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Cuyo

versión On-line ISSN 1853-3175

Cuyo-anu. filos. argent. am. vol.37 no.1 Mendoza jun. 2020  Epub 16-Dic-2020

 

Dossier: filosofía, cultura y comunicación en Vilém Flusser

Um mapa da comunicologia. Os fundamentos do estudo da comunicação humana segundo Vilém Flusser

Un mapa de la comunicología. Los fundamentos del estudio de la comunicación humana según Vilém Flusser

A communicology map. The foundations of the study of human communication according to Vilém Flusser

Alex Florian Heilmair1 

1Doutor e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, bacharel e especialista em Design Gráfico pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Diretor de projetos do Arquivo Vilém Flusser São Paulo e Diretor de comunicação do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia - CISC (CNPq). Desenvolve pesquisas voltadas principalmente aos temas: comunicação, teoria da imagem, teoria da mídia, semiótica da cultura e design. Contato: alex_f_h@yahoo.com

Resumo

O filósofo tcheco brasileiro Vilém Flusser dedicou mais de 30 anos de sua vida ao estudo da comunicação humana, chamada por ele de comunicologia. Flusser propôs uma teoria que considerasse o caráter existencial, antropológico e histórico como aspecto central de toda comunicação. Para isso, procurou alinhar a organização social e cultural à teoria comunicológica, definindo esta como o estudo de como o homem processa, armazena e transmite informações adquiridas culturalmente. Neste artigo pretendemos apresentar um mapeamento dos fundamentos - conceitos e métodos - utilizados no estudo comunicológico considerados dois momentos distintos da obra do autor: o primeiro, abrangendo as reflexões da juventude, sintetizadas nos anos 1970 durante o período em que viveu no Brasil; o segundo, abrangendo as reflexões maduras dos anos 1980 e 1990 enquanto viveu na Europa.

Palavras-chave: Comunicologia; Teoria da Comunicação; Cultura; Vilém Flusser

Resumen

El filósofo brasileño checo Vilém Flusser dedicó más de 30 años de su vida al estudio de la comunicación humana, llamada por él como comunicología. Flusser propuso una teoría que consideraba el carácter existencial, antropológico e histórico como aspecto central de toda comunicación. Para ello, buscó alinear la organización social y cultural con la teoría de la comunicación, definiéndola como el estudio de cómo el hombre procesa, almacena y transmite la información culturalmente adquirida. En este artículo pretendemos presentar un mapeado de los fundamentos -conceptos y métodos- utilizados en el estudio comunicacional considerando dos momentos distintos de la obra del autor: el primero, que abarca las reflexiones de la juventud, sintetizadas en los años setenta durante el período en que vivió en Brasil; el segundo, que abarca las reflexiones maduras de los años ochenta y noventa mientras vivió en Europa.

Palabras clave: Comunicología; Teoría de la comunicación; Cultura; Vilém Flusser

Abstract

The Brazilian-Czech philosopher Vilém Flusser dedicated more than 30 years of his life to the study of human communication, called by him as “communicology”. Flusser proposed a theory that considered the existential, anthropological and historical character as a central aspect of all communication. To this end, he sought to align social and cultural organization with communication theory, defining it as the study of how man processes, stores and transmits culturally acquired information. This paper intends to present a mapping of the foundations used in the communicational study (concepts and methods). For this, there will be considered two different moments of the author's work: the first, which covers the reflections of youth, synthesized in the 1970s while he lived in Brazil; the second, which covers the mature reflections of the 1980s and 1990s while he lived in Europe.

Keywords: Communicology; Communication theory; Culture; Vilém Flusser

Neste artigo esboçaremos o que o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser propõe com a comunicologia, apresentando os principais conceitos dessa teoria, bem como os métodos utilizados nas análises da comunicação humana e da cultura. A intenção é mostrar os múltiplos pontos de vista com os quais Flusser procurava abordar os seus temas, tentando captar a partir deles o fascinante movimento de seu pensamento. Como um fotógrafo, pulando de cena em cena, Flusser pensou o fenômeno da comunicação humana como um jogo, cujos leitores, que a partir de um dado repertório conceitual e um conjunto de regras estabelecidas logo de início, são lançados em um pensamento lúdico, livre e especulativo, capaz de combinar, de modos inesperados, ideias aparentemente desconexas, tendo como efeito final a exposição da estratégias culturais que permitem superar o abismo e a falta de sentido que permeia a existência do homem. Para que possamos encontrar orientação em tal pensamento dinâmico, é importante que também iniciemos um jogo com o filósofo que, se bem sucedido, será fiel às suas intenções e permitirá apresentar os desafios dos estudos da comunicação na perspectiva da comunicologia.

O tema central da comunicologia, segundo Flusser (2009, p. 26) , gira em torno do estudo da comunicação humana e seu propósito é compreender como o homem armazena, processa e transmite informações. Neste contexto, a comunicação é interpretada principalmente enquanto processo artificial com o objetivo de tornar a sobrevivência possível e a existência, suportável. A aparente simplicidade de tal preposição não deve enganar, pois suas implicações têm complexos desdobramentos teóricos para os estudos da comunicação e da cultura.

A fenomenologia e a filosofia existencial são fundamentais para compreendermos grande parte dos problemas propostos pela abordagem comunicológica de Flusser. Dentre as diversas correntes da fenomenologia, entendida aqui como o ensino ou a ciência das aparências, Flusser adotou assumidamente o método fenomenológico1 de Husserl e o explica da seguinte maneira:

Husserl quer dizer que todo fenômeno, toda aparência, é cercada por uma infinidade de pontos de vista. Posso observar essa folha de papel de inúmeros pontos de vista mas apenas compreendo o fenômeno quando o maior número deles foi tomado. Não é, portanto, quando eu analiso a folha de papel, ou o processo pelo qual o papel foi parar na mesa, mas quando deixo tudo isso de lado (auklammere). Isto ele chama de redução fenomenológica; me concentrar no fenômeno, como ele diz, deixar a coisa vir as palavras, e então observá-lo de todos os pontos de vista possíveis. Aprofundo o meu conhecimento do fenômeno pelo saltar de ponto em ponto de vista. Este é um importante aspecto da fenomenologia (Flusser, 1991, Menschliche Kommunikation II 1b04).

