Introdução
Esta é a primeira parte de um artigo que se divide em dois1. Nosso objetivo foi produzir um panorama tecnográfico relativo às culturas técnicas líticas, evidenciadas em sítios arqueológicos com datações correspondentes ao Holoceno médio (HM), por volta do final da idade Northgrippian e início da idade Meghalayan da época Holocênica2 (Silva et al. 2018). Foi estabelecida uma flexibilização cronológica de 2 mil anos a mais ou a menos desde 6 mil AP, introduzindo no corpus analisado os sítios com datações entre 4 mil AP e 8 mil AP (não calibrados). Como recorte espacial foi estabelecida a porção ocidental do planalto central brasileiro e porção sul da bacia amazônica brasileira e boliviana, além de sítios do centro-norte do território paraguaio (Chaco) e da porção noroeste da Argentina. Os parâmetros para a escolha da macrorregião e da cronologia alvo são paleoambientais (Maksic et al. 2019) e geomorfológicos (Ross et al. 2019), mas também levam em consideração o contexto arqueológico caracterizado pela representativa quantidade de sítios arqueológicos datados do HM e implantados em diferentes ambientes, consubstanciando o potencial de investigação.
Este panorama foi construído a partir do levantamento e análise de informações bibliográficas relativas a estudos realizados sobre os materiais líticos desta ampla região do centro da América do Sul. Os trabalhos consultados foram produzidos e publicados desde meados do século XX até a atualidade e aplicam abordagens de cunho morfo-tipológico, tecno-morfológico, tecnológico e tecno-funcional. Orientados pela abordagem tecno- funcional, focamos nossa atenção, fundamentalmente, sobre os artefatos que apresentavam potencial incisivo (Boëda 2001). Buscamos construir um quadro sintético das particularidades e variabilidades tecnológicas relativas aos modos de produção dos artefatos, com foco nos princípios (afordância, debitagem, façonnage) e às panóplias de ferramentas, com foco em categorias tecno-funcionais.
Uma tecnografia pode ser entendida como uma descrição técnica e tecnológica densa (Sigaut 2002; Buob et al. 2019). Por meio dela é possível discernir, em um conjunto lítico, os esquemas e modalidades producionais de instrumentalização e investigar as estruturas de instrumentação (Rabardel 1995). A tecnografia visa acessar um primeiro nível de memória das culturas técnicas pretéritas contidas no registro arqueológico (schéma opératoire) (Boëda 1991). Este primeiro nível pode ser caracterizado, pela panóplia de ferramentas portadoras de potencial incisivo e pelos modos de produção a ela associados (princípios, ações técnicas, métodos). Uma tecnografia é, assim, o resultado de uma diagnose técnica e tecnológica realizada sobre uma cultura técnica particular, que permite abordar o registro arqueológico lítico desde uma compreensão estrutural de base. As tecnografias nos possibilitam avançar, em um segundo momento, na investigação das estruturas técnicas em termos de suas linhagens evolutivas, ou seja, nos estudos de tecno-gênese (Rasse e Boëda 2006; Simondon 2007; Boëda 2019).
É importante pontuar que a arqueologia é uma disciplina científica cuja história se caracteriza por uma rica tensão teórica interna (Carbonelli 2011). Essa tensão se desdobra em disputas paradigmáticas relativas à validade e pertinência de categorias de análise, de sistemas de classificações, à própria natureza do registro arqueológico, enfim, à relevância de determinados programas de pesquisa (objetos de estudo, perguntas, teorias). Nesse cenário de constantes negociações testemunhamos avanços diferenciais nos estudos voltados para as indústrias líticas. Podemos indicar de forma sucinta três abordagens aplicadas sobre esses materiais que buscam diferenciar conjuntos culturais: análises morfológicas (abordagem morfo-tipológica), análises dos processos de produção (abordagem tecnológica) e análises dos esquemas de produção, estruturas volumétricas e potenciais funcionais (abordagem tecno- funcional) (Lourdeau 2014). Cada uma dessas abordagens produziu (ou tem produzido) estilos, linguagens e níveis de análises diferentes (Hussain 2019). Nem sempre os resultados são comparáveis por apresentarem algum grau de incomensurabilidade (sensuKuhn 2003). Neste artigo tentamos lidar com essas tensões e incompatibilidades por meio da explicitação das categorias teórico- metodológicas que guiaram nossa leitura do vasto corpus consultado.
A delimitação da área de nossa pesquisa foi realizada a partir do cruzamento entre as informações sobre as áreas limítrofes relacionadas à vegetação savânica por volta de 6 mil AP obtidas por Maksic et al. (2019) e das propostas de Ross et al. (2019) sobre as Macroformas do Relevo da América do Sul. Maksic et al. (2019) simularam o clima do Holoceno para vários períodos (8 ka, 6 ka, 4 ka, 2 ka e presente) através de um modelo de circulação geral atmosférica forçado com parâmetros orbitais, concentrações de CO2 e temperatura da superfície do mar (SST). As análises de distribuições de biomas foram feitas com um modelo de vegetação potencial (PVM). De acordo com os mapas de alteração da vegetação para a América do Sul durante o HM, por volta de 6 mil AP, o domínio savânico atingiu sua maior extensão territorial. Como se trata de uma área extremamente vasta, decidimos dividi-la de modo a tornar nossa pesquisa exequível. Para tanto, consideramos o mapa das Macroformas do Relevo da América do Sul proposto por Ross e outros (2019). Por meio do mapa das Macroformas do Relevo da América do Sul pudemos cruzar as informações geológicas e geomorfológicas com as informações paleoambientais / vegetacionais para delimitar a macrorregião de interesse deste artigo (Fig. 1). O limite oriental dessa macrorregião foi estabelecido pela morfoestrutura dos Cinturões Orogenéticos do Pré-Cambriano enquanto o limite ocidental não ultrapassa sobre a morfoestrutura dos Cinturões Orogenéticos Meso-cenozóicos (Cordilheira dos Andes) (Ross et al. 2019).
Panorama espacial
Na figura 2 apresentamos oitenta e seis (86) sítios arqueológicos com datações do Holoceno Médio (HM) identificados na área de interesse da pesquisa. No decorrer da pesquisa percebemos a necessidade de um maior alargamento dos limites do recorte para permitir um panorama tecnográfico mais significativo e representativo para a macrorregião, por isso há sítios que estão fora dos limites inicialmente estabelecidos.
Os espaços que não apresentam sítios datados do HM não significam, necessariamente, inexistência de pesquisas ou ausência de sítios arqueológicos. Nessas áreas podem estar presentes sítios datados do Holoceno Recente (HR), com materiais cerâmicos e/ ou líticos e sítios datados do Holoceno Antigo (HA) em quantidades e posições diferenciadas. Também é importante assinalar a importante representatividade de sítios multicomponenciais localizados na macrorregião estabelecida, onde as ocupações do HM ocorrem em camadas balizadas por componentes datados do HA e/ou do HR. Essa diversidade temporal, reforça a longevidade com o que a área central da América do Sul vem sendo ocupada por grupos humanos ao longo da história.
