Este relato é o testemunho de um processo. Um processo que se estendeu por quatro anos de doutorado e que resultou em uma tese de teor ensaístico chamada “Notícias de uma invasão”. Um mapa noturno atravessado por experiências pessoais e composto de expedições exploratórias, de proposições, de desconstruções. Uma tentativa de cartografia mestiça1 voltada para a prospecção das pistas deixadas por uma obra e um autor entranhados na cultura argentina. Com o aporte pessoal, marcado formalmente pela escrita em primeira pessoa, durante esse processo, busquei explicitar o olhar estrangeiro, a condição de pesquisador brasileiro que se debruça sobre um objeto de estudo que pertence ao repertório cultural de outro país. Repito aqui, neste trabalho, o uso da primeira pessoa, pois ela representa, a meu ver, a proximidade com aquilo que há de primordial na construção de um conhecimento científico: os impactos que vão se sedimentando na subjetividade do sujeito pesquisador. Ao invés de alicerçar minhas hipóteses em conceitos teóricos -que comparecem, aquí e ali, mais como companheiros de viagem que como bússolas- tento contar historias como essa, fabular sobre hipóteses formuladas através da experiência e do experimento, das sensações e dos objetos, do olhar que analisa e do pensamento que sobrevoa as ruas de uma cidade latinoamericana.
Conheci Buenos Aires em 2014, em uma viagem de férias. Desde que desci no aeroporto de Ezeiza, fui tomado por uma estranha sensação de familiaridade. Por mais que buscasse o estranhamento e a surpresa, a sensação permanecia, e me acompanhou durante as duas semanas em que estive na cidade. Em meus primeiros passeios, abri mão de conhecer pontos turísticos. Caminhava sem ponto de chegada, tentando entender a lógica das ruas e, mais que isso, sentílas. Construi meu itinerário, através de mediações aleatórias: a tevê ligada em algum café ou restaurante, o jornal escolhido aleatoriamente, os anúncios, os cartazes de cinema e de teatro, os grafites, a música que alguém ouvia em um carro que passava. Também perambulei por San Telmo e pela Plaza de Mayo, que fica próxima ao hotel em que estava hospedado. Foi na Plaza que tive o primeiro encontro com El Eternauta.
Entendo esse primeiro encontro como um acaso objetivo. Formulado por André Breton em “Amor louco”, de 1937, o acaso objetivo é um “achado - quer se trate de objetos ou fragmentos de palavras sucessivas: elementos materiais e verbais potencialmente carregados de objetivos casuais, emissários do mundo exterior” (Krauss, 2001, p. 121). Para os surrealistas, interessados nas possibilidades de acesso ao inconsciente, esses emissários são capazes de transmitir seu próprio desejo ao destinatário. O acaso objetivo seria, enfim, um encontro inesperado com algo que quer ser descoberto e em que se pode reconhecer uma satisfação potencial desconhecida. Na Plaza de Mayo, sem saber por onde começar o mapeamento do espaço, me aproximei do mostruário de um vendedor ambulante. Entre colares e brincos, a imagem em um bóton capturou minha atenção: sobre um fundo azul, a imagem de um mergulhador. Pelo visor da máscara, era possível reconhecer o olhar estrábico de Néstor Kirchner. Acima da imagem os dizeres: ‘Nestor vive’ (Figura 1). Comprei o bóton e, mesmo sem saber exatamente do que se tratava, prendi na camisa.