Já da filosofia existencial - abordagem filosófica que alcançou o seu auge na década de 1920 na Alemanha e mais tarde nos anos 1940 e 1950 na França -, Flusser adota, principalmente, o conceito de existência do filósofo alemão Martin Heidegger. Originalmente, a palavra “existir” deriva do latim ex-sistere e significa “estar adiante” (vorhandensein) no sentido de “avançar pra fora”, (hervortreten). No caso da filosofia existencial de Heidegger, o termo se refere ao modo (Art und Weise) específico do ser-aí (Dasein) humano (Gessmann, 2009, p. 216 ). O ser existente não simplesmente ‘é’ (ist) como outros seres vivos - plantas e animais -, mas tem consciência que está ‘aí’ (da) no mundo. De acordo com o filósofo alemão Rüdiger Safranski, o espírito da existência, do ser-aí (Dasein) de Heidegger, se resume da seguinte maneira:

Não apenas somos, mas sabemos que somos. Jamais somos algo prontamente disponível (Vorhandenes), não podemos circular em torno de nós mesmos, mas em cada ponto estamos abertos para o futuro e por isso precisamos guiar nossas vidas. Somos o que seremos (…). No tempo, com o olhar voltado para o horizonte aberto, percebemos que à nossa frente se colocam muitas incertezas e apenas uma certeza: o grande passar (das große Vorbei), a morte. Estamos com ela familiarizados, não somente porque os outros morrem, mas porque em cada momento podemos vivenciar este passar do tempo, cheio de pequenas despedidas, cheio de pequenas mortes. Temporalidade é a experiência do presente, do futuro e finalmente, da morte passageira (Safranski, 2009, pp. 174-175 , grifos do autor).

Para Flusser o conceito da existência de Heidegger é fundamental, pois a partir do momento em que o homem se dá conta da finitude de sua experiência no mundo, passa a projetar um mundo alternativo, estático, que em seu âmago carrega os sonhos de imortalidade. Enquanto ser, lançado no mundo e em queda para a morte, o homem passa a se preocupar (Sorgen), o que na filosofia de Heidegger representa o aspecto fundamental da conditio humana. A preocupação (Sorge) é para o filósofo alemão um conceito vinculado à temporalidade do ser-aí e é sinônimo de: cuidar de (Besorgen), planejar, calcular, antever (Flusser, 2009, p. 182). Flusser, leitor declarado de Heidegger, faz as seguintes observações acerca dessas considerações:

Heidegger diz que caímos para a morte. Somos lançados ao mundo e caímos na direção da morte (…). Mas pode acontecer, diz Heidegger, que de alguma forma paramos, que encontramos a nós mesmos, que de repente paramos de cair. Como isso acontece eu não sei (…). Heidegger diz que somos condicionados pela constrição, pelo medo, pela angustia (…) e de repente estoura algo e nos decidimos (ent-schließen). A partir dessa decisão abre-se em nosso entorno uma clareira no matagal, a clareira do ser (…). De repente nos damos conta que não caímos mais para a morte. Reconhecemos que a morte não é mais um problema, pois onde estou eu, a morte não está, e onde a morte está, lá não estou eu. De certo modo a morte foi superada. Não se é mais um Dasein em queda (Verfall) mas começa-se a se projetar na direção oposta da morte. Heidegger chama isso do Dasein como projeto (Dasein im Entwurf). Nesta situação, diz Heidegger, o medo muda e vira preocupação (Sorge) (…). O que Heidegger quer dizer com isso é que somente agora o pensamento é projetivo. Não vejo isso como Heidegger. Acredito que quando começamos a projetar, não somos mais sujeitos de objetos, mas projetos para objetos (…) e não mais subjugados a eles (ibíd., pp. 179-181, grifo do autor).

A importância do conceito de projeto em Flusser não pode ser ignorada, pois, além de tratar-se de um tema recorrente em sua obra e assunto principal de seu último livro incompleto, publicado postumamente, denominado Vom Subjekt zum Projekt. Menschwerdung (Do sujeito ao projeto. Hominização) (1998), serve de fundamento para a análise existencial da comunicação humana. No contexto do estudo comunicológico, a preocupação (Sorge) também é o fundamento da condição humana e aparece nos processos de comunicação entre os sujeitos, conforme veremos abaixo, como permanente manutenção de um projeto para a imortalidade. Cabe esclarecer que tanto o enfoque existencial quanto o fenomenológico permeiam a obra de Flusser e, especificamente na comunicologia, ambos convergem e apontam para a intenção antinatural2 presente no fenômeno da comunicação humana.

Mas antes de passarmos a discutir o fenômeno antinatural da comunicação humana, é preciso esclarecermos logo de início a preocupação de Flusser com relação a inserção da comunicologia dentro do arenoso campo das ciências centro-ocidentais. Será de acordo com ele a comunicologia uma ciência natural ou uma ciência do espírito? Estará ela preocupada com o lado objetivo ou o intersubjetivo dos processos de comunicação? Ao longo de sua obra, Flusser deu duas respostas diferentes, não obstante complementares a esse problema. A primeira é defendida nos primeiros escritos sobre o tema, disponíveis principalmente no livro Kommunikologie (Comunicologia) (2007a) onde a comunicologia ainda se enquadra como uma ciência humana, isto é, uma ciência preocupada exclusivamente com o caráter valorativo, típico das relações simbólicas da existência humana. A segunda, proferida no último curso de Flusser na Universidade de Bochum (Alemanha) em 1991, trata de uma teoria mais abrangente, envolvendo não somente os processos qualitativos do homem mas igualmente os quantitativos, característicos das técnicas de comunicação. Neste contexto, a disciplina não pertence mais exclusivamente ao terreno das ciências humanas, mas se desloca para uma zona cinzenta intermediária, que abre caminho para uma nova disciplina.