A análise da distribuição espacial dos sítios, considerada em função das Macroformas do Relevo da América do Sul (Ross et al. 2019), permitiu que propuséssemos quatro Agrupamentos de sítios (A, B, C, D) (Fig. 3):
Esses Agrupamentos foram estabelecidos no cruzamento de informações relativas às diferenças gerais nas culturas técnicas em presença, às morfoestruturas sobre as quais os conjuntos de sítios se distribuem e à proximidade espacial entre os sítios que compõem cada Agrupamento. Eles estão divididos em:
A - Sítios distribuídos no nordeste do Cráton Amazônico (sul) (Pará, Brasil);
B - Sítios distribuídos nas Bacias Sedimentares Cenozoicas (Rondônia, Mato Grosso do Sul, Brasil; Bolívia, Paraguai), considerando alguns sítios no extremo ocidental do Cráton Amazônico (sul) (Rondônia, Brasil);
C - Sítios distribuídos nas Bacias Sedimentares Paleo-mesozoicas (Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais; centro-leste do Paraguai), considerando alguns sítios nas estruturas dos Cinturões Orogenéticos do Pré-Cambriano (Mato Grosso, Brasil);
D - Sítios distribuídos nos Cinturões Orogenéticos Meso-mesozoicos (Argentina) e da Plataforma da Patagônia (Argentina).
Nessa primeira parte do artigo será apresentada a tecnografia do Agrupamento A, as demais podem ser conferidas em Ramos et al. (2023, nesse volume).
Horizonte cronológico das ocupações e dos sítios
A Tabela 1 mostra a relação dos sítios analisados neste trabalho juntamente com sua datação não calibrada, a calibração com 2 sigma, o número da amostra laboratorial associada e a referência bibliográfica. É importante notar que os sítios estão agrupados de acordo com as quatro áreas geográficas/geológicas descritas acima.
Contextos paleoambientais
O panorama obtido por Maksic et al. (2019) para a vegetação durante o HM é corroborado por diversas pesquisas paleoambientais regionais realizadas no Brasil, Bolívia e Argentina.
A maioria dos estudos paleoclimáticos na Bolívia foi realizada para o altiplano boliviano (Capriles 2013), estabelecendo um cenário para o HM (6.200 a 2.300 cal AP) de ampliação da aridez nessa região (Abbot et al. 1997, 2003). No Departamento de Beni, onde se localiza os Llanos de Mojos, na Amazônia Boliviana, as reconstruções paleoecológicas (Mayle et al. 2000) sugerem um clima mais seco do que o atual durante o HA. Os dados arqueológicos obtidos por Lombardo et al. (2013) e Hermanowski et al. (2012) indicam que essa região experimentou uma fase explicitamente mais seca entre 9.000 a 3.700 cal AP. Já para os limites marginais do Chaco boliviano, ao sul do país, as pesquisas paleoclimáticas indicam que durante o final do HA e no HM ocorreu uma contribuição de forte componente eólico os quais, entre 7.800 e 5.800 AP, estiveram provavelmente ligados à propagação de incêndios naturais (May et al. 2008).
Ao discutir a arqueologia do Alto rio Madeira, Neves et al. (2020) pontuam que o regime de precipitação durante o HM (8.200 a 3.500 AP) na região apresentou uma redução/instabilidade que certamente se refletiu sobre os ecótonos florestais. Magalhães et al. (2016) utilizam os dados apresentados por Hermanowski et al. (2012) sobre o contexto amazônico, aplicando-os para pensar o cenário paleoclimático no qual a ação antrópica é investigada, desde o início do Holoceno, enquanto elemento intensificador de incêndios na Serra Sul de Carajás (Magalhães et al. 2016:209). Para a Serra de Carajás dados palinológicos indicam o predomínio de condições relativamente mais secas até pelo menos
6.500 ou 5.000 anos cal. AP (Behling 2002; Meyer et al. 2014). Ambiente mais seco foi também observado no sul do Pará (Lagoa do Saci) durante o HM (Martins 2016), favorecendo a expansão de uma vegetação mais aberta sobre as áreas florestadas o que teria possibilitado a ocorrência de incêndios durante o Holoceno Médio (Fontes et al. 2017).
Em Goiás, estudos na região do Alto curso da bacia hidrográfica do rio Meia Ponte, Goiânia, entre em ca.
8.000 a 7.000 anos AP marcam o retorno da umidade e aumento gradativo da temperatura com predomínio de elementos dos cerrados e o retorno das veredas; é também marcante o aumento de partículas de carvões, sugerindo ocorrências de queimadas de origem natural ou antrópicas, que resultaram na destruição dos palinomorfos (Rubin et al. 2011; Barberi 2001).
Sítio/Localização | Agrup. | Amostra | Datação não calibrada | Datação calibrada (95.4% Probabilidade) [ BP] | Referências bibliográficas |
---|---|---|---|---|---|
Rezende/MG | C | [GIF Yvette] | 4250 ±50 | 4960 a 4585 | Fagundes 2004; Alves 2003 |
Rezende/MG | C | [CENAUSP] | 4950±70 | 5895 a 5584 | |
Rezende/MG | C | [CENAUSP] | 5620±70 | 6599 a 6287 | |
Rezende/MG | C | [CENAUSP] | 6060±50 | 7155 a 6748 | |
Rezende/MG | C | [CENAUSP] | 6950±80 | 7939 a 7620 | |
Rezende/MG | C | [CENAUSP] | 7110±108 | 8170 a 7700 | |
Rezende/MG | C | [CENAUSP] | 7300±80 | 8323 a 7966 | |
GO-JA-01 | C | [SI-3690] | 6690±60 | 7666 a 7432 | Schmitz et al 2004 |
GO-JA-01 | C | [SI-3694] | 7420±80 | 8376 a 8035 | |
GO-JA-01 | C | [SI-3693] | 7250±95 | 8320 a 7869 | |
GO-JA-03 | C | [SI-3109] | 5720±50 | 6646 a 6400 | |
GO-JA-23 | C | [SI-5561] | 4505±55 | 5316 a 4972 | |
GO-CP-05 | C | [SI-6741] | 4100±65 | 4826 a 4438 | |
GO-CP-16 | C | [SI-6743] | 4455±115 | 5451 a 4833 | |
Rio Baía 1/MS | C | [BETA-218204] | 4320 ±50 | 5043 a 4825 | Kashimoto; Martins 2009, 2016 |
Rio Baía 1/MS | C | [BETA-218205] | 6090±60 | 7158 a 6796 | |
Lagoa do Custódio 1/MS | C | [GIF-11218] | 4206±75 | 4957 a 4452 | |
Lagoa Ariranha 2/MS | C | [GIF-11071] | 3995 ±50 | 4784 a 4292 | |
Bataguaçu 3/MS | C | [Fatec-472] | 6400±560 | 8422 a 6009 | |
Brasilândia 3/MS | C | [GIF-11233] | 3916±40 | 4512 a 4188 | |