Passeei mais um dia ou dois pelo centro da capital portenha até que, certa tarde, encontrei à venda, numa calçada, camisetas estampadas. Reconheci em uma delas a mesma máscara de mergulhador do bóton. Na camiseta, porém, o par de olhos que me olhava por trás do visor não eram os de Néstor (Figura 2). Perguntei à vendedora quem era a figura no desenho. Ela me disse que era paraguaia e que não sabia ao certo de que se tratava: “un personaje de historieta... qué sé yo...”. Comprei a camiseta, entrei no banheiro de um café e vesti. Voltei à Plaza numa quintafeira, dia da semana em que as Madres fazem sua caminhada circular. Na tarde nublada de junho, muita gente além delas se encontrava no local. Grandes grupos, com faixas e cartazes, em frente à Casa Rosada, esperavam que Cristina Kirchner se pronunciasse a respeito da suspensão do pagamento dos chamados fondos buitres2. O cenário me faz lembrar das jornadas de junho de 20133, no Brasil, e fiquei apreensivo, com medo que se instaurasse a violência policial que caracterizou as manifestações brasileiras. Senteime ao lado de uma estátua, a uma distância que julguei segura tanto com relação aos manifestantes quanto ao cerco policial. Na camisa, o bóton comprado dias antes. Fui então abordado por um homem de meia idade que levava pela mão uma menina de sete ou oito anos. O homem percebeu que eu era turista e que estava apreensivo.
Apresentou-se como professor de História e perguntou se eu sabia o que estava usando na camisa. Respondi que não, e ele se dispôs, espontânea e animadamente, a contar uma parte da história política da Argentina que, supostamente, incluiria o bóton, Néstor Kirchner e o enigmático mergulhador. A explanação foi de Perón a Cristina Kirchner, passando pela mais recente ditadura militar, por Alfonsín, por Menem -por quem demonstrou especial desprez -, por Duhalde e outras figuras da política local. Fez questão de enfatizar, quando chegou à era Kirchner, que apesar de certo pendor à esquerda, Néstor e Cristina eram ‘buenos cristianos’. Tentei fazêlo voltar ao personagem do bóton e aos olhos estampados na camiseta. Explicou que “El personaje se llama Eternauta... así, con ojos de Néstor, es el Nestornauta”. Perguntei o que o tal Eternauta tinha a ver com o expresidente. Em meio à resposta longa e confusa, um dado concreto: o criador do Eternauta havia sido sequestrado e morto durante o regime militar da década de 1970. “Rosterreld... Oserelt... no acuerdo el nombre... era un tipo con apellido alemán”, disse, antes de voltar às questões políticas e econômicas de âmbito geral. Estava explicando algo sobre os buitres quando recebeu uma ligação. Precisava ir. Despediu-se afetuosamente. Nessa despedida, eu já tinha alguma ideia sobre quem era o personagem no bóton, de quem eram os olhos estampados na camiseta, e que havia encontrado um grande tema de pesquisa.
El Eternauta era o motivo que eu buscava, sem saber, para estar em Buenos Aires, para estar na Argentina, para me sentir na América Latina. A afirmação pode soar estranha, mas se torna compreensível para quem sabe que o Brasil, como nenhum outro país latinoame-ricano, sempre deu as costas e se manteve apartado do resto do continente. Atitude que, em certo momento, também foi a da Argentina, e se tornou insustentável quando “a ruína aproximou suas cidades das capitais da pobreza latino-americana e tirou da educação e da cultura aqueles recursos que lhe permitiam imaginar-se diferente” (Canclini, 2008, p. 11). No Brasil, porém, essa percepção, um tanto compulsória, permanece. Um breve passeio por portais de notícias, uma rápida olhada nos jornais de países próximos, dá conta da impressão dos hermanos com relação à postura brasileira, incluído o Rio Grande do Sul, estado onde nasci e que mantém divisas com a região do Prata.
Brasil es un casi continente ajeno; de espaldas a nuestro Río de la Plata, los brasileños hacen su vida y su cultura a su manera, amparados en la impunidad de su lengua. Sin embargo, a escasos kilómetros de la frontera uruguaya, una ciudad, demente y acelerada, se levanta soberbia más allá de complejos y traumas. Porto Alegre, el corazón de Rio Grande do Sul, nos mira por encima del hombro, mientras pare sus hijos (Montevideo Portal, 2008).