A comunicologia como teoria geral das humanidades

No capítulo “Was ist Kommunikation?” (“O que é comunicação?”) do livro Kommunikologie, Flusser explica que, ao menos até o final do século XIX, as ciências se dividiam em dois ramos distintos: de um lado, as ciências da natureza (Naturwissenschaften); do outro, as ciências do “espírito” (Geisteswissenschaften), também conhecidas como “humanidades”. De acordo com ele, a divisão era estabelecida pelo método investigativo empregado na análise das coisas e do homem. Ao passo que as ciências da natureza estavam preocupadas com as explicações, as ciências do “espírito” interessavam-se pelas interpretações. Flusser ilustra o problema a partir dos exemplos dos fenômenos nuvem e livro. Ao passo que a nuvem é explicada por suas causas, o livro é interpretado por seu significado. Mas o autor, que parte de um ponto de vista fenomenológico, entende essa divisão como problemática; não por dividir o conhecimento em dois, mas por partir do pressuposto que o fenômeno explicado é da mesma ordem do fenômeno interpretado visto apenas por uma perspectiva diferente (Flusser, 2007a, p. 11). O problema reside, assim, na complicada relação entre o observador (sujeito) e o fenômeno observado (objeto) e traz à tona as dificuldades e a necessidade de problematizar em primeira instância os métodos investigativos empregados para análises dos processos culturais voltados, principalmente, para o campo da comunicação.

Na investigação sobre o caráter da comunicação, Flusser explica que a perspectiva dicotômica das ciências modernas simplifica, demasiadamente, os fenômenos do mundo, pois parte do princípio que se tratam de fenômenos únicos com ligação direta à essência das coisas. O livro é, portanto, um fenômeno que aparece sempre igual, independentemente de seu contexto. Desta forma, o aparato teórico escolhido - “natural” ou do “espírito” - é responsável por descobrir as características, chegando eventualmente a sua essência. Assim “a diferença entre ciência natural e a ‘ciência do espírito’ não seria conferida pela coisa, mas pelo posicionamento do pesquisador” (Flusser, 2007b, p. 96) em relação a ela. Isto por que, segundo essa perspectiva, as mesmas coisas podem ser tanto explicadas como interpretadas. Retomando novamente os exemplos citados, a nuvem pode ser explicada de acordo com a meteorologia, mas igualmente interpretada por videntes e psicólogos. Da mesma forma, um livro pode ser interpretado por críticos literários, porém também explicado por “materialistas históricos”3. A diferença entre ambas as ciências se reduz, então, ao modo como o observador se posiciona frente ao objeto de investigação: perguntas explicativas revelam o mundo natural, enquanto as perguntas interpretativas apontam para o mundo da cultura. Entretanto, Flusser se opõe a essa simplificação. A fenomenologia propõe um mundo acessível apenas por meio de aparências e, ao se apropriar de seus métodos, o autor entende que o próprio fenômeno aparece de maneira distinta conforme os pressupostos teóricos utilizados pelo pesquisador, não tratando-se sempre do mesmo fenômeno. Flusser considera que “um fenômeno não é uma ‘coisa em si’, mas algo que se manifesta numa observação, e por isso faz pouco sentido em se falar da mesma coisa nos dois modos de observação” (ibíd.). A cada novo olhar o problema se manifesta de forma diferente. Perguntas explicativas revelam fenômenos causais, enquanto perguntas interpretativas apontam para fenômenos simbólicos.

A diferença entre os fenômenos naturais e os simbólicos é um tema recorrente na obra de Flusser, pois aponta para as diferenças entre natureza e cultura4 e tem importantes implicações para a comunicologia. Conforme o autor (Flusser, 2007a, p. 74), é chamado de símbolo o fenômeno que, por motivo de uma convenção, aponta para outro fenômeno. Assim, a principal diferença entre natureza e cultura reside no fato da cultura ser o ambiente povoado de símbolos que adquirem significado graças aos acordos firmados entre sujeitos que dela participam. Ou seja, “diante de toda obra humana surge a pergunta do motivo e da finalidade da obra. Já que é isto que distingue cultura de natureza: as obras da cultura têm significado, são decodificáveis” (Flusser, 1979, p. 10). Indiretamente, entendemos neste trecho que para criticar a cultura é preciso partir de seu aspecto teleológico, isto é, de sua finalidade estabelecida nos acordos humanos, ao passo que a natureza precisa ser explicada a partir de sua causalidade.

Inserindo esse problema na disciplina da comunicologia, a divisão metodológica entre ciência natural e ciência do espírito é de extrema importância pois indica a direção que Flusser caminha ao examinar o fenômeno da comunicação humana. Conforme observamos, a comunicação pode aparecer tanto como fenômeno natural, quanto como fenômeno cultural. Se tomado por seu caráter natural, aparece como fenômeno causal e pode ser explicada objetivamente, ao passo que se o interesse recai sobre o aspecto cultural trata-se de um fenômeno simbólico e deve ser interpretado intersubjetivamente. Do ponto de vista natural, o fenômeno da comunicação é explicado “como consequência da anatomia humana, ou como método para traduzir informações” (Flusser, 2007a, p. 92). Mas se examinado por seu aspecto cultural, a comunicação humana aparece como fenômeno teleológico que parte de um acordo entre sujeitos. Deste ponto de vista, não se trata de entender a origem, tampouco as condições materiais necessárias para que haja a troca de informações, mas sim sua finalidade. Com esse posicionamento, qualquer resposta objetiva estaria fadada ao fracasso, pois as intenções desse fenômeno só podem ser verificadas levando em conta os acordos intersubjetivos que transcendem a ordem natural. Tendo em vista que a informática e teoria da informação já estão empenhadas no estudo dos fenômenos naturais, Flusser se engaja na fundação de uma nova disciplina que considera a comunicação sob o enfoque cultural. De modo geral, neste primeiro momento, a comunicologia é enquadrada “como uma disciplina interpretativa (diferentemente, por exemplo, da ‘teoria da informação’, ou da ‘informática’)” (ibíd.), ao passo que a comunicação humana é “abordada como um fenômeno significativo e a ser interpretado” (ibíd.). A atividade simbólica, fruto dos acordos intersubjetivos é, com isso, lançada para primeiro plano e já indica um importante fundamento da comunicologia: seu interesse pelo aspecto humano da comunicação.