Brasilândia 8/MS | C | [BETA-236614] | 5910±70 | 6937 a 6556 | |
Brasilândia 8/MS | C | [BETA-346198] | 4400±30 | 5214 a 4862 | |
Brasilândia 8/MS | C | [BETA-346199] | 4340±30 | 5021 a 4844 | |
Ilha Comprida10/MS | C | [GIF-12018] | 6505±60 | 7563 a 7282 | |
Ilha Comprida10/MS | C | [GIF-12019] | 6020±60 | 7152 a 6678 | |
Alto Paraná 61/MS | C | [BETA-243776] | 4800 ±50 | 5602 a 5329 | |
Alto Paraná 61/MS | C | [BETA-267059] | 5130 ±50 | 5993 a 5743 | |
Alto Paraná 61/MS | C | [BETA-267060] | 6350 ±50 | 7420 a 7164 | |
AS4/MS | C | [BETA-236682] | 4630±70 | 5578 a 5052 | |
AS4/MS | C | [BETA-233091] | 5190 ±50 | 6176 a 5757 | |
AS4/MS | C | [BETA-236679] | 6480±60 | 7505 a 7268 | |
AS4/MS | C | [BETA-236672] | 6610±60 | 7590 a 7422 | |
AS4/MS | C | [BETA-233089] | 6940±60 | 7929 a 7668 | |
AS4/MS | C | [BETA-233092] | 7130±60 | 8156 a 7793 | |
AS4/MS | C | [BETA-236683] | 7410±60 | 8366 a 8038 | |
AS4/MS | C | [BETA-236669] | 7620±70 | 8589 a 8219 | |
AS4/MS | C | [BETA-236670] | 7890±60 | 8985 a 8552 | |
AS12/MS | C | [BETA-384962] | 5600±30 | 6443 a 6304 | |
AS12AS4/MS | C | [BETA-384964] | 6110±30 | 7158 a 6888 | |
AS12AS4/MS | C | [BETA-384965] | 7180±40 | 8160 a 7874 | |
Torres dos Pilares/MS | C | [BETA-435524] | 4220±30 | 4854 a 4627 | Souza; Aguiar 2017 |
Torres dos Pilares/MS | C | [BETA-435525] | 6470±30 | 7429 a 7321 | |
Cachoeira do Pingador/MT | C | [BETA-160.507] | 5340±80 | 6287 a 5938 | Viana et al. 2006 |
Estiva II/MT | C | [BETA-143979] | 5850±40 | 6783 a 6505 | |
Estiva II/MT | C | [BETA-137029] | 6000±60 | 6987 a 6675 | |
Ferraz Egreja/MT | C | [GIF 12854] | 3925±30 | 4506 a 4246 | Vilhena Vialou 2013 |
Ferraz Egreja/MT | C | [GIF-6249] | 4610±60 | 5477 a 5051 | |
Ferraz Egreja/MT | C | [GIF 12429] | 5120±35 | 5982 a 5748 | |
Ferraz Egreja/MT | C | [GIF 12428] | 5460±40 | 6388 a 6127 | |
Abrigos Vermelhos/MT | C | [GIF-10681] | 4125±60 | 4832 a 4447 | Vilhena Vialou 2009 |
Santa Elina/MT | C | [GIF-7883] | 5080±230 | 6311 a 5320 | Vilhena Vialou, 1995 |
Santa Elina/MT | C | [GIF-7085] | 5690±70 | 6647 a 6313 | |
Santa Elina/MT | C | [GIF-7379] | 3970±60 | 4781 a 4188 | |
Santa Elina/MT | C | [GIF-9041] | 6410±60 | 7428 a 7171 | |
Santa Elina/MT | C | [GIF-7084] | 6040±70 | 7157 a 6680 | |
Santa Elina/MT | C | [GIF-9370] | 5860±60 | 6830 a 6497 | |
Santa Elina/MT | C | [GIF-9369] | 7010±70 | 7961 a 7691 | |
Santa Elina/MT | C | [GIF-9040] | 6750±230 | 8031 a 7166 | |
MT-SL-71/MT | C | [BETA-31037] | 5750±80 | 6741 a 6350 | Wüst 1990 |
MT-SL-74/MT | C | * | 5750±80 | 6741 a 6350 | |
MS1/MT | C | [Aldeia 2 18B] | 4780±30 | 5589 a 5467 | Figuti et al. 2020 |
MS1/MT | C | [AMS 3 n3w35 (Z=306)] | 5615±30 | 6481 a 6307 | |
MT-GU-01 (Abrigo do Sol)/PA | C | [Sl-3104] | 6130±65 | 7236 a 6800 | Miller, 1987 |
MS-CP-16/MS | C | [BETA-72199] | 4140±60 | 4836 a 4452 | Schmitz et al. 1998 |
MS-CP-32/MS | C | [BETA-83571] | 4460±60 | 5300 a 4878 | |
Abrigo Itaguy Guasu/Amabay | C | [MAD-5468-BIN] | 5212±646 | 7502 a 4448 | Lasheras et al., 2013 |
Cueva Abra del Toro/Catamarca | D | [AA111230] | 4582±29 | 5445 a 5057 | Carbonelli et al. 2021 |
La Sala/Tucumán | D | [LP-3586] | 4580±100 | 5577 a 4961 | Sampietro et al. 2020 |
Taller Puesto Viejo 1/Tucumán | D | [UGAMS-9096] | 7420±25 | 8328 a 8181 | Martínez et al, 2013 |
El Alto 3/Córdoba | D | [AA-68145] | 7108±74 | 8160 a 7743 | Rivero 2007 |
Encontro/RO | B | [BETA-230198] | 3910±70 | 4524 a 4102 | Caldarelli, Kipnis 2017 |
Boa Vista/RO | B | [294080] | 4470±40 | 5298 a 4966 | |
Garbin/RO | B | [260333] | 4910±100 | 5905 a 5335 | |
Garbin/RO | B | [294088] | 6050±30 | 6985 a 6795 | |
Garbin/RO | B | [260334] | 7740±30 | 8590 a 8430 | |
Ilha Santo Antônio/RO | B | [260331] | 7760±50 | 8634 a 8420 | |
Presidente Médici 2/RO | B | [382253] | 7840±30 | 8723 a 8542 | |
Sítio Teotônio/RO | B | [2005] | 5040±30 | 5901 a 5663 | Mongeló 2019 |
Sítio Teotônio//RO | B | [4611] | 5120±30 | 5934 a 5750 | |
Sítio Teotônio/RO | B | [1906] | 5720±30 | 6627 a 6407 | |
RO-PV-48/RO | B | [BETA-27013] | 6970±60 | 7932 a 7681 | Miller 1992 |
RO-PV-35/RO | B | [BETA-27658] | 6090±130 | 7265 a 6662 | |
RO-PV-47, 49, 74//RO | B | [BETA-27017] | 5210±70 | 6193 a 5754 | |
Ñuapua (Ñuagapua) | B | [BETA-194692] | 6870±50 | 7833 a 7605 | Capriles, Albarracin-Jordan 2013 |
Ñuapua (Ñuagapua) | B | [BETA-197969] | 5980±80 | 7154 a 6631 | |
SM1-Isla del Tesoro | B | [Poz-34230] | 4945±35 | 5738 a 5594 | Lombardo et al. 2013 |
SM1-Isla del Tesoro | B | [Poz-28855] | 4415±35 | 5275 a 4865 | |
SM1-Isla del Tesoro | B | [Poz-22902] | 5520±40 | 6399 a 6216 | |
SM1-Isla del Tesoro | B | [Poz-24633] | 5360±40 | 6279 a 6002 | |
SM1-Isla del Tesoro | B | [Poz-36136] | 5800±35 | 6723 a 6493 | |
Gruta do Rato/PA | A | [1 14911] | 4860±100 | 5891 a 5324 | Silveira 1994; Magalhães 2005 |
Gruta do Rato/PA | A | [GX-12509] | 6905±50 | 7915 a 7620 | |
Gruta do Rato/PA | A | [GX-12511] | 7925±45 | 8985 a 8602 | |
Boa Esperança 2/PA | A | [BETA-380852] | 5440±30 | 6297 a 6197 | Magalhães (Org.) 2016 |
NV-07/PA | A | [BETA-210852] | 5490±70 | 6443 a 6018 | Kipnis et al. 2005 |
NV-07/PA | A | [BETA-210855] | 5600±40 | 6481a 6299 | |
CKS-33/PA | A | [BETA-323129] | 5070±30 | 5906 a 5741 | Magalhães et al. 2016 |
CKS-37/PA | A | [BETA-323132] | 4360±40 | 5042 a 4847 | |
N4WS-017/PA | A | [BETA-215051] | 7680±100 | 8722 a 8209 | Kipnis et al. 2005; Magalhães (Org.) 2016 |
N4WS-012/PA | A | [BETA-215052] | 6980±70 | 7939 a 7676 | |
N4WS-012/PA | A | [BETA-215055] | 7950±60 | 8994 a 8605 | |
N4WS-012/PA | A | [BETA-230209] | 4400±70 | 5284 a 4849 | |
N4WS-012/PA | A | [BETA-230213] | 5400±60 | 6300 a 6002 | |
N4WS-012/PA | A | [BETA-230212] | 6520±70 | 7569 a 7280 | |
PA-AT-285: Mirim/PA | A | [BETA-227316] | 5020 ±50 | 5901 a 5606 | Magalhães (Org.) 2016 |
