Introdugao
Substancias químicas empregadas na indústria, agricultura e medicina (ou seus metabolitos) po-dem, durante o processo de fabricagao, uso, ou descarte, resultar na eliminagao de rejeitos para o meio ambiente, com potenciais consequéncias toxicas para a biota e os seres humanos. Essas substancias ocorrem em descargas de diferentes tipos, incluindo esgoto, escoamento de águas pluviais, descargas industriais e descargas rurais (Omotola et al. 2022).
Atualmente o termo contaminante emergente tem se destacado, gragas a seu potencial tóxico e capacidade de estar presente no solo, água e ar. Apesar do risco que apresentam ao ecossistema, a maior parte desses contaminantes nao sao regulados pela legislagao (Montagner et al. 2017). Os fármacos sao específicamente criados para serem substancias biologicamente ativas, em seu princípio esses medicamentos buscam se-rem eficazes em baixas concentragoes. O alto consumo desses compostos nos últimos anos foram seguidos pela introdugao continua dessas moléculas biologicamente ativas nos ambientes naturais. Sua atividade biológica tem potencial de interferir nos processos bioquímicos e fisiológicos, podendo causar efeitos adversos e pre-judicar a saúde. A capacidade dos ingredientes farmacéuticos de serem absorvidos e de interagir com organismos vivos os torna um perigo potencial para toda biota. Atualmente os produtos farmacéuticos já sao reconhecidos como uma ameaga aos ecossistemas aquáticos (Sangion e Gramatica 2016; Mezzelani et al. 2018).
Com a chegada da pandemia de Covid-19, no-vos desafios surgiram. Dentre eles uma inces-sante busca por um tratamento, e fármacos nao comprovados cientificamente para tratamento de Covid-19 foram rapidamente adotados como potencial tratamento para esta doenga. Essa sistemática acarretou no excesso de automedi-cagao e de tratamento secundário, com graves riscos a saúde humana e ampliando os riscos sanitários e os danos ambientais relacionados ao descarte/langamento desses fármacos no ambiente (Falavigna et al. 2020).
Como consequéncia, fármacos massivamente utilizados em distintos países, incluindo o Brasil, tais como Hidroxicloroquina, Ivermectina, Paracetamol e Ibuprofeno, que estao presentes em efluentes de ETE sao langados em corpos hídricos sem o uso de tecnologias de remogao adequadas (Feng et al. 2013).
Para compreender os impactos ambientais destas substancias, os ensaios ecotoxicológicos tem grande relevancia, pois buscam garantir a re-presentatividade das consequéncias que estas substancias podem acarretar nos corpos hídricos e contribuem para estabelecer níveis guia para a protegao da biota aquática (Quadra et al. 2016; Lopes et al. 2018).
Os testes de ecotoxicidade sao instrumentos importantes para ponderar a qualidade das águas e a carga poluidora de efluentes. Esses testes consistem em ensaios laboratoriais, realizados sob perspectivas experimentais específicas e controladas, visando estabelecer a toxicidade de substancias, efluentes industriais e amostras ambientais (águas ou sedimentos), por meio da exposigao de organismos-testes a diferentes concentragoes de amostra, os efeitos tóxicos produzidos sobre esses organismos sao observados e quantificados (Omotola et al. 2022; Jacob et al. 2021).
O uso de testes ecotoxicológicos para análise da qualidade de águas e efluentes já é regulamentado oficialmente no Brasil, através da Resolugao n° 357 de 17 de margo de 2005 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA 2005). Essa resolugao aponta que toxicidade é qualquer efeito desconforme ocasionado a organismos testes, podendo ser alteragóes genéticas, imobilidade, e até letalidade.
Sendo assim, estudos de ecotoxicidade que ava-liem o potencial de bioacumulagao de fármacos e suas concentragoes no ambiente, por meio da avaliagao do seu destino e quantidade em que sao langados é fundamental para conhe-cer os riscos associados a exposigao de novos compostos que ainda nao estao contemplados nas legislagSes vigentes, permitindo antecipar e mitigar os danos para as geragSes futuras (Mon-tagner et al. 2017).
Nesse contexto, a D. magna é considerada um dos principais organismos de ensaios ecotoxicológi-cos padrao. Entretanto, é importante considerar a utilizagao de espécies autóctones, como a D. brasiliensis, em pesquisas realizadas em regiSes tropicais, pois é uma espécie adaptada as especificidades do ecossistema local e fornecem resultados realísticos (Santos et al. 2018).