Três anos mais tarde, precisamente em 1977, Flusser volta a escrever sobre a comunicologia, desta vez dando ênfase ao caráter simbólico da comunicação, enquadrando a disciplina como uma “humanidade” a partir de duas negações fundamentais: a) a comunicologia não é uma disciplina que tem como propósito estudar as formas de comunicação não-simbólicas; b) a comunicologia não integra aos seus estudos as formas de comunicação não-humana. Isto é, são deixadas de lado a troca de informações entre animais e a comunicação instintiva entre os humanos. Com isso, as perguntas sobre a possível existência da comunicação simbólica nos animais - como por exemplo no balançar do rabo nos cachorros, na articulação da linguagem nos ancestrais macacos semelhante a dos homens, ou em outro nível, na dança das abelhas - ou a comunicação humana sem a utilização de símbolos - como exemplo a comunicação entre gerações através do código genético ou entre o sexo masculino e o feminino no ato sexual - são descartadas pela comunicologia, pois ambas aparecem como desvios teóricos para os quais a disciplina é incompetente: a primeira conduz ao campo da biologia e a segunda, aos problemas existentes entre as relações naturais e culturais que condicionam o homem. Ao afastar a comunicologia do terreno dos fenômenos naturais, Flusser argumenta que no primeiro caso o problema estaria em saber se animais têm “espírito” e, no segundo, até que ponto o espírito humano pode ser explicado por seu condicionamento biológico (ibíd., p. 244). Estas, por mais que sejam perguntas interessantes para outros campos do conhecimento, devem ser rejeitadas, pois partem do ponto de vista das ciências da natureza.

Ciente dos problemas da divisão das ciências do século XIX, Flusser ousa descartar o tradicional termo “espírito” em prol de outro mais apropriado ao estudo da comunicação humana. Esta manobra teórica aparece em 1974-75, quando Flusser argumenta que “a teoria da comunicação aparece não somente como uma disciplina das ciências do espírito mas, sobretudo, como uma teoria geral, pois o conceito metafísico e reificado ‘espírito’ nem sequer aparece nela, mas é substituído pelo conceito fenomenal e funcional da ‘transmissão simbólica de mensagens’” (ibíd., p. 245).

A partir dessas considerações, são traçados os limites da disciplina comunicológica, restringindo-a ao universo dos fenômenos simbólicos, presentes apenas na comunicação humana. De acordo com esse posicionamento, compete à teoria da comunicação5, ou seja, à comunicologia, um campo ainda mais vasto que aquele que pertencia a ciência do espírito, pois passa a integrar os fenômenos expressos em gestos, sinais e cores, isto é, aquilo que parte de uma intenção humana. Mas, tendo em vista os problemas metodológicos que tal posicionamento pudesse desencadear através de uma nova dispersão, Flusser reposiciona a comunicologia, procurando encontrar outro ponto de vista para examiná-la e justificar sua posição de disciplina promovida a teoria geral:

A intenção dessa teoria não consiste, portanto, em explicar as diferentes ciências do espírito a partir de uma “máthêsis” em comum, mas mostrar que todas essas disciplinas especializadas e aparentemente independentes (como a música e a administração, ou então a epistemologia e a elaboração de cartazes) permitem, do ponto de vista da comunicologia, serem compreendidas sinopticamente. A intenção não é explicar a cultura (ou o “espírito”) teoricamente, mas lançar um olhar interdisciplinar e com isso uma nova perspectiva sobre o tecido da cultura. Visto assim, se torna um pouco mais acessível o aparentemente confuso campo de competências da teoria (ibíd., p. 246).

A comunicologia é, portanto, aquela disciplina que investiga os fenômenos comunicacionais, procurando encontrar na troca simbólica de mensagens o denominador comum entre os campos de conhecimento que se entrecortam e se sobrepõem na cultura. Não se trata de estudar os conteúdos: a missão principal é observar as estruturas do fenômeno através de um ponto de vista formal. De acordo com o filósofo, é possível analisar a comunicação através de sua “mensagem” ou “estrutura”, isto é, as diferentes formas de comunicação podem ser classificadas pelo aspecto “semântico” ou “sintático”. Do ponto de vista semântico, a troca de informações pode ser dividida em três classes principais: informações “fáticas” (indicativos), “normativas” (imperativos) e “estéticas” (optativas). Flusser, no entanto, julga essa abordagem como insuficiente, já que os critérios “sintáticos”, aqueles que organizam as formas de comunicação de acordo com suas estruturas, são inicialmente mais apropriados para a comunicologia, pois permitem uma visão panorâmica sobre o fenômeno comunicacional. Somente mais tarde se torna viável investigar o “conteúdo” semântico. Mas Flusser não nega que haja uma relação íntima entre significado e estrutura, entre o aspecto “semântico” e “estrutural”, pois “a forma é determinada pelo conteúdo e vice-versa (ainda que não necessariamente ‘o meio seja a mensagem’)” (ibíd., pp. 18-19). Temos, portanto, uma descrição da abordagem formal de Flusser acerca do fenômeno da comunicação. A pergunta deve partir de “como” (wie) funcionam as trocas simbólicas e não “o que” (was) elas comunicam (Flusser, 1991, Kommunikologie als Kulturkritik I1b03). Resta explicar, com mais detalhes, como Flusser entende o compartilhamento simbólico de mensagens, a partir da perspectiva formal.