PA-AT-285: Mirim/PA | A | [BETA-217602] | 5780±60 | 6734 a 6411 | |
N5E-006/PA | A | [BETA-205579] | 4690±130 | 5707 a 4977 | Kipnis et al. 2005 |
S11D-001/PA | A | [BETA-205575] | 5750±40 | 6656 a 6445 | |
S11D-001/PA | A | [BETA-205576] | 4120±50 | 4827 a 4450 | |
SM2/PA | A | [Poz-38853] | 4950±40 | 5845 a 5591 | Lombardo et al. 2013 |
SM2/PA | A | [Poz-38850] | 4770±60 | 5595 a 5325 | |
SM2/PA | A | [Poz-38851] | 5380±40 | 6285 a 6005 | |
SM2/PA | A | [Poz-38852] | 5500±40 | 6395 a 6207 | |
SM3/PA | A | [Poz-38862] | 5140±40 | 5993 a 5750 | |
SM3/PA | A | [Poz-38866] | 7790±80 | 8975 a 8405 | |
PA-AT-337: S11D 47/48 (Capela)/PA | A | [BETA-380856] | 4390±30 | 5045 a 4862 | Magalhães (Org.), 2016; Maia 2017 |
PA-AT-337: S11D 47/48 (Capela)/PA | A | [BETA-410470] | 4610±30 | 5462 a 5146 | |
PA-AT-337: S11D 47/48 (Capela)/PA | A | [BETA-461153] | 5750±30 | 6640 a 6451 | |
PA-AT-337: S11D 47/48 (Capela)/PA | A | [BETA-461154] | 6820±30 | 7695 a 7584 | |
PA-AT-337: S11D 47/48 (Capela)/PA | A | [BETA-461147] | 4930±30 | 5720 a 5594 | |
PA-AT-337: S11D 47/48 (Capela)/PA | A | [BETA-461148] | 5000±30 | 5892 a 5604 | |
PA-AT-337: S11D 47/48 (Capela)/PA | A | [BETA-410489] | 6370±30 | 7420 a 7171 | |
PA-AT-316: N3-063 (Ananás)/PA | A | [BETA-410442] | 7830±30 | 8718 a 8540 | Magalhães (Org.) 2016 |
PA-AT-70 Gruta DO N1/PA | A | [BETA-410438] | 4420±30 | 5271 a 4870 | |
Breu Branco 1/PA | A | [BETA-215042] | 4890 ±50 | 5740 a 5481 | Caldarelli et al. 2005 |
Breu Branco 2/PA | A | [BETA-215044] | 5960 ±50 | 6935 a 6668 | |
Santo Antônio 12/PA | A | [BETA-423119] | 5170±30 | 5998 a 5769 | Kipnis, Caldarelli 2019 |
Paquiçamba 3/PA | A | [BETA-335063] | 4670±30 | 5468 a 5319 | |
Paquiçamba 3/PA | A | [BETA-345927] | 6930±40 | 7912 a 7674 |
Estudos da região de Taquarussu (Mato Grosso do Sul) (Kramer e Stevaux 2009; Parolin et al. 2006), correlacionados aos sítios arqueológicos do Alto curso do rio Paraná e Sucuriú, por Kashimoto e Martins (2009), evidenciaram eventos climáticos particulares, no que se refere ao HM. O período teria vivenciado uma fase mais úmida, balizada entre 8.000 a 3.500 anos AP e, por volta, de 6.000 AP, teria dado início à construção da atual planície de inundação do rio Paraná (Kramer e Stevaux 2009).
Para a área de ravinas e vales no noroeste da Argentina, as informações paleoambientais referentes ao Holoceno Médio ainda são fragmentadas e escassas. No entanto, graças à articulação de várias proxies, é possível traçar um cenário provável da variabilidade climática na cronologia em estudo.
Um desses proxies é o verniz do deserto (barniz del desierto), rock coating presente no material lítico dos sítios superficiais. A pesquisa de Liu e Dorn (2004) descobriu que o verniz do deserto é formado por microestratigrafia; que também pode ser usado como um registro climático. Um aspecto fundamental para entender o valor cronológico de poder observar as microcamadas que compõem o verniz do deserto é que, como as variações climáticas registradas no verniz são regionalmente contemporâneas, elas podem ser usadas como ferramenta de datação.
As análises de VML (varnish microlamination) não apenas forneceram uma cronologia relativa aos sítios de superfície (Baied e Somonte 2013; Somonte e Baied 2013, 2017; Carbonelli e Collantes 2017), mas também foram importantes para a compreensão do paleoclima da região. A sequência de microlaminações do verniz indica que o clima do Holoceno Médio na Quebrada de Amaicha era árido, embora interrompido por eventos úmidos (Somonte e Baied 2013). No período de 7.300 a 300 anos AP, ocorreram 7 eventos úmidos e frios, separados por sua vez por oito eventos secos, que dão o quadro geral das características do Holoceno (Somonte e Baied 2013)3.
Quanto à região conhecida como Sierras de Córdoba, onde está localizado o sítio El Alto 3, a informação paleoclimática sugere que após o início do Holoceno com clima frio e seco teria ocorrido, por volta de 6.000 BP, uma melhora no clima (Rivera 2007a). A partir dessa cronologia, teriam ocorrido condições de umidade subtropical (Sanabria e Arguello 2003) cuja consequência teria sido o aparecimento da floresta serrana como piso vegetacional e o isolamento (nas áreas de altitude) de espécies animais e vegetais.
O holoceno médio no contexto das pesquisas arqueológicas na região central da américa do sul
No Brasil os estudos focados sobre contextos culturais específicos para o HM são escassos, assim como as obras voltadas à construção de sínteses para esse período. Em geral, essas compreendem panoramas ocupacionais do HA e, algumas vezes, da transição HA/HM (Araujo et al. 2005/2006, Bueno e Dias 2015, Bueno e Isnardis 2018). Na maior parte das obras, a ocupação humana datada do HM é tratada desde o ponto de vista da variação entre ocupações mais antigas (HA) e/ou mais recentes (HR). Nessa situação distinguem-se uma produção bibliográfica representativa das quais pontuamos aquelas relativas aos sítios localizados na macrorregião em estudo. Elas são originárias de produções acadêmicas e de arqueologia preventiva, nem sempre publicadas, destacamos obras de Miller (1992), Schmitz et al. (1998, 2004), Fagundes(2004) Caldarelli et al. (2005), Mello (2005), Oliveira(2007), Vilhena Vialou (2009), Pereira (2009), Lima (2013), Souza (2014), Ramos (2016), Kashimoto e Martin (2016), Maya (2017), Kpinis e Caldarelli (2019), Mongeló (2019), Costa, (2019), Magalhães 2016). Distingue-se ainda, um contingente significativo de estudos direcionados a conjuntos líticos do HM presentes em outras regiões do Brasil: Silva-Méndes (2007), Mendes (2014), Lucas (2015, 2020), Souza (2016), Silva (2017), Da Costa (2017), Correa (2017), Oliveira Org. (2019), entre outros.