A D. brasiliensis, conhecida popularmente como branchoneta, é um micro crustáceo de água doce da familia Thamnocephalidae, tipicamen-te encontrado em lagoas temporárias no bioma Caatinga e em área costeira (Santos et al. 2019). Esse organismo vive em pogas temporárias, onde os ovos sao colocados em repouso no fundo da poga. Esses ovos possibilitam a sobrevivencia da espécie na estagao de seca, e sao responsáveis pela disseminagao da mesma. Esse micro crustáceo já foi encontrado em piscinas naturais e artificiais da Caatinga do norte de Minas Gerais, ao norte do Rio Grande do Norte e também em piscinas no Gran Chaco, no centro- norte da Argentina (Barros-Alves et al. 2016).
Sendo assim, devido as recentes preocupagSes com a presenga de produtos farmacéuticos no meio ambiente em particular decorrente do consumo e utilizagao massiva de fármacos empregados no tratamento da COVID 19, o objetivo deste trabalho foi validar o organismo D. brasiliensis como organismo teste para estudos de ecoto-xidade e comparar os resultados com a espécie D. magna como organismo teste de referéncia frente a exposigao aos compostos Hidroxiclo-roquina, Ivermectina, Paracetamol e Ibuprofeno.
Materials e Métodos
Métodos de ensaio
Os testes de ecotoxidade foram realizados utilizando quatro formulagoes farmacológicas de medicagoes utilizadas corriqueiramente no tratamento da COVID-19. Solugoes aquosas destes fármacos foram preparadas por diluigao em água destilada ultra pura com auxilio de agitador magnético a partir das suas concentragoes co-merciais: hidroxicloroquina (400mg - EMS S/A, Sao Paulo, Brasil), ivermectina (6 mg - VITAME-
DIC, Goiás, Brasil), paracetamol (200mg/L - Airela, Santa Catarina, Brasil) e ibuprofeno (600mg - Prati-donaduzzi, Paraná, Brasil). Informagao adicional sobre a formulagao dos fármacos utilizados nesta pesquisa estao disponíveis em ht-tps://consultaremedios.com.br/. Posteriormente a partir da solugao padrao foram realizadas as outras diluigoes com água do cultivo com mesmos padroes dos testes, para obter as concentragoes de testagem utilizadas no experimento: Hidroxicloroquina (0,00 mg/L, 2,5 mg/L, 5,0 mg/L, 10,0 mg/L, 15,0 mg/L, 100,0 mg/L e 400,0 mg/L), ivermectina (0,00 mg/L, 0,0025 mg/L, 0,005 mg/L, 0,01 mg/L e 1,0 mg/L), paracetamol (0,00 mg/L, 1,0 mg/L, 2,5 mg/L, 5,0 mg/L, 10,0 mg/L, 15,0 mg/L) e ibuprofeno (0,00 mg/L, 1,0 mg/L, 2,5 mg/L, 5,0 mg/L, 10,0 mg/L, 15.0 mg/L, 60,0 mg/L, 100,0 mg/L, 200,0 mg/L, 300.0 mg/L e 600,0 mg/L). Para o controle de qualidade do processo, solugoes de Cloreto de potássio (KCl) (marca NEON), foram utilizadas nas concentragoes (0,0 mg/L, 10,0 mg/L, 30,0 mg/L, 50,0 mg/L, 90,0 mg/L, 110,0 mg/L, 130,0 mg/L, 160,0 mg/L, 190,0 mg/L e 210,0 mg/L).
Organismos e manutengao do cultivoO cultivo dos organismos-testes foi realizado no laboratório de ecotoxicologia do Instituto Federal de Educagao, Ciéncia e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), com a Daphnia magna de acordo com a metodologia determinada pela ABNT (2017) e com a Dendrocephalus brasiliensis baseado no método utilizado por Veiga e Vital (2002).
