
Quando utilizamos ajustes matemáticos lineares mais simples a fim de normalizar os dados para permitir a comparação entre indivíduos e grupos, como por exemplo, a divisão do VO2pico (ml.min.-1) pela massa corporal (ml.kg.min.-1), este não leva em consideração as alterações nas dimensões corporais que ocorrem ao longo do tempo, que podem ser tanto estrutural quanto funcional, e, portanto, pode-se inferir que a utilização do VO2pico (ml.kg.min.-1) pode não refletir com precisão a aptidão cardiorrespiratória (Loftin et al., 2016) e superestimar essa capacidade em sujeitos menores (Welsman et al., 1996), como visto no presente estudo com melhores resultados do VO2pico (ml.kg.min.-1) para o GEE.
Os resultados apontam melhor desempenho dos grupos com frequência de treinamento igual ou superior a 4 sessões semanais (GEE e GAF). A literatura científica tem demonstrado que ganhos de picos da capacidade aeróbia são conseguidos, através de sessões de treinamento com alta intensidade e uma duração variando entre 35 e 45 minutos com frequência de no mínimo quatro sessões semanais (Sharkey, 1998; Ito, 2019). De fato, alguns estudos anteriores demonstraram que, durante as sessões de treinamento, intervalos repetidos de exercícios de alta intensidade e curta duração (treinamento intervalado) são uma alternativa eficaz para melhorar o VO2pico entre os atletas (Kim et al., 2011; Cocks et al., 2012). Além disso, estes resultados encontrados neste estudo devem ser interpretados com cautela, já que estudos futuros devem desenvolver programas de intervenção, nos quais tanto a carga interna quanto externa das sessões de treinamento dos jovens jogadores de futebol possa ser controlada.
Por outro lado, Nes et al. (2013) examinaram o VO2pico alométrico ajustado pelo expoente -0,67 (ml. min.-1. kg-0,67), com o nível de atividade física em adolescentes de 13 a 18 anos e observaram uma associação positiva entre a atividade física e o VO2pico escalonado alometricamente, ou seja, conforme houve aumento do nível de atividade física, principalmente de moderada a vigorosa o VO2pico também aumentou.
O futebol de campo é uma modalidade esportiva com ações intermitentes, caracterizada por sprints de curta duração, intercalados com períodos de recuperação suficientes para permitir a recuperação completa do desempenho. A maior parte do jogo é realizada em intensidade baixa a moderada, com predomínio do metabolismo aeróbio. Além disso, devido à recuperação entre os períodos de alta intensidade este metabolismo torna-se primordial para a modalidade. (Stolen et al., 2005; Abderrahman et al., 2018).
Essas características do futebol têm influência na composição corporal e no VO2pico dos praticantes e, portanto, nos resultados do presente estudo, pois, os grupos possuem características diferentes em relação ao treinamento, no GED, o objetivo é a preparação para a competição, ou seja, desenvolver as capacidades determinantes e condicionantes do futebol, ou seja, sessões com características mais específicas do futebol como força, velocidade, resistência anaeróbia e aeróbia além da composição corporal (Slimani y Nikoladis, 2018).
Com relação ao GEE, observa-se que a proposta do desenvolvimento dentro das escolinhas de esporte, no caso do futebol, tende a orientar de atividades de formação e preparação dos jovens praticantes com o foco de desenvolver os aspectos pedagógicos, com o propósito de aumentar o conhecimento e o nível de desempenho técnico e tático (Costa, Garganta, Greco y Costa, 2010).
Com relação aos resultados de VO2pico do GED, a literatura sugere que indivíduos com maior massa gorda em relação a estatura também apresentam maior massa corporal magra para estatura (Chinali et al., 2006). Assim, o GED também apresentou alteração do VO2pico quando ajustado alometricamente, assim, a normalização dos dados usando a escala alométrica é um método eficiente para corrigir essa variável em amostras com grandes diferenças de massa corporal produzindo um valor de VO2pico mais realista (Milano et al., 2009).
Portanto, após a utilização do ajuste proporcionado pela alometria os resultados apontaram para um melhor desempenho do GAF em relação ao GEE e GED o que pode ser explicado pelo maior tamanho do tecido corporal obtido neste grupo, ou seja, pelo fato do tecido que é o maior consumidor de energia (i. e. musculo esquelético que compõe a massa livre de gordura) durante o exercício relativo à massa corporal (Rowland, 2008) ser um dos componentes que influenciam na determinação do expoente alométrico.
Algumas limitações devem ser reconhecidas neste estudo, por exemplo, não foi possível controlar o estado de maturação da amostra estudada, além disso, o estudo transversal realizado não permite inferir relações de causa e efeito, portanto, é necessário que estudos futuros desenvolvam estudos longitudinais e/ou experimentais. Apesar do acima exposto, ao menos este estudo fornece informações elementares para treinadores e pesquisadores, destacando o controle alométrico entre adolescentes.
5. Conclusão
Conclui-se que para se avaliar o VO2pico em adolescentes é necessário levar-se em conta, não só o tipo de treinamento utilizado (volume e intensidade), mas também o tamanho corporal, principalmente nas fases de crescimento, onde rápidas alterações ocorrem no tamanho (e. g. estatura e peso) e a escala alométrica é uma ferramenta de fácil utilização para amenizar as interferências de outros procedimentos matemáticos comumente adotados.