No que diz respeito às Terras Baixas do conhecido Gran Chaco Sul-americano, as informações sobre o HM são escassas, remetendo-se a prospecções e coletas de superfície realizadas em meados do século XX. Como exemplo, podemos citar o trabalho de Gómez (1975) nas Sierras de Guasayán (Santiago del Estero) que registra nas zonas planas ao pé das colinas, entre os túmulos, oito pontas lanceoladas que ele compara com os pontos Ayampitín. Essa referência é importante porque marca um procedimento contínuo na pesquisa: comparar materiais e sítios com sequências culturais de outras regiões, preferencialmente do noroeste da Argentina (Taboada 2019). Dessa forma, Gramajo de Martínez Moreno (1978) relaciona os materiais encontrados por ela nas serras Ambargasta e Sumampa com as tradições Ampajango e Ayampitín. A ausência de datação por radiocarbono dessas coleções, tem impedido a devida contextualização do HM para as zonas baixas do Gran Chaco Sul-americano.
Devemos salientar que o estado atual do conhecimento sobre as ocupações do HM das Terras Baixas ou do Gran Chaco Sul-americano, e parte dos vales mesotermais do noroeste da Argentina, contrasta com a grande quantidade de informações produzidas e sistematizadas, com sequências cronológicas conhecidas para a Patagônia, os Andes áridos centro-ocidentais, as zonas altas das regiões montanhosas (Puna), as Serranias e a zona interserrana dos Pampas úmidos de Buenos Aires (Aschero 2000).
Ao que concerne à arqueologia na Bolívia, historicamente o interesse se voltou para a região das terras altas e dos vales inter-Andinos em função da monumentalidade de seus sítios e do grande interesse sobre a formação política do estado de Tiwanaku (Capriles e Albarracin- Jordan 2013). A região setentrional do altiplano boliviano é a mais pesquisada, principalmente os arredores do Lago Titicaca (Stanish e Bauer 2004; Aldenderfer 2008). Segundo Capriles e Albarracin-Jordan (2013), na medida em que as terras baixas bolivianas são integradas a programas de pesquisas em cooperação com instituições internacionais, a paisagem arqueográfica boliviana tende a ser ampliada. Regiões como a dos Llanos de Mojos, vasta área localizada no departamento de Beni e com grande potencial arqueológico já reconhecido (Denevan 1964), estão recebendo cada vez mais atenção (Erickson 2000; Lombardo et al. 2013; Prümers e Betancourt 2014).
Fundamentação teórico-metodológica
As análises das publicações consultadas levaram em consideração uma reflexão tecno-funcional (Boëda 1991, 2013; Lepot 1993; Soriano 2000; Viana 2005; Lourdeau 2010; Rocca 2013; Hoguin 2013; De Weyer 2020). Porém, uma vez que não tivemos acesso à maioria das coleções líticas apresentadas, nossas avaliações foram aplicadas a partir de textos descritivos, de tabelas quantitativas e de imagens (desenhos e fotos) disponíveis nas obras consultadas. Em nossa análise foram considerados, por um lado, os modos de produção em seu aspecto mais global, ou seja, aquele dos princípios, quando a partir de regras de funcionamento próprias, são produzidas estruturas volumétricas específicas (Tixier et al. 1980; Inizan et al. 1995; Boëda, 1994), os quais estavam (ou poderiam estar) incorporados/integrados às operações técnicas de produção. Por outro lado, tentamos desenvolver uma primeira aproximação das panóplias de ferramentas nos termos mais gerais de categorias tecno- funcionais4 (pensadas enquanto relações estruturais entre porções ativas5 e porções preensivas sobre as ferramentas).
De um ponto de vista tecno-funcional, entende-se que três princípios fundamentais podem ser aplicados de maneira autônoma ou em associação através da cadeia de operações técnicas para a obtenção de uma ferramenta lítica com potencial incisivo. São eles: a Debitagem, a Façonnage e a Afordância (Fig. 4). Por meio da operacionalização das ações técnicas no âmbito do tempo dos princípios, as pessoas que lascavam poderiam já obter todos os critérios técnicos buscados sobre as ferramentas. Porém, em função das diferentes estruturações de modos de produção, e levando em consideração as exigências em termos de critérios técnicos buscados sobre as ferramentas finalizadas no âmbito de uma cultura técnica particular, a obtenção de todos esses critérios poderia ocorrer em um tempo suplementar, o tempo da “confecção”. Este último sendo compreendido como ações técnicas de modificações que completavam o processo de produção (Boëda 1991, Soriano 2000).7
Na debitagem uma lasca-ferramenta ou lasca-suporte será obtida por meio da exploração de um volume útil contendo uma superfície de debitagem e um plano de percussão através dos quais será(ão) obtida(s) a(s) lasca(s) (casos I, IV, VI, VII e VIII na Fig. 4) (Boëda 2013). Variando em função dos conceitos de debitagem empregados (estruturas adicionais ou integradas - c.f. Boëda 2013) e das exigências relativas aos critérios técnicos julgados suficientes e necessários sobre a estrutura da ferramenta buscada, a lasca obtida poderia já se tratar da ferramenta finalizada (lascas-ferramenta) ou precisaria atravessar uma etapa suplementar de modificações (confecção) de modo que os critérios faltantes na(s) porção(ões) ativa(s) e/ou preensiva(s) fossem instalados (lascas-suporte). Uma lasca-ferramenta já é destacada da superfície de debitagem apresentando todos os critérios técnicos julgados suficientes e necessários para a instrumentação do artefato: ela já é uma ferramenta. As lascas-ferramenta podem ser obtidas tanto por conceitos de debitagem integrados (D, E, F) - p. ex. uma lasca tecno-tipo Levallois (Boëda 2013) - quanto por conceitos de debitagem abstratos (A-B, C) - p. ex. uma lasca tipo C-27 (Ramos, Boëda 2019) -, dependendo do nível de restrições técnicas demandadas no seio de uma cultura técnica particular.
Quando uma etapa suplementar de modificações deve ser aplicada à lasca debitada de modo a modificar uma porção particular do volume (ativa ou preensiva) ou alterar completamente a topologia do artefato (ativa e preensiva), então, entendemos que essa lasca foi obtida sem todos os critérios técnicos julgados suficientes e necessários para compor a ferramenta desejada: trata- se de uma lasca-suporte de ferramenta(s). As ações de modificações que alteram a topologia da lasca (modificações unifaciais e/ou bifaciais) são denominadas façonnage lato sensu (por não se tratar de uma modalidade de produção que empregue exclusivamente o princípio de façonnage). Desse modo, por meio da debitagem, podem ser obtidas ferramentas referentes a todas as quatro categorias tecno-funcionais (discutidas adiante), ou seja, estruturas nas quais a relação entre áreas ativas e áreas preensivas podem ser indiferenciadas, normalizadas ou padronizadas restritas e irrestritas (Fig. 5).