Os cistos de D. brasiliensis foram adquiridos da empresa Fishfood, localizada em Sao Paulo - SP. A produgao foi realizada no IFRN, campus Natal Central, localizado na cidade de Natal - RN, de acordo com a metodologia apresentado por Santos et al. (2019). Inicialmente, 5 g de cistos incubáveis foram mantidos na proporgao de 1 g/L de água em garrafas PET de 2 L. Após 24 h, os náuplios nascidos foram aclimatados em tanques de água parada com aeragao até atin-girem a formagao de ovisac. A alimentagao da D. brasiliensis consistiu em fitoplancton. As mi-croalgas foram cultivadas em condigoes de laboratório em fotobiorreatores com ar borbulhando continuamente para criar um fluxo. As trocas de água e a limpeza dos tanques foram realizadas semanalmente. Os parámetros da água foram monitorados constantemente e mantidos a 28 ± 1 ° C, pH 8 ± 0,5.
O Cultivo de D. magna foi mantido no Laboratório de Ecotoxicologia do IFRN. Uma grande popula-gao de clones mistos de D. magna foi propagada com culturas iniciáis adquiridas externamente. A populagao foi mantida em água doce com ae-ragao, preparada e regulada com temperatura 20 °C ± 2 e luz 8h:16h fotoperíodo claro/escuro. As culturas foram alimentadas diariamente com fitoplancton. Todos os procedimentos para manutengao e condugao do teste de toxicidade foram realizados seguindo adaptagao da norma NBR 13373 da ABNT (2017). Os tanques de cultivo foram limpos semanalmente, e a água de manutengao do cultivo foi renovada duas vezes por semana (Maggio et al. 2021).
Teste de ecotoxicidadeInicialmente foi realizado um estudo preliminar que envolveu levantamento dos resultados dos testes por 8 horas, sendo realizada a leitura a cada uma hora, posteriormente nas primeiras 12 horas e depois a cada 24 horas. Sendo decidido trabalhar com a leitura após 24 e 48 horas de acordo com o levantamento das informagoes, e visando a resposta observada em ambos os organismos utilizados nos testes.
Esse estudo preliminar também foi realizado para definir as concentragoes a serem utilizadas nos testes para cada composto, seja ele fármaco, ou substancia controle (KCl), ficando definido as concentragoes apresentadas anteriormente nos materiais e métodos.
A bateria de testes de ecotoxidade, foi realizada buscando a análise e validagao da D. brasiliensis, avaliando quatro fármacos (Hidroxicloroquina, Ivermectina, Paracetamol e Ibuprofeno), e a so-lugao padrao KCl como referencia. Os ensaios foram realizados em triplicata, utilizando 10 individuos em um volume de 300 ml em cada réplica nas diferentes concentragoes, além do branco para o controle, e tiveram duragao de 48 horas. O controle de qualidade foi mantido por meio do pH que ficou em média 7,5 ± 0,1; dureza 44 ± 3 mg/L CaCO3; temperatura de conforto de 28°C, suportando até 34°/36°C.
Ao fim do período de exposigao, foi realizada a contagem do número de organismos mortos a fim de se estabelecer a concentragao letal mé-dia. O CL50-48h foi calculado usando o método estatístico Trimmed Spearman-Karber (Hamilton et al. 1977), através do programa TOXSTAT 5.3. A validagao dos resultados analisados foi realizado utilizando como como substancia de referencia cloreto de potássio.
Resultados e DiscussaoEm relagao aos fármacos testados a ivermectina, como já era esperado devido a sua característica antiparasitária, tanto para a D. magna como para a D. brasiliensis nao possibilitou o cálculo do CL50-48h, uma vez que, os organismos tiveram mortalidade superior a 50% para a menor con-centragao utilizada, de 0,0025 mg/L. Em razao das suas características a ivermectina, mostra alta complexidade ambiental, pois dificulta a avaliagao da mortalidade dos organismos testes, além de, ser um problema ecológico quando presente no ambiente, já que essa medicagao é fabricada para eliminar vermes e parasitas, o que por consequencia acarreta na mortalidade dos crustáceos aquáticos.
Para a hidroxicloroquina e ibuprofeno a D. brasiliensis se mostrou menos sensível do que a D. magna. No caso de Ivermectina e Paracetamol a resposta ecotoxicológica observada foi com-parável (Tabela 1 e Figura 1).
Tabela 1: Descrigao dos resultados obtidos mediante ensaios de toxicidade aguda dos fármacos Ivermectina, hidroxicloroquina, ibuprofeno e paracetamol além da resposta observada utilizando a substáncia padrao KCL utilizando D. magna e D. brasiliensis. Resultados expressados como CL50-48h com limite de confianga de 95%.