O distanciamento vai além da língua e dos agenciamentos culturais. E não parecer haver perspectiva ou vontade de aproximação, seja ela cultural, política ou econômica, especialmente diante da truculenta e confusa política de relações com outros países do atual governo. O presidente brasileiro eleito em 2018, assim como os atuais ministros da economia e de relações exteriores, têm mais interesse em estabelecer laços com Estados Unidos e Israel que com os países fronteiriços.
La decisión de no visitar Argentina durante la primera gira oficial como presidente electo de Brasil la supo la prensa de su futuro ministro de Economía, Paulo Guedes, quien indicó no solo que no visitaría Argentina, sino que el Mercosur “no será un prioridad” durante el mandato del líder ultraderechista. El propio Bolsonaro considera que el bloque, fundado por Brasil, Argentina, Uruguay y Paraguay, no tiene la importancia que se le da y que “está sobrevalorado” (CIABO, 2018).
O desprezo pelos vizinhos é uma das marcas institucionais no maior país da América do Sul, mas não se restringe às instâncias oficiais. Esse comportamento nacionalista e isolacionista está entranhado na subjetividade popular há muito tempo. Em 2015, por exemplo, em pesquisa capitaneada pelo Centro de Investigação e Docência em Economia do México, o Brasil foi o único país em que a maioria dos entrevistados não se definiu como latino-americana, preferindo ser tratada pelo gentílicos “brasileiro” ou “cidadão do mundo”. Os mesmos entrevistados consideraram o Brasil uma grande liderança latinoamericana.
A experiência que tive nos quatro anos em que estudei El Eternauta e a tentei me aprofundar e apropriar da cultura argentina foi marcada, durante todo o período, pela dificuldade de interlocução. Com exceção de alguns amigos e conhecidos que trabalham diretamente com quadrinhos, praticamente não encontrei leitores e pesquisadores brasileiros com quem pudesse debater o objeto da tese, as relações entre os mercados editoriais dos dois países e a circulação de produtos culturais voltados ao público de massas. Muito menos as questões ligadas à mais recente ditadura argentina, incontornáveis no âmbito do estudo de uma obra cujo circuito de significações e ressignificações passa pela simbiose entre autor, personagens e pela incorporação a um ideário político. Apontar essa ausência de interlocução não é, nem poderia ser, a afirmação de que não existem -ou existiam-, no Brasil, outros pesquisadores ou conhecedores desses temas, mas de que eles não são facilmente localizáveis. Prova disso é que uma busca pormenorizada em repositórios de teses, dissertações, monografias e artigos, em bibliotecas e sites de instituições acadêmicas do país revelaram essa ausência. O que há, de maneira geral, são artigos esparsos, a maioria de divulgação, bastante superficiais, em que são repetidos lugares comuns sobre o tema e a trajetória do autor de El Eternauta. O que me leva a comentar essa ausência é o que ela expressa, a meu ver, sobre o distanciamento do Brasil com relação à Argentina e à América Latina, enunciada acima, assim como a certeza de que com esse desconhecimento, perdemos a oportunidade de discutir não só o isolamento cultural brasileiro, mas a maneira como nos relacionamos com a memória dos vinte e um anos de ditadura militar no Brasil, essa ferida aberta sobre a qual silenciamos.
Às vezes parece que só através da ficção é possível contemplar a totalidade e nos aproximar dos fatos. Quando a realidade extrapola nossa capacidade de compreensão, a fábula nos proporciona o distanciamento necessário para enxergar objetivamente os acontecimentos. Pouco mais de cinquenta anos nos separam do momento em que os tanques invadiram as ruas e o terrorismo de estado se tornou uma prática cotidiana na América Latina. Sessenta e quatro anos decorreram desde que uma historieta de ficção científica advertia os leitores sobre o que lhes poderia reservar um futuro próximo.