Por meio da façonnage, entendida enquanto princípio producional exclusivo (façonnage stricto sensu) ou princípio producional associado (façonnage lato sensu), uma ferramenta será obtida através de modelação global (ou quase global) e progressiva de um suporte inicial (lasca-suporte, bloco/seixo selecionado, fragmento, etc.) de modo a se obter uma estrutura de categoria tecno- funcional padronizada restrita (caso III na Fig. 4) ou de categoria tecno-funcional padronizada irrestrita (casos I, V e VIII na Fig. 4). Em função da cultura técnica em presença, a estrutura padronizada obtida poderá se tratar de a) um suporte façonado predeterminado para receber uma ferramenta específica (ao qual se aplica a noção de padronização restrita - Fig. 5) ou b) ser um suporte- matriz façonado predeterminado capaz de integrar uma ou várias ferramentas idênticas ou diferentes (ao qual se aplica a noção de padronização irrestrita - Fig. 5) (Boëda 2013:63). É em razão da padronização, que se reflete na iteração de topologias semelhantes em uma coleção (volumes, silhuetas, disposições das superfícies,
angulações, etc.), que os artefatos façonados8 “se dão a ver” com maior facilidade e foram objeto preferencial (senão exclusivo) das abordagens morfo-tipológicas e tecno-morfológicas durante muito tempo.
Finalmente, através da afordância9stricto sensu (princípio producional e funcional a um só tempo) uma ferramenta é produzida por meio da eleição de elementos topológicos naturalmente presentes sobre os suportes (seixos, desplacamentos, fragmentos etc.) e que serão integrados in natura no contexto da gênese instrumental enquanto critérios técnicos suficientes (caso II na Figura 4). Pode ocorrer que os volumes eleitos necessitem da instalação de alguns elementos relacionados à parte ativa (gume) e/ou à parte preensiva10, contudo, sobre a ferramenta finalizada serão visíveis diversos critérios estruturais ligados à integração dos elementos topológicos naturais (superfícies corticais ou neocorticais, faces de desplacamentos, porções abruptas ligadas à composição desses elementos cumprindo a função de “dorsos”, etc.).
Ao que concerne à panóplia de ferramentas, objetivo final de uma indústria lítica, por meio de uma reflexão a partir da teoria artesanal (Lepot 1993) desenvolvida no âmbito da abordagem tecno-funcional (Boëda 1991, 2013), podemos falar de ao menos quatro modalidades de categorias tecno-funcionais (C. T-F). Essas últimas são concebidas enquanto ordenamentos estruturais podendo variar em função das possíveis relações entre a(s) porção(ões) ativas e porção(ões) preensiva(s) (Fig. 5). Tanto UTFt quanto UTFp são elementos estruturais indispensáveis em toda e qualquer ferramenta com potenciais incisivos (Boëda 1997; 2013; Lourdeau 2010). As coleções líticas evidenciadas em um sítio arqueológico podem dar testemunho de uma (ou várias) cultura(s) técnica(s) com indícios da dominância de artefatos provenientes de apenas uma das C. T-F ou de uma composição variada de ferramentas assinaláveis a diferentes C. T-Fs. Ou seja, em uma mesma cultura técnica podem coexistir, enquanto objetivos finais da produção, tanto “pontas de projéteis” (bifaciais e/ou unifaciais) padronizadas (C. T-F “D”) quanto ferramentas produzidas sobre blocos de morfologia indiferenciada (sendo o único parâmetro constante a presença de um gume: C. T-F “A”).
Uma vez que a(s) parte(s) ativa(s) de uma ferramenta com potencial incisivo predica(m) arranjo(s) e geometria(s) constantes em função dos diedros de corte, constituídos por biseis simples ou duplos e suas combinações, podemos considerar que essa(s) parte(s) será(ão) identificada(s) por meio da recorrência desses critérios técnicos universais (De Weyer 2020). É no que concerne à relação entre parte(s) ativa(s) e preensiva(s) que encontramos um rico gradiente de manifestações tecno- culturais. As indústrias líticas que produziram ferramentas com porções preensivas indiferenciadas (caso A na Fig. 5) são extremamente desafiadoras à percepção arqueológica, geralmente só podendo ser identificadas mediante intenso estudo tafonômico para diferenciar as quebras naturais, recorrentes em um determinado contexto geomorfológico, das fraturas intencionais humanas características de uma coleção arqueológica (Ramos e Boëda 2019). Poucos estudos morfo-tipológico ou tecno-morfológicos se interessam por essa C. T-F de ferramentas.
As indústrias líticas que produziram ferramentas relativas à C. T-F que vincula uma variedade de parte(s) ativa(s) (gume-s) com áreas preensivas normalizadas11 (caso B na Fig. 5) são, provavelmente, as mais recorrentes nas culturas arqueológicas. Entendemos a normalização como a gradativa incorporação de determinações topológicas (critérios julgados suficientes e necessários no seio de uma cultura técnica lítica particular) através da instrumentalização (processo de produção) tendo em vista parâmetros estruturais específicos para a instrumentação (processos de funcionalização) (Boëda, 2013). Os critérios técnicos são múltiplos e podem ser obtidos através de modalidades de produção diferentes ou homólogas. Essa C. T-F é realmente um campo repleto de intensidades.
Finalmente, as indústrias líticas que produziram ferramentas relativas à C. T-F que vincula uma variedade da(s) parte(s) ativa(s) (gume-s) com áreas preensivas padronizadas são, muito certamente, aquelas que mais receberam atenção por parte dos pesquisadores alinhados com abordagens morfo-tipológicas e tecno-morfológicas. São comumente denominadas “indústrias formais”. Entendemos a padronização como uma especialização tecno-funcional12 desenvolvida no seio de uma cultura técnica normalizada. Os artefatos padronizados podem aparecer em dois casos: a) relação irrestrita entre porção ativa e porção preensiva - (caso C na Fig. 5) ou seja, um suporte-matriz com silhuetas e volumes padronizados que pode ser obtido através de diferentes modos de produção (com pendor à estandardização); sobre esse suporte-matriz padronizado poderão ser instaladas diferentes porções transformativas (p.ex. “limace” com mais de uma área ativa, ou uma lasca tecno-tipo ponta “Levallois” retocada [Boëda 2013:42]); b) relação restrita entre porção ativa e porção preensiva - (caso D na Fig. 5) ou seja, a globalidade do artefato é obtido por meio de modos de produção (com pendor à estandardização) sendo que a uma estrutura preensiva padronizada corresponderá uma única unidade transformativa particular (daí a restrição) (p. ex. “ponta de projétil” sobre artefato convergente façonado bifacialmente, ou uma lâmina F2 (Boëda 2013:145).
Assim, enquanto os termos normalização e padronização são aplicados para pensarmos as relações mais ou menos restritas entre as porções ativas e preensivas das ferramentas no âmbito da estruturação dos artefatos, o termo “estandardização”, nesse esquema, fica reservado para falarmos sobre a maior ou menor sistematização nos modos de produção (Boëda 1991).
Tecnografias Líticas para o Agrupamento A
A apresentação dos resultados será feita seguindo a proposta de divisão dos sítios ordenados em Agrupamentos A, B, C e D. Apresentaremos nessa primeira parte do artigo os sítios relativos ao Agrupamento A. Os sítios integrantes desse Agrupamento estão em posição mais nordeste dentro (e no entorno) da macrorregião estabelecida (Fig. 6). A discussão dos dados segue desde os sítios mais setentrionais até os mais meridionais.