Tentando, mais uma vez, não dar margem a uma possível “naturalização”, Flusser aborda o fenômeno da comunicação humana em seu sentido mais restrito possível, evitando o mais geral, cuja análise compete tanto a ciências da natureza como as da humanidade. No sentido amplo, a comunicação se resume a transmissão de mensagens, tanto naturais quanto culturais, e se caracteriza pelo “processo no qual diferentes sistemas se acoplam” (Flusser, 2007a, p. 247), onde estão inclusas tanto as mensagens transmitidas “naturalmente” pelos genes, bem como as transmitidas artificialmente por meio de símbolos. Já no sentido restrito, o enfoque é dado apenas ao fenômeno da transmissão simbólica de mensagens, que Flusser traduz em outros termos como “mudança de forma pelo acoplamento de diferentes sistemas através de uma observação convencionada” (ibíd.). A delimitação do campo de atuação da comunicologia conduz ao que Flusser compreende, ao menos neste primeiro momento, como os três problemas centrais da comunicação humana: “informação” como sinônimo de mudança da forma; “canal” de acoplamento; e “código” de convenção. É preciso destacar que estes conceitos também são utilizados pelas teorias da informação e da informática, mas são traduzidas aqui para o campo humano não-quantificável. Temos, assim, uma oposição entre a comunicação que aparece enquanto fenômeno objetivo quantificável, dito natural, e aquele que é fruto de acordo simbólico intersubjetivo, eminentemente humano.

Notamos, acima, a estratégia de Flusser para captar aquilo que é de interesse à comunicologia. De múltiplos ponto de vista, ele tenta observar como o fenômeno da comunicação humana aparece naquilo que lhe é mais característico, selecionando cuidadosamente o que será aceito e descartado como válido para sua teoria. Neste sentido, somente a transmissão de mensagens, como definição central do que é específico ao processo de comunicação do homem, não lhe agrada por ser demasiadamente amplo, tentando, através da perspectiva da transmissão simbólica, redirecionar a discussão para aquilo que lhe aparece como mais elementar e de maior interesse: a intenção contranatural subjacente ao fenômeno humano. O homem é simultaneamente um ser natural e cultural, mas a comunicologia deve partir do caráter da negação e resistência às leis naturais para que, com isso, possa captar aquilo que nela há de singular. Somente quando o caráter contranatural ganha visibilidade é possível pensar a comunicologia como uma “teoria geral”: “Torna-se evidente que a tarefa da teoria da comunicação é investigar a comunicação humana como fenômeno natural com tendência anti-natural. Neste sentido, é possível afirmar que trata-se de uma ‘teoria geral’” (ibíd.).

É interessante notarmos que quando partimos das análises mais maduras de Flusser, encontramos um deslocamento significativo nesse posicionamento. Por mais que o fenômeno da comunicação humana continue se fundamentando em sua tendência antinatural, a tênue linha que separa as ciências naturais das humanas se dissolve, principalmente quando o interesse de Flusser não está mais em criar uma ciência para analisar a comunicação humana, mas uma ciência para analisar o homem considerando como fundamento os processos de comunicação. Apesar dessa ideia já estar implícita nos primeiros escritos, ganha maturidade e passa a ser pensada com categorias mais elaboradas e complexas posteriormente. Prevendo o possível esgotamento do problema da comunicologia mais jovem, Flusser deixa em aberto uma questão que será retomada apenas nos escritos maduros. Ao discutir, ainda no livro Kommunikologie, a diferença entre a informática - ciência que considera a comunicação como processo “natural”- e a comunicologia - ciência que considera a comunicação como fenômeno cultural, portanto, antinatural -, Flusser indica que “em algum lugar os dois horizontes vão se cruzar: o denominador comum entre ambas as perspectivas pode então ser adotado por uma terceira perspectiva” (ibíd., pp. 14-15). A terceira perspectiva à qual Flusser se refere é enigmática, não obstante encontra ressonância com as questões da fase madura de seu pensamento. Neste novo enfoque, sobre o qual ainda discorreremos abaixo, não se trata apenas de encontrar uma nova imagem para a comunicologia que escape às análises quantitativas, mas de pensar a atual imagem do homem (Menschenbild) que, frente a lacuna vazia deixada pelo fracasso do projeto humanista6, volta a ser pensada numa zona de intersecção entre natureza e cultura, matéria e forma, corpo e mente.

A comunicologia em busca da nova imagem do homem

No discurso de abertura do curso de 1991 na universidade de Bochum, na Alemanha, Flusser explica essa nova postura frente ao estudo da comunicação preocupado com a nova imagem do homem. Ao reposicionar a disciplina dentro do campo das ciências, o pensador argumenta que os processos de comunicação não se reduzem a uma ciência natural ou humana, mas são a infraestrutura de ambas.

A divisão das disciplinas científicas em duras e moles, em quantificáveis e qualificáveis, nas assim chamadas ciências da natureza e do espírito (humanidades) é suspeita por diferentes razões. É ela epistemologicamente insustentável pois parte da hipótese que fenômenos culturais e naturais são percebidos de modos distintos (os primeiros como respostas da pergunta “para que”, os segundos como pergunta de “por que”), e se ausenta em definir a cultura dentro da natureza. Mas ela é sobretudo antropologicamente insustentável pois subordina o fenômeno homem a rigidez das ciências da natureza assim como a flexibilidade das ciências da cultura. Já faz um certo tempo que defendo que o estudo da comunicação humana supera essa divisão e abre com isso um campo para uma antropologia tanto quantificadora quanto qualificadora. Em outros termos, a teoria da comunicação ocupa dentro das disciplinas científicas aquele lugar onde as ciências da natureza e da cultura se sobrepõe e do qual ambos os ramos da pesquisa deveriam a princípio irradiar. Para dizer de modo urgente: presumo que depois da queda do humanismo e do iluminismo advindo dele, a teoria da comunicação oferece o chão sobre o qual poderíamos criar uma nova imagem do homem (Menschenbild) (Flusser, 1991, p. 1 ).