Os fatos ligados à mais recente ditadura militar argentina (1976-1983) parecem ser uma fonte inesgotável de temas para a produção cinematográfica, como prova o recém lançado Rojo (2018), de Benjamín Naishat. O filme faz parte de uma linhagem específica em que podemos incluir La historia oficial (Luiz Puenzo, 1985) e Sur (Fernando ‘Pino’ Solanas, 1988). Os três filmes têm em comum a opção pela elipse, que convida o espectador a preencher o que não é dito nem mostrado. Escolha paradoxal em se tratando de uma arte feita de som, luz e, principalmente, imagem. Em Rojo, um único fato é apresentado de maneira integral, e não se trata do mais importante. O restante do filme está nas entrelinhas e privilegia o dado cronológico, o tempo da narrativa -1975 a 1977-, como principal elemento interpretativo.
O que se imagina não pode servir como prova dos fatos, e mesmo que estes se tornem palavra, jamais voltam a habitar o presente. Não se pode dizer o mesmo sobre a experiência subjetiva dos seres humanos. Em certos casos, o tempo perde a duração. Experiências extremas são capazes de nos aprisionar em uma dimensão sem passado nem futuro, como a das pessoas que, depois da Primeira Guerra Mundial, “voltavam mudas do campo de batalha” (Benjamin, 1983, p. 57).
O Espacio Memoria y Derechos Humanos, ex Escola de Mecânica da Armada (ESMA), museu instalado num complexo militar que durante a década de 1970 havia se tornado um centro de detenção e tortura, proporciona ao visitante conhecer os prédios e as salas destinadas ao isolamento, ao trabalho forçado, ao castigo físico e ao parto dos filhos e filhas de prisioneiras capturadas grávidas. Filhos e filhas que eram doados para famílias ligadas ao alto comando do governo militar, e cuja localização é a grande demanda de movimentos como o das Madres da Plaza de Mayo e H.I.J.O.S4 No Espacio Memoria y Derechos Humanos não estão expostos instrumentos de tortura. O visitante é convidado a transitar por espaços hoje vazios, ler os textos explicativos afixados em cada um deles e ouvir descrições de exprisioneiros em seus depoimentos à justiça. Há ainda um prédio transformado em centro cultural que homenageia o escritor Haroldo Conti5 e abriga exposições relacionadas de alguma maneira com o museu. Ao final da visita, há a exibição de um vídeo em que são apresentados os nomes e os rostos dos responsáveis pela azeitada máquina repressiva, começando pelo então presidente Jorge Rafael Videla, autor da conhecida definição das vítimas não localizadas do terrorismo de estado: “Le diré que frente al desaparecido en tanto éste como tal, es una incógnita. (...) mientras sea desaparecido no puede tener tratamiento especial, porque no tiene entidad. No está muerto ni vivo… está desaparecido”6.
Os militares responsáveis pelos assassinatos, tortura e desaparecimentos conseguiram, antes do fim do regime, destruir praticamente todas as evidências de seu procedimento arbitrário, cruel e sistemático. Dentre os poucos registros disponíveis estão as fotos roubadas por um dos prisioneiros, Víctor Basterra, mantido em cativeiro e submetido a trabalhos forçados de 1979 a 1984. As fotos mantidas por Basterra (Figura 3) são imagens cuja finalidade era a falsificação de documentos, passaportes e licenças para porte de armas. São basicamente rostos -um ou dois com ferimentos evidentes- registros que comprovam a existência das pessoas retratadas. A maioria delas continua desaparecida.
Outro espaço dedicado à manutenção da memória das vítimas da ditadura argentina é o Parque de la Memoria. Localizado às margens do Rio da Prata, na zona norte de Buenos Aires, o parque é um grande monumento à ausência, e visitálo foi uma experiência que carregarei para sempre comigo. O impressionante muro (Figura 4) onde estão registrados os nomes das 30.000 vítimas, organizados alfabeticamente e pelo ano de desaparição, leva a pensar em uma grande montanha de corpos finalmente encontrados. Corpos que não estão, mas que de alguma maneira se presentificam. Ali, no grupo de desaparecidos no ano de 1977, se encontra uma infinidade de nomes, dentre eles, os de Estela, Marina e Héctor Oesterheld.