Figura 1: Gráfico comparativo do efeito ecotoxicológico observado mediante ensaios realizados utilizando D. magna e D. brasiliensis. Resultados expressados como CL50 48h e erro padrao expresso em porcentagem.
Em relagao ao teste realizado com KCl, os valores obtidos foram semelhantes aos reportados na bibliografía. Por exemplo, num estudo realizado por Santos et al. (2018) utilizando D. brasiliensis foi reportado um valor de EC50-48h (95% LC) = 47,1 (25,3 - 70,7), ratificando a reprodutibilida-de experimental dos resultados e validando a D. brasiliensis como organismo teste para estudos de ecotoxidade. Além disso, os resultados obtidos com D. magna, também apresentou valores de resposta comparáveis com os reportados na bibliográfica. Por exemplo, considerando o mencionado autor, os valores reportados frente a exposigao com KCl para D. magna foram: EC-50-48h (95% LC) 100,9 (74,1-120,8), ratificando a validade experimental obtida nesta experiencia. A critério de comparagao nao foi encontrado na literatura artigos que avaliassem o CL50-48h com a D. brasiliensis para nenhum dos fármacos aqui testados, sendo assim, este é um estudo pioneiro utilizando essa espécie para avaliagao ecotoxicolo-gica desses fármacos. Vale ressaltar que, além da representatividade da regiao semiárida que essa espécie possui, comparativamente a utilizagao desta espécie é facilitada pelo baixo investimento requerido já que para cada grama de cisto sao gerados na ordem de 380.000 náuplios, e por ser um organismo filtrador é facilmente alimentada por emulsao de algas, outrossim, devido as suas maiores proporgoes em relagao a outros micros crustáceos, facilitando a realizagao e incorpo-ragao de testes de ecotoxidade em atividades de monitoramento ambiental (Lopes et al. 2007; Santos et al. 2019).
Em relagao a D. magna estudos que avaliassem o CL50-48h para hidroxicloroquina também nao foi identificado. Pesquisas que avaliam CL50-48h com a D. magna, para os fármacos ibuprofeno, parace-tamol e ivermectina, apontaram diferentes faixas de concentragao, como pode ser visto na Tabela 2. Os valores reportados no presente estudo fica-ram próximos dos apresentados por Feng et al. (2013), para o ibuprofeno e paracetamol e Garric et al. (2007) para ivermectina.
Tabela 2: Resultados ecotoxicológicos da exposigao a fármacos (ibuprofeno, paracetamol e ivermectina) em testes ecotoxicológicos descritos na literatura utilizando D. magna - CL50-48h.
Conclusao
Os residuos de compostos emergentes, mais específicamente relacionados a comercializado e consumo de fármacos, vem se tornando um problema de escala mundial nas últimas décadas. O incremento do consumo prescrito e a autome-dicapao proporcionou um impacto consequente no quantitativo desses residuos (principios ati-vos) no meio ambiente. Diante disso, estudos que avaliem o impacto destas substancias na biota aquática sao de grande importancia, principalmente quando utilizados espécies nativas representativas do cenário ambiental estudado. Baseado no que foi exposto ao longo deste artigo, foi verificado a utilidade como organismo teste para ensaios ecotoxicológicos da espécie nativa da regiao semiárida D. brasiliensis, em relapao a sua sensibilidade aos fármacos hidroxicloroquina, ivermectina, paracetamol e ibuprofeno, com boa reprodutibilidade dos resultados (validade interna dos resultados), caracteristicas essenciais para sua validado como organismos teste candida-ta para monitoramentos ambientais. Comparativamente com a D. magna a D. brasiliensis se mostrou menos sensivel o que possibilita a sua implementapao como espécie complementar para a representapao mais abrangente dos potenciais impactos possiveis sobre a biota da área estu-dada. Estudos futuros direcionados a avaliar as possiveis interapoes dos fármacos testados em concentrapSes ambientais reais sao necessárias para completar a validapao e ter uma aproximapao dos eventos acometidos em ambientes impactados por estes fármacos.
Recibido 24/01/2022
Aceptado 22/06/2022
Editores: Susana García y Laura Lanari