Flusser aponta, aqui, um novo posicionamento metodológico que terá influência em toda análise comunicológica madura, diferenciando-a significativamente da jovem, pensada durante a década de 1970. Na jovem comunicologia, o principal problema girava em torno da busca por orientação em meio à crise da comunicação, partindo principalmente do aspecto existencial. O problema estava na mudança gerada por uma “segunda” revolução industrial, caracterizada pelo desenvolvimento tecnológico do pós-guerra. Flusser indica aquilo que outros pensadores também fizeram, ao diferenciar a primeira revolução industrial da segunda, observando a mudança a partir de uma questão técnica. Enquanto no primeiro momento foram criadas técnicas da simulação das funções musculares do homem (braços, pernas etc.), no segundo foram criadas da simulação dos nervos (olho, orelha e cérebro). Mas mesmo que para Flusser essa explicação esteja correta e necessite de investigação maior a respeito dos processos de simulação, não fere o aspecto central da mudança. Flusser explica que na primeira revolução modificou-se a relação entre o homem e suas ferramentas, criando a necessidade de uma nova antropologia capaz de dar conta do homem frente às novas coisas utilitárias que emergiam na cultura. Já a segunda tem a ver com as relações interpessoais, isto é, trata-se de uma mudança nos métodos de comunicação. Não que esteja ela no acesso às informações simultaneamente, independente de sua localização, por motivos estritamente técnicos, mas o essencial desta revolução está na mudança dos códigos da comunicação, isto é, nos acordos intersubjetivos que sistematizam símbolos por meio de regras, e a partir dos quais os “homens se entendem, para dar ao mundo e à vida nele um sentido” (Flusser, 2007a, pp. 235-236).

Notamos que os procedimentos técnicos são deixados em segundo plano dando preferência aos processos de comunicação a partir das convenções e acordos estabelecidos em torno da vida e do mundo, a saber os códigos. Deste modo, ocorre uma divisão entre os estudos da tecnologia que competem às escolas das ciências da natureza, e a comunicologia aos estudos das ciências do espírito. Explica Flusser,

(…) assim como o tecnólogo representa simultaneamente o artesão e o cientista natural (Naturwissenschaftler) aplicado depois da revolução industrial, da mesma maneira o comunicólogo começa a representar simultaneamente o artista e o cientista do espírito (Geisteswissenschaftler) aplicado depois da revolução da comunicação. Os dois juntos, o tecnólogo e o comunicólogo, personificam das esperanças e perigos para a próxima sociedade do futuro (ibíd., p. 236).

A partir destes dois polos, tecnologia e comunicação, estabelecem-se os novos contornos da cultura europeia do pós-guerra. Os meios de comunicação de massa da época - televisão, rádio, jornal - passam a ser alvo de críticas e indicam, principalmente para os pessimistas, o perigo de uma alienação generalizada da cultura. Flusser propõe como meta da comunicologia buscar um posicionamento crítico frente a esses meios de massa, através de uma disciplina capaz de dar conta da complexidade da revolução cultural em andamento. A preocupação não deve ser o aspecto tecnológico, mas a investigação dos códigos da comunicação. Conforme vimos anteriormente, símbolos são fenômenos que substituem e, simultaneamente, apontam para outros fenômenos; e os códigos são caracterizados pelo conjunto das regras que regulam os sistemas simbólicos conferindo significado e valor a eles. Por isso, é fundamental para a comunicologia enfatizar que “a importância do código para a cultura não deve ser subestimada. Cada código não dá ao mundo somente um significado específico (codifica o mundo à sua maneira), mas a estrutura dos códigos, organiza igualmente o pensamento, as sensações e vontades” (ibíd., p. 242).

A revolução cultural, diagnosticada por Flusser, é, conforme observaremos no segundo capítulo, fruto da passagem da hegemonia do código linear da escrita para as superfícies coloridas das imagens. A primeira comunicologia se coloca claramente como uma ciência humana e busca, através da mudança dos códigos, entender a crise causada pelos meios de comunicação. As imagens produzidas pelos novos meios de comunicação e a “consciência” - pensamentos, sensações e vontades - derivada delas se localizam no centro da questão. Já o problema da comunicologia madura é outro, pois trata de buscar a nova imagem do homem. Com isso, cria-se um problema de ordem antropológica. O homem por ser natureza e cultura simultaneamente não pode ser pensado apenas de modo unilateral pelas ciências humanas. A importância da comunicação na formação dessa imagem evidentemente não é deixada de lado, não obstante deve somar-se a ela também o campo duro das ciências. A comunicologia mais recente abrange assim tanto os aspectos quantitativos e objetivos das materialidades da comunicação, quanto as qualidades intersubjetivas dos acordos firmados simbolicamente. Com isso, a teoria proposta pelo Flusser maduro trafega verticalmente, de modo trans e multidisciplinar, pelos mais diversos campos da ciência, com o propósito de firmar a nova imagem do homem da atualidade.