A condição de “embarazada” de Marina ao ser capturada é o detalhe mais doloroso. É também notável a distância etária entre Héctor e os demais desaparecidos. O mais próximo da faixa etária do roteirista é Oscar Oshiro, vinte anos mais novo, um dos 17 descendestes de japoneses desaparecidos durante o regime.
Em setembro de 2012, o filósofo Juan Pablo Feinmann declarou, em um debate com o sociólogo Horacio González, que Elsa, a viúva de Héctor Germán Oesterheld, “es el caso más trágico de la dictadura, porque perdió cuatro hijas, un yerno, un marido, un nieto”7. Com efeito, o regime militar foi especialmente cruel com a família Oesterheld. Dois detalhes sórdidos: a fim de quebrar a resistência de Héctor e fazêlo denunciar outros militantes, os torturadores teriam mostrado a ele fotos de Estela, Diana, Beatriz e Marina e afirmado que também estavam detidas, que não havia mais ninguém a proteger; em outra ocasião, permitem que o neto, Martín, então com três anos, visite o avô no centro clandestino em que estava preso. É a última visita ao avô e a primeira lembrança do neto: “yo fuí la última persona que lo vío vivo, de toda mi família, y es mi primer recuerdo. Primera cosa que me acuerdo de mi vida es de estar con mi abuelo”8.
Durante os quatro anos de pesquisa, percorri com Juan Salvo a capital para a qual Héctor Oesterheld trouxe a aventura, transformando a si mesmo em personagem. Ele é o primeiro que aparece em El Eternauta, seu anfitrião. Nesse tempo em que pude conhecer um pouco do seu processo de criação e de suas concepções filosóficas e políticas, não me pareceu estranha sua opção por trazer a aventura para a própria vida, aderindo à luta armada
em nome de uma causa talvez inevitável em seu momento histórico. Penso no período em que a pesquisa se desenvolveu, entre 2015 e a primeira metade de 2019, quando a América Latina tornou a aproximarse perigosamente de um período autoritário. Durante e depois do golpe político/jurídico/midiático que afastou a presidente Dilma Roussef do governo, levou o presidente Lula à prisão e transformou Jair Bolsonaro na autoridade máxima do país, pareciame estar escrevendo sobre acontecimentos de um futuro próximo. Era como estar na pele do roteirista que ouve do Eternauta notícias sobre uma catástrofe que está por acontecer novamente, como se testemunhasse a ficção e a realidade de um ciclo histórico interminável.
Os quatro meses em Buenos Aires, no final de 2018 e início de 2019, me permitiram comparar as duas realidades, da Argentina e do Brasil, e, à distância, perceber que uma obra como a de Oesterheld só se tornaria popular no meu país sob certas condições específicas, sendo a principal delas a abertura dos arquivos e o julgamento dos responsáveis pelos vinte e um anos do período ditatorial brasileiro. Ao contrário dos argentinos, parece que não aprendemos nada sobre e com esse período. Não houve uma catarse coletiva, o que mantém os acontecimentos desse período como latência. A subordinação do governo brasileiro aos Estados Unidos, a ingerência política e econômica, os extremismos resultantes da polarização da sociedade, o sufocamento dos discursos de oposição e o cotidiano desrespeito aos direitos humanos podem claramente nos levar à repetição daquele momento ou a algo pior. “Es como para creer en fantasmas”, diz Germán ao ver materializar-se um homem diante de si. Repito aqui essa frase, “es como para creer em fantasmas”, esperando mesmo que o fascismo à brasileira seja, e não deixe de ser, um fantasma. El Eternauta é um objeto vivo, por assim dizer, e, como tal, está inserido numa dinâmica de transformações. Não é uma obra com possibilidades estáveis de interpretação, o que ficou claro para mim durante a mudança no contexto político e cultural argentino durante a transição entre os governos de Cristina Kirchner e Mauricio Macri. Comecei a pesquisa em 2015, ano em que se inicia essa transição. El Eternauta era então uma historieta popular, adotada inclusive como material didático nas escolas de Buenos Aires. A apropriação do personagem principal da série pelo kirchnerismo, ainda que discutível do ponto de vista ético ou ideológico -essa palavra hoje tão distante de seu significado original entre os brasileiros-, proporcionou um movimento de valorização não só da obra de Oesterheld, mas do gênero quadrinístico, legitimado como importante elemento cultural. A mudança de governo acarretou