Uma tecnografia de sítios datados do Holoceno médio para o Agrupamento A
Sítios no Cráton Amazônico - Estado do Pará (Brasil) Kipnis e Caldarelli (2019) relatam para o sudeste da planície amazônica, no Rio Xingu (PA), a identificação de sítios localizados no limite norte de nossa área de interesse. Alguns dentre eles puderam ser datados (C14) e forneceram idades do HM e do HA: Santo Antônio 12 e Paquiçamaba 3 (Kipnis e Caldarelli 2019). Ainda que não tenha sido datado, o sítio Palhal 2, localizado em terraço fluvial e planície de inundação periodicamente alagada, forneceu um componente pré-cerâmico pleno. Os materiais evidenciados nos sítios dessa região possibilitaram a identificação de modalidades de realização producional regidas pela façonagem (provavelmente stricto sensu), com vistas à obtenção de ferramentas ou suportes de ferramentas (categorias tecno-funcionais C e/ou D). Também são evidentes elementos técnicos relativos ao princípio de debitagem. Contudo, os dados apresentados (Kipnis, Caldarelli, 2019) são parciais e não fornecem subsídios para investigarmos se os objetivos da debitagem eram lascas-ferramentas ou lascas-suporte.
Ao que concerne ao componente lítico façonado exumado em horizontes arqueológicos pré-cerâmicos dos sítios Palhal 2, Tracoal 2 e Paquiçamba 3, chama atenção as pontas bifaciais (Fig. 6.1.a, b, c, d, f). Não temos informações suficientes para podermos precisar se se tratam de artefatos correspondentes à C. T-F “C” ou “D”. Além desse material façonado, foram evidenciados no horizonte pré-cerâmico pequenos blocos lascados, núcleos e predominantemente lascas de sílex, silexito, quartzo, quartzito e arenito friável (Kipnis e Caldarelli 2019:180). O núcleo de calcedônia evidenciado no nível 100-110cm no sítio Palhal 2 (Fig. 6.1.e) testemunha além da presença de material exógeno (segundo os autores), uma debitagem em série algorítmica explorando critérios de convexidades distais e laterais presentes sobre as superfícies naturais dos blocos.
Para a porção mais a leste do Cráton Amazônico (sul), Caldarelli, Costa e Kern (2005) apresentaram evidências de sítios arqueológicos a céu aberto localizados no município de Breu Branco, nas proximidades do rio Tocantins. Esses sítios, num total de seis (6) se encontram na unidade da paisagem definida como Superfícies Tabulares. Apenas os sítios BB 1 e BB 2, que distam 2 km um do outro, foram escavados e datados, fornecendo idades relativas ao HM e ao HA. O sítio BB 1 está localizado a aproximadamente 4 km do rio Tocantins, em topo de platô apresentando uma ocupação ceramista de baixa densidade e uma ocupação pré-cerâmica mais espessa e extensa. Segundo Caldarelli et al. (2005:98) as matérias- primas são predominantemente obtidas em áreas com concentrações de seixos de quartzo nas proximidades do sítio. Da coleção de peças líticas recuperadas, mais de 2/3 tiveram como suporte esses seixos. Também foi reportada a exploração de sílex. O sítio BB 2, igualmente em topo de platô, apresentou um componente cerâmico e um pré-cerâmico. Nele os seixos de quartzo foram semelhantemente utilizados como suportes preferenciais para os artefatos líticos (Fig. 6.2.a, c) (Oliveira 2007). Da coleção de peças líticas recuperadas, mais de 3/4 têm o quartzo (seixo) como suporte. Uma baixa porcentagem testemunha a utilização de sílex. As demais peças provêm de rochas diversas (Caldarelli et al. 2005:100).
A partir dos dados fornecidos pelas autoras (Caldarelli et al. 2005), percebe-se que o princípio da afordância é dominante nessa indústria, porém, não podemos precisar as C. T-F relacionadas às modalidades de realização regidas por esse princípio. Uma debitagem quantitativamente pouco expressiva também foi identificada através da produção de prováveis lascas-suporte (Fig. 6.2.b) (Oliveira 2007). A maioria das lascas analisadas indica ser decorrentes do trabalho de modificação dos seixos, não sendo posteriormente retocadas. Segundo Caldarelli et al. (2005) a técnica unipolar de lascamento foi dominante, ainda que a debitagem bipolar sobre bigorna tenha sido atestada pela presença de uma pequena porcentagem de materiais. Os delineamentos dos gumes dos artefatos considerados enquanto ferramentas são predominantemente côncavos, seguidos por gumes retilíneos e convexos13.
A região do Maciço de Carajás, no sudoeste do Pará, é palco de uma longa história de pesquisas arqueológicas ligadas às atividades de mineração (Magalhães et al. 2016, 2019). No que tange às cavidades (abrigos e cavernas), essas apresentam ótimas condições de conservação de vestígios orgânicos em pacotes arqueológicos contendo artefatos líticos e estruturas de combustão (Oliveira 2007). Como a bibliografia sobre essa região é extensa e variada, concentramo-nos sobre alguns trabalhos que se aplicaram em análises sobre coleções líticas. Assim, levantamos dados sobre os materiais evidenciados em camadas datadas do HM para os sítios da Serra Sul e Norte do Maciço de Carajás: Gruta do Gavião (Oliveira 2007; Magalhães et al. 2016), abrigo S11D-001 e cavidades NV-7 e 10 (Oliveira 2007), sítio Capela (PA-AT-337: S11D 47/48) (Maia 2017) e Abrigo 1 da Subestação (Lima 2013).
A presença de indústrias regidas pela associação entre princípios de debitagem e afordância podem ser deduzidas a partir das análises realizadas sobre os materiais evidenciados na Gruta do Gavião (Magalhães et al. 2016). Esse sítio forneceu uma ampla gama de materiais arqueológicos (líticos, faunísticos, botânicos, estruturas de combustão). Entre as peças líticas identificadas, foram descritas lascas, núcleos, detritos diversos, cristais, seixos, blocos e percutores. As matérias-primas são exógenas na maioria dos casos e se apresentam em suportes naturais (seixos), disponíveis em cursos de água em um raio de 5 km ou em depósitos primários no entorno de 40 km do sítio. As matérias-primas foram listadas como cristal de quartzo hialino e leitoso (Fig. 6.3.a, b) (Oliveira 2007), ametista, citrino, berílio, quartzito, hematita, basalto e granitos (os três últimos utilizados como “quebra coquinhos” e percutores). As ferramentas classificadas contemplam raspadores, furadores e lascas com marcas de utilização. A técnica bipolar sobre bigorna foi descrita (principalmente sobre os cristais de quartzo). As representações de algumas das peças interpretadas por Hilbert (1993) como núcleos (Fig. 6.3.c, d, e, f) (apud Oliveira 2007) nos sugerem uma organização tecno- funcional em termos da eleição de critérios naturais do corpo dos cristais de quartzo enquanto porções preensivas normalizadas, seguidas pela confecção das partes ativas (C. T-F “B”). Assim, alguns dos artefatos anteriormente interpretados enquanto “núcleos” poderiam ser, em um segundo momento, reinseridos na cadeia operatória enquanto ferramentas. Se essa hipótese for confirmada por estudos futuros, atestaríamos a presença de um componente producional regido pelo princípio da afordância.