A teoria da comunicação é fundamental por dois motivos. O primeiro é que ela trata da atual imagem do homem (Menschenbild), que substitui e eleva a antropologia. O segundo, pois é uma disciplina em que inúmeras disciplinas pregressas se sobrepõem, tanto por overlap, como também por fuzzy sets. Onde uma teoria da comunicação que rompe com as estruturas do pensamento e conhecimento passados, e que não se ajusta em nenhuma universidade, deve ser lecionada? Na matemática? Nas ciências do espírito? Nas ciências da natureza? Na antropologia? Na sociologia? Onde, já que ela se serve de todas estas disciplinas? Ela utiliza a matemática, a teoria da decisão, a teoria dos jogos, a neurofisiologia, a psicologia, a sociologia, a física, a química, de tudo… (Flusser, 1991, Menschliche Kommunikation I 1a05).

Enquanto o jovem Flusser posicionou a comunicologia como uma ciência humana, cuja análise dos processos de comunicação - armazenamento e transmissão de informações - a colocava como teoria geral das humanidades, o Flusser maduro, leva adiante esse modelo, reconhecendo mais tarde que o foco de sua atenção não estava na comunicação em si, mas na construção da imagem do homem pós-humanista, e que para isso seria necessária não apenas uma teoria geral das humanidades, preocupada com a capacidade valorativa, e portanto qualitativa, mas também com os processos quantitativos da comunicação. Com isso, a comunicologia é elevada ao status de disciplina cujas ciências duras da natureza e as moles da cultura irradiam. Se anteriormente dava ela preferência aos códigos qualitativos, incorpora posteriormente também o campo exato dos processos quantitativos. Mas é importante deixar claro que a integração dos processos quantitativos de forma alguma nega o posicionamento da primeira comunicologia. O problema central ainda permanece em entender a comunicação e o homem, sem jamais cair na objetivação e naturalização de sua essência. As teorias da informática são utilizadas, porém visando compreender o caráter intersubjetivo da cultura. Flusser discorda de seus críticos que o acusam de tentar aplicar os conhecimentos das ciências da natureza aos problemas culturais, e se defende ao dizer que “isto soa terrível, não é mesmo, assim como tecnocrático. Quer-se pensar exato com as coisas da cultura. Isto quer dizer que quer-se desvalorizar. Eu acredito que esses críticos estão enganados. O que tento, e alguns outros também, é superar as diferenças entre o exato e o inexato” (Flusser, 1991, Vor dem Stiftungsrat 02).

De acordo com essa nova abordagem o estudo comunicológico se apropria de um campo conceitual até então ignorado, a saber o universo numérico quantitativo. Wittgenstein escreveu na última frase do livro Tractatus Logico-philosophicus (2008) - obra que influenciou Flusser profundamente em seus primeiros escritos - sobre os limites do pensamento logocêntrico ao concluir que “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” (Wittgenstein, 2008, p. 281). Dentro do novo enfoque da epistemologia comunicológica, a intenção de Flusser é ir além do código da escrita, pois diz ele estar convencido do fato de “muito sobre o que não se pode falar, pode-se calcular. Algumas coisas também não se podem calcular, mas muitas. A dignidade do homem não é, como Wittgenstein diz, lutar contra as grades da gaiola da linguagem mas fugir para a mais elevada gaiola dos números” (Flusser, 1991, Kulturkritik I 2a03).

Com essa integração, a comunicologia não está mais limitada apenas ao código da escrita enquanto lugar da fala, mas tem como novo campo de atuação os processos calculáveis numéricos. Isto significa que na medida em que o problema não se restringe mais exclusivamente ao código do alfabeto, uma divisão mais clara entre as ciências modernas se torna possível. Não são elas diferentes apenas no método de problematização - explicativo ou interpretativo -, mas igualmente no uso dos códigos de comunicação. As ciências da natureza recorrem à exatidão e à precisão do código numérico, enquanto as ciências do espírito fazem uso da amplitude do alfabeto. A comunicologia, sendo uma disciplina interessada na imagem do homem dotado da capacidade de comunicação artificial, deve ser o denominador comum entre os dois campos científicos, apropriando-se de ambos os métodos.

Na comunicologia esta mudança metodológica se manifesta na crescente utilização dos métodos estatísticos na análise de fenômenos culturais. Com a crescente influência da técnica automatizada na dinâmica cultural, Flusser pensa os campos da arte, da ciência e da política a partir de critérios tanto qualitativos, quanto quantitativos, ao ponto de adequar a mathêsis da informática aos processos culturais da comunicação. Trata-se nesse caso do cálculo de probabilidade. Os números, inicialmente ignorados, se apresentam agora como alternativa mais eficiente para apreender os fenômenos da cultura informatizada. Os reflexos dessa mudança podem ser observados no emprego da máxima cartesiana, a saber do pensamento “claro e distinto”. Na primeira comunicologia, Flusser utiliza essa noção ainda vinculada indiscriminadamente ao alfabeto na “‘clareza e distinção’ das letras numa linha (Zeile)” (Flusser, 2007a, p. 93). Já na comunicologia madura, essa explicação é refinada, estabelecendo agora a distinção explícita entre os números e a escrita: “o código dos números é claro e distinto enquanto o código da língua, representado pelas letras, é ambíguo” (Flusser, 2009, p. 24). Não obstante, Flusser jamais ignorou o fato de existirem números no alfabeto, pois associou desde o início sua invenção ao contexto das trocas comerciais e não às razões religiosas. A questão é que o calcular e contar, típico das relações mercantis, não está associado nos primeiros estudos ao conceito específico dos números, mas sob a rubrica geral do alfabeto: “o código alfanumérico (…) é um código convencionado para calcular e contar, para pesar e medir” (Flusser, 2007a, p. 92). Mais tarde, essa concepção demasiadamente ampla é repensada e apresentada no artigo “Alphanumerische Gesellschaft” (2008), no qual o comunicólogo esclarece que o alfabeto é desde a sua origem um código híbrido e “sujo”. Isto é, um código alfanumérico, composto por letras e números. Neste enfoque, os números, que inicialmente estavam subordinados à lógica linear dos textos e participavam como elementos coadjuvantes sucumbindo a sua lógica, começam, a partir da modernidade, a ganhar crescente autonomia. Essa autonomia se fortalece, ainda mais, quando somada às técnicas avançadas da comunicação, cujas possibilidades de quantificação dos fenômenos culturais dão posição privilegiada a eles, e subjugam desta vez o alfabeto a sua lógica.