na desconstrução desse reconhecimento, o que também acarretou numa mudança de perspectiva e na reformulação de meu trabalho. Vista do Brasil, e com base na leitura de trabalhos e notícias sobre El Eternauta, pareciame inquestionável a popularidade da série. Acreditava que qualquer leitor argentino interessado no universo da cultura pop conhecia a obra de Héctor Oesterheld, o que talvez ainda fosse verdade em 2015. Em 2018, porém, El Eternauta havia se tornado uma série cult, reconhecida academicamente e respeitada entre os leitores de histórias em quadrinhos, mas sem o alcance popular que parecia ter quando a conheci. Não era mais tão fácil encontrar um estêncil do Eternauta ou do Nestornauta pelos muros e paredes de Buenos Aires, nem exemplares da série nas livrarias e kioscos, incluídos os kioskos próximos da casa dos Oesterheld, hoje reconhecida como Sítio de Memória. O Paseo de la historieta, com exceção da escultura de Mafalda, no coração de San Telmo, é hoje composto por peças em precário estado de conservação, e em nenhuma das vezes que o percorri consegui encontrar a escultura do Eternauta, supostamente localizada na Avenida de los Italianos. Essa desvalorização do quadrinho argentino exigia a reconfiguração de meu trabalho, que além de investigação, tornara-se uma espécie de resgate. Essa mudança deu outro sentido aos objetivos que norteavam a tese: tornar próximo um objeto de análise que se move no tempo e no espaço e descrever a trajetória da construção dessa obra de forma compreensível a um idealizado leitor brasileiro.
Oesterheld era um narrador, não um explicador, daí a imbricação entre vida e obra ser um caminho para entender suas escolhas políticas. Os silêncios, as lacunas entre o que se sabe e o que se intui sobre essas escolhas também me parecem corresponder a uma concepção problematizada de futuro que se descola da ideia de continuidade e projeta nela um elemento de ciclicidade. O tempo cíclico no lugar da concepção cronológica, a repetição substituindo a ideia de evolução através da técnica. ‘Para onde vamos neste século XX?’ é uma pergunta que a ficção de Oesterheld parece lançar ao leitor, e que ecoa neste século XXI. Uma pergunta carregada de questionamento existencial, e que talvez jamais seja respondível.
Quando comecei minha investigação, pensava ser um dado estável a atemporalidade do reconhecimento de El Eternauta, o que se mostrou um equívoco diante da mudança nas políticas culturais depois da transição de governo já mencionada. As adaptações radiofônicas, teatrais, os tributos musicais, as fanfictions produzidas a partir de El Eternauta, assim como a onipresença da série como símbolo político, partidário e/ou de resistência, são todas anteriores a 2015. Algumas dessas releituras e homenagens, como a peça teatral Zona liberada (2007), a novela radiofônica Vestigios del futuro (2010) e a exposição Huellas de la invasión (2014) contaram com subsídios do Ministério da Educação e dos órgãos de fomento à cultura do governo de Cristina Kirchner. Uma série de tv como Germán, ultimas viñetas (2013) e uma biografia como Los Oesterheld (2016), ainda que não tenham recebido esse tipo de financiamento, também correspondem a esse contexto cultural e institucional. Assim, como o presente se mostrava pouco produtivo no sentido da valorização de El Eternauta e da trajetória de Oesterheld, fui em busca do passado, a fim de atribuirlhe significação. Pareciame necessário, como brasileiro, mergulhar nos acontecimentos que conformam os períodos ditatoriais na Argentina, tentar entender o peronismo e as lógicas da militância, que não são as mesmas do contexto brasileiro, da mesma forma que não é similar, de maneira alguma, o tratamento dispensado à memória desse passado na Argentina. Não me parece haver, na Argentina, possibilidades de negacionismo e revisionismo das ações criminosas dos governos militares. Arquivos foram abertos, responsáveis foram julgados -nem todos, mas boa parte- vítimas foram reconhecidas, e o entendimento das consequências devastadoras desse momento histórico parece ser indiscutível. A compreensão desse tratamento dado ao passado, o conhecimento sobre a complexidade das ideias que mobilizam as ações militantes, era, e é, uma condição fundamental para a análise do contexto comunicacional de produção e circulação de um produto cultural como El Eternauta. Bem como para formular hipóteses sobre ele.
O cronótopo9 que percebo como característica do enredo de El Eternauta e da biografia de seu autor, faz parte da constante e cíclica ressignificação de ambas as coisas. Se hoje esse processo encontrase num momento de distensão, foi com o objetivo de expandilo, para além de seu país de origem, para além da demarcação das fronteiras culturais que nos separam da Argentina, para além da compreensão da história em quadrinhos como um produto cultural descartável, que empreendi a aventura da pesquisa.
A aventura de Juan Salvo é a de Héctor Oesterheld. O narrador que viaja no tempo e surge em uma noite fria para contar sua história é um mecanismo perceptível também na trajetória do autor. Trata-se de viver para contar, e contar, no caso, também como forma de atuação política. A viagem de Salvo pelo tempo-espaço tem uma única função: narrar. Impossível dizer quantas experiências teve durante sua permanência no “Continuum 4”, o multiverso em que se vê aprisionado na sequência final da história. As narrativas de Oesterheld também viajam pelo espaço-tempo. Quantas dimensões El Eternauta ainda irá atravessar nesse contínuo processo de ressignificação? Na construção do personagem Juan Salvo, sua condição de pequeno burguês que as circunstâncias transformam em combatente é menos importante do que sua transformação em narrador. Quando percebe que voltou no tempo, ao momento anterior à invasão, Salvo esquece o que contou, reencontra a família e os amigos e volta à condição inicial. A sugestão é a de que tudo irá acontecer de novo, indefinidamente; a invasão se repetirá e tudo que resta é narrar os acontecimentos a fim de advertir os leitores sobre a catástrofe que se aproxima. Não é mais Juan Salvo que importa, mas aquilo que contou. Servirá para alguma coisa essa advertência? O roteirista-personagem não sabe. Oesterheld, tanto em 1957, ano de estréia da série em Hora Cero Semanal quando no remake de 1969, publicado na revista Gente, também não sabe que uma aventura o espera alguns anos depois. A narrativa se mistura com a errática viagem do militante montonero, pai de quatro filhas, convicto de que tem uma missão a cumprir, uma história para viver. Em certa medida, vida e obra passam a ser uma mesma coisa. Se El Eternauta é uma história sem fim, Oesterheld desaparecendo nas mãos dos torturadores também. O sacrifício de Héctor ainda ecoa, segue atravessando tempo e espaço, como advertência para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça10.
Em 2020, abrese um novo capítulo, ainda em aberto, no circuito de ressignificações de El Eternauta, desta vez, através do streaming. A Netflix, plataforma de filmes e séries mais popular na América Latina, divulgou, em fevereiro deste ano, o investimento de quinze milhões de dólares na produção de uma série baseada na historieta de Oesterheld, que já teve adaptações para o rádio, para o teatro, inspirou tributos musicais, fanfictions, rendeu curta-metragens e até um mocumentário, Huellas de la invasión, dirigido por Martín Oesterheld. Ainda falta, porém, uma produção mais ambiciosa, com orçamento e recursos técnicos condizentes com a grandiosidade e a importância histórica da série. Na lista de diretores que tentaram filmar El Eternauta estão nomes como os de Adolfo Aristarán, Fernando ‘Pino’ Solanas e Lucrecia Martel. Diretora de filmes experimentais e intimistas como O pântano (2001) e A mulher sem cabeça (2008), Lucrecia dedicou um ano e meio à elaboração de um roteiro adaptado11, chegou a fazer testes de efeitos visuais, mas acabou por esbarrar em questões orçamentárias, desentender-se com os produtores e abandonar definitivamente o projeto em 2009. Aristarán e Solanas enfrentaram problemas semelhan-tes, além de negociações pouco amistosas com a família de Oesterheld e com Solano López. Esperemos que Bruno Stagnaro, diretor de Pizza, cerveja e cigarro (1997) e da minissérie televisiva Okupas (2001), escolhido para dirigir a série para a Netflix, consiga finalmente trazer a nevasca radioativa e os monstros de Oesterheld de volta às ruas de Buenos Aires. Minha última parada, em 2019, antes de voltar ao Brasil foi uma certa casa, no bairro de Beccar. Talvez devesse começar este relato narrando esta visita, mas escolhi deixála para o final, como uma abertura que remete ao início desta história. Reproduzo a seguir, a título de encerramento e recomeço, o registro que fiz em meu diário de viagem, enquanto voltava de trem para o centro da cidade.
Buenos Aires, 10 de janeiro de 2019.
Daqui a dois dias volto ao Brasil. Não poderia fazer isso sem conhecer o chalé onde foi escrito El Eternauta, na esquina das ruas Rivadavia e Ayacucho, no bairro de Beccar. O que primeiro chamou a minha atenção foi a proximidade com a estação de trem. Basta atravessar a rua para chegar à esquina. A única coisa que diferencia o chalé das residências próximas é uma placa que demarca o local como Sitio de Memoria. Instalada em maio de 2018, a placa já tem duas intervenções, dois pixos discretos, que não impedem a leitura. Fotografei a parte visível da casa. Há um muro alto, coberto de uma densa camada de vegetação -muito bem cuidada- que só permite enxergar o segundo andar. Aparentemente o atual morador manteve as janelas como foram desenhadas por Solano López em 1957. Depois de dar a volta na quadra, toquei a campainha. Queria conhecer o chalé por dentro. Ninguém atendeu. Resolvi atravessar a rua. Do outro lado, quase de frente pra casa, há uma banca de revistas, e outra, na esquina seguinte. Na estação de trem, mais uma. Em nenhuma delas há exemplares do Eternauta ou de qualquer outra obra de Oesterheld. Dos três vendedores, somente um, o mais velho deles, tinha alguma ideia de quem era Héctor Oesterheld: “Ese tipo que vivia ahí, no?”, diz ele, apontando para o chalé. A um quarteirão de distância existe um centro cultural que promove atividades junto à comunidade de Beccar. Lá também não há referências ao vizinho -ia dizer vizinho famoso, mas começo a desconfiar dessa fama- e apenas uma das funcioná-rias que trabalhava naquela manhã sabia quem era Oesterheld, ou melhor, sabia quem era o Eternauta. Disse, com certo constrangimento, que nas dependências do centro, e no calendário de atividades não há nada relacionado ao autor ou a sua obra. São 12:30 quando embarco no trem de volta para o centro de Buenos Aires. Penso na casa, ainda igual, externamente, 63 anos depois. Juan Salvo poderia materializar-se de novo, no mesmo local, sem que Solano precisasse redesenhá-lo. Penso, em seguida, nas bancas ao lado da casa e, de repente descubro porque não há nenhum exemplar do Eternauta à venda nelas: eles ainda não foram publicados, Juan Salvo começa a ser criado por Oesterheld agora, e ainda não se materializou. Tudo ainda está e sempre esteve no Continuum, e a história ainda está prestes a começar, outra vez.