No sítio em abrigo-sob-rocha S11D-001 os materiais líticos estão em camadas datadas do HM (Oliveira 2007). Nas cavidades NV-07 e NV-10 as matérias-primas das coleções líticas são em quartzo leitoso, seguido do quartzo hialino, do sílex e poucos elementos em quartzito, arenito silicificado, arenito, diabásio, gabro, minério de ferro e granito. Quanto aos aspectos tecnológicos producionais e tecno-funcionais, não são apresentadas informações que deem sustentação para avançarmos hipóteses14. O objetivo do autor focou sobre aspectos quantitativos e relativos à economia das matérias- primas. Lima (2013) apresenta os dados referentes ao sítio Abrigo 1 da Subestação localizado na Serra Norte de Carajás (Platô N4E). Localizado na altitude de 364 m.s.n.m, no terço médio/inferior da vertente da Serra Norte. Esse sítio forneceu datações relativas ao HM e HR. A matéria-prima preferencial foi o quartzo, principalmente em suporte natural cristal com formato hexagonal (com precedência do hialino ou citrino). Os dados apresentados pelo pesquisador sugerem a dominância do princípio producional de afordância, aplicado na integração da topologia natural dos cristais de quartzo, enquanto critérios técnicos constituintes da área preensiva (pouco mais da metade das ferramentas teriam sido obtidas por essa modalidade de realização). Ainda assim, uma debitagem unipolar para a obtenção de lascas estava associada (1/4 das ferramentas analisadas) (Fig. 6.4.c, d). Em função de suas dimensões reduzidas e da presença recorrente de bordos afilados, as lascas obtidas por meio da debitagem realizada sobre os cristais provavelmente forneciam lascas-ferramenta (C. T-F “B”) (Fig. 6.4.a, b). O autor também menciona a utilização de lascas provenientes de seixos, mas sem maiores detalhes sobre essas. Algumas poucas lascas-suporte (ou lascas-ferramentas) eram minimamente alteradas em seus gumes por séries de retoques (Lima 2013:195) e suas dimensões, em geral, não ultrapassava 3 cm de comprimento.
Ainda no contexto da Serra dos Carajás, Maia (2017) realizou uma análise da coleção evidenciada no sítio em gruta Capela (PA-AT-337: S11D 47/48). A partir dos dados apresentados pela autora, inferimos que a indústria lítica era regida por princípio de debitagem voltado à obtenção de ferramentas de categoria tecno- funcional B. As matérias-primas mais frequentes foram o quartzo (hialino e leitoso), a hematita/magnetita, o diabásio e a presença discreta de arenito e quartzito. Foi registrada a ocorrência de percussão sobre bigorna e percussão direta dura. As modalidades de realização no tempo dos princípios indicam que uma diversidade de ferramentas estava sendo obtidas a partir de uma debitagem curta, produzindo lascas de morfologias variadas que já continham os critérios técnicos suficientes para a instrumentação (funcionalização). Também são descritas ferramentas obtidas unicamente pelo princípio de Afordância: caso de oito percutores (Maia 2017:11). São reportadas ferramentas com presença de macro traços de utilização. Tratam-se de ferramentas simples, com retoques unifaciais, com exceção de uma peça, que apresenta produção bifacial. Foi obtida por retiradas alternadas sobre quartzo hialino, remetendo-nos à presença de uma modalidade de realização através do princípio de façonagem (Fig. 6.3.g). A autora considera a possibilidade do uso de percussão macia, porém, não foram identificadas lascas relacionadas à tal percussão (Maia 2017:205). Destaca-se ainda ações técnicas de recuperação no sítio Capela, através do reconhecimento de uma ferramenta unifacial sobre lasca, obtida por percussão direta em quartzo hialino e que desenvolveu o acidente Siret (Maia 2017:187). Ao menos 15 retiradas de retoques unifaciais indicam que essa lasca, mesmo acidentada, foi reinserida na cadeia operatória enquanto lasca-suporte, o que é indicativo de certa plasticidade em termos de savoir-faire para a cultura técnica em presença.
Discussão dos dados
A consideração tecnográfica dos sítios dos Agrupamentos A nos permite observar um aporte localizado nas culturas técnicas líticas relativas aos princípios da Debitagem e da Façonnage. No que se refere à Debitagem, ainda que na porção nordeste de nossa macrorregião ela se apresente preponderante, isso não significa que tenha sido homogênea. A Debitagem nos sítios do Agrupamento A teria ocorrido a partir de exploração unipolar e bipolar de núcleos com produção de lascas-suportes de volumes e dimensões variadas. Para esses sítios são reconhecidos conjuntos de lascas que guardam certa normalização, cuja frequência remete a uma debitagem controlada. Assim, eram obtidos critérios técnicos em diferentes intensidades de predeterminação sobre as lascas (lasca- suporte ou lasca-ferramenta). Aventamos a presença, para a região da Serra dos Carajás (Pará), de métodos realizados no âmbito de conceitos de debitagem C e/ou (Boëda, 2013).
Inserido nesse espectro de diversidade na órbita da debitagem, acentuamos que, a partir da noção de cadeias operatórias ramificadas (Bourguignon et al. 2004), foi reconhecida para o Agrupamento A a reintrodução de núcleos, esgotados ou não, enquanto suportes de ferramentas, apresentando confecção de gumes ou marcas de utilização. Inferimos essa situação de recuperação em cadeias ramificadas ocorrendo sobre os pequenos núcleos de quartzo presentes no sítio Gruta do Gavião (Oliveira 2007) e Abrigo 1 da Subestação (Lima 2013). Nesses, a topologia natural dos cristais poderia ter sido selecionada como critério técnico para compor a área preensiva da ferramenta. Sobre o princípio da afordância, registramos de forma pontual, mas marcante, a afordância stricto sensu (relacionada ao exemplo II da figura 4), presente na região leste do Pará (Caldarelli et al. 2005). Reconhecemos o princípio da Façonnage sob diferentes modos de produção. Uma façonnage stricto sensu, objetivando a modelagem de volumes bifaciais em ponta (provavelmente de C. T-F “D”), também está presente em sítios do Agrupamento A, próximos ao rio Xingu (Kipnis e Caldarelli 2019).
No que diz respeito à gestão de matéria-prima, ela teria sido aprovisionada principalmente a partir da exploração de fontes locais, ou nas proximidades dos sítios. Entre os sítios do Agrupamento A, o quartzo aparece como matéria-prima preferencial, seja na forma de cristal ou na forma de seixos. Para os sítios da região do rio Xingu foi levantada a possibilidade (Kipnis e Caldarelli 2019) de que o sílex seja exógeno, proveniente de localidade ainda não identificada. Porém, mais pesquisas serão necessárias para confirmar essa hipótese.
Considerações finais
A primeira parte desse artigo avança na proposta de construção do panorama tecnográfico para a região central da América do Sul apresentando o nordeste da macrorregião em estudo. É importante ressaltar que os espaços sem presença de sítios datados de nosso período de interesse no HM (entre 4 mil e 8 mil AP não calibrados) devem ser encarados com cautela pois, podem estar refletindo mais a carência de pesquisas do que a ausência de ocupações. Por outro lado, esses espaços “vazios” contrastam com os contextos arqueológicos quando considerados na cronologia do HR. Destacamos, dentre outras, as pesquisas realizadas por Heckenberger (2005) ao longo das bacias dos rios Tapajós e Xingu, assim como dos rios Teles Pires e seus afluentes onde, pesquisas em licenciamento ambiental, conforme Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do IPHAN (Brasil), desvelam uma profusão de sítios arqueológicos nessas regiões.
Entendemos também que ao colaborar com a proposição de tecnografias para o HM a partir de conjuntos líticos sul-americanos, contribuímos tanto para evidenciar a diversidade e a alteridade nos termos das culturas técnicas praticadas pelos diferentes grupos humanos do passado, quanto para fomentar as condições de futuras pesquisas tecno-genéticas (Boëda, 2013) que visam reconhecer as linhagens evolutivas tanto de estruturas de produção quanto de estruturas artefatuais.
Finalizamos esta primeira parte do artigo indicando que a integração dos dados relativos aos outros três Agrupamentos (B, C, D) identificados em nossa macrorregião de pesquisa será apresentada na segunda parte do artigo (Ramos et al. 2021 nesse volume). A síntese final, a qual, de fato, é um convite à continuidade das pesquisas, também será desenvolvida na segunda parte.