É importante enfatizar que, apesar da mudança de eixo ter repercutido significativamente no pensamento do comunicólogo, o aspecto nuclear de sua teoria se manteve intacto. De acordo com Flusser, o que caracteriza, efetivamente, o ser humano é a negação da sua natureza herdada, pois não se comunica apenas por métodos naturais instintivos, mas principalmente com o auxílio de artifícios adquiridos dentro da esfera da cultura. Na comunicologia, a contranaturalidade humana é observada principalmente através do acúmulo/processamento/transmissão de informações adquiridas e é analisada a partir de dois pontos de vista diferentes, porém complementares. O primeiro aponta para a negação da natureza interna, o segundo para a negação externa, isto é, um aborda a questão do ponto de vista existencial, o outro, do formal. Conforme Flusser:

Tanto do ponto de vista existencial (como tentativa de superação da morte por meio da companhia de outros), como do ponto de vista formal (como tentativa de produzir e armazenar informações), a nossa comunicação aparece como uma tentativa de negar a natureza, e isso não se refere somente à ‘natureza’ lá fora, mas também à ‘natureza’ dos homens (Flusser, 2007 a, p. 13 ).

A partir deste cenário apresentado por Flusser, a comunicação é um método eficaz de fazer com que o fluxo impiedoso da impermanência seja temporariamente interrompido por artifícios capazes de, por um lado, impedir a desintegração do mundo e, por outro, a finitude da existência. O homem enquanto ser no tempo cria artifícios externos na forma de suportes comunicacionais e internos nos sistemas simbólicos capazes de produzir, por um lado, o compartilhamento da solidão frente à morte e, por outro, o esquecimento voluntário da vida sem sentido. Vale mencionar que “a concepção flusseriana da comunicação como esquecimento da morte se liga à noção judaica de nos lembrarmos dos outros para mantê-los vivos” (Guldin, 2008, p. 81 ). Este é certamente um comentário relevante, pois o temor da morte não está na consciência da sua possibilidade no percurso do individual do ser-aí (Dasein), mas na convivência social com os outros.

Uma vez ciente que o mundo e a vida nele é absurda, o homem busca codificá-lo para dar-lhe um sentido. Sabendo que as coisas tendem naturalmente à entropia, o homem projeta as atividades simbólicas em objetos, planos, linhas e pontos, a fim de eternizar e aumentar as informações adquiridas, contrariando parcialmente o princípio da entropia. A comunicologia é neste cenário a ciência que tem a criação de sentido (Sinngebung) como problema de estudo, e seu método deve partir do ponto de vista dos acordos intersubjetivos. Assim o comunicólogo está empenhado em captar os valores e as intenções da cultura, na expectativa de elaborar a imagem do homem atual. E por estes valores estarem tanto nos objetos técnicos, como nos acordos simbólicos, sendo estes interdependentes, a comunicologia se coloca como uma teoria geral das ciências e de onde estas emanam. Como Flusser indicou na preleção de 1991: quando a separação das ciências do espírito e da natureza for superada, será possível reconhecer o mesmo potencial criativo na técnica como nos campos da arte e da política (Flusser, 1991, Vor dem Stiftungsrat 03).

Referências Bibliográficas

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1 Para uma explicação mais ampla e detalhada do método fenomenológico de Flusser, cf. Dinge und Undinge: Phänomenologische Skizzen (Carl Hansen Verlag, 1993), com atenção especial ao capítulo Schach.

2É importante destacar de antemão que os termos “antinatural”, “contranatural” e “artificial” são utilizados por Flusser como sinônimos e significam as atividades tipicamente humanas não naturais.

3O materialismo histórico indica o enfoque marxista-lenista sobre a história da filosofia, de acordo com a qual a história é um processo de desenvolvimento dialético cujo destino final deve ser direcionado a uma sociedade sem classes (Gessmann, 2009, pp. 314-315), ou seja, onde se encerra o domínio do homem sobre o homem. Flusser provavelmente utilizou esse exemplo pois os materialistas do século XX, influenciados por K. Marx e F. Engels, defendiam a explicação do espírito ou mente, através de disciplinas pertencentes às ciências naturais, como é o caso do uso da fisiologia para análise dos processos mentais (ibíd., pp. 468-469).

4Para um aprofundamento maior acerca dos conceitos de natureza e cultura em Flusser, ver Vilém Flusser, Natural:mente: vários acessos ao significado de natureza (São Paulo: Duas Cidades, 1979) e a coletânea de textos disponíveis em Vilém Flusser, Dinge und Undinge: Phänomenologische Skizzen (Carl Hansen Verlag, 1993).

5Apesar de Flusser utilizar “teoria da comunicação” como sinônimo de comunicologia, o termo se é empregado atualmente de diversas maneiras. Os comentadores de Flusser apontam para direções diferentes: Norval Baitello Jr. (2010), por exemplo, interpreta a comunicologia como uma teoria da mídia ou uma culturologia (curso realizado no programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, 2012, com o tema “Teorias culturalistas da comunicação: a culturologia de Flusser”), Frank Hartmann, como filosofia da mídia (2003; 2004) e Dieter Mersch (2006), como uma ciência da comunicação e filosofia da cultura, para citar apenas alguns exemplos.

6Flusser atribui o fim do humanismo ao período da segunda guerra mundial, principalmente após o campo de concentração em Auschwitz e a catástrofe atômica de Hiroshima (2011, Kommunikationsstrukturen II 4a01).

Recebido: 16 de Dezembro de 2019; Aceito: 30 de Abril de